Só quando a crise ameaçar engolir não apenas o governo, mas qualquer recuperação do país, os dogmas irão para segundo plano
Peça 1 – o mapa da economia no mundo ideal
Em um primeiro momento, conta o ciclo econômico. Após períodos de intensa concentração de renda – como o que houve nos últimos anos – há uma poupança acumulada, disponível para novas aplicações, dependendo das taxas de juros e das expectativas de inflação.
Dependendo do nível de juros, abre-se a possibilidade da poupança ser canalizada para investimentos em infra-estrutura e para setores portadores de futuro, além de permitir o financiamento do capital de giro e o amparo às pequenas e micro empresas.
Para a recuperação da economia, é necessário que essa conjuntura seja completada por uma política monetária regrada, com taxas básicas civilizadas e uma articulação na economia real, junto aos atores econômicos.
Princípios fundadores
Erros e acertos de políticas de desenvolvimento legaram o seguinte conhecimento de políticas bem sucedidas.
Compras públicas
É um ponto essencial. Seja na forma de bens de consumo para políticas públicas (saúde, educação, alimentos), no acesso de micro, pequenas e médias empresas não apenas a crédito e financiamento, mas a compras públicas. A única garantia de sobrevivência de novas empresas e novos setores é a garantia de demanda.
Políticas sistêmicas
Não é mais possível política de um tiro só. Minha Casa Minha Vida não pode continuar a ser uma mera política de financiamentos e subsídios, mas levar em conta a questão imobiliária, a mobilidade dos trabalhadores, os impactos sobre custo de terras e aluguel.
O exemplo maior é o Programa de Desenvolvimento Produtivo (PDP) que, embora tenha ficado incompleto, contemplava o setor como um todo, pensando nas necessidades do SUS, dos pacientes, o poder de barganha com multinacionais etc.
Peça 2 – diagnóstico e ação
Não se deve pensar políticas setoriais individualmente, nem as ações de cada MInistério de forma isolada.
Por exemplo, no auge do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) tentou-se uma articulação entre governo, a área social e a ABIC (Associação Brasileira da Indústria da Construção), visando utilizar a base de dados social para identificar trabalhadores nas áreas contempladas com construção e utilizar o sistema S para treinamento.
Outra iniciativa inteligente – mas que não foi adiante – consistia em definir um mínimo de previsibilidade para as grandes obras públicas e acertar com a ABIMAQ (Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos) um planejamento dando tempo para a fabricação dos equipamentos que seriam requeridos.
Para tanto, tem que haver um diagnóstico amplo e uma ação articulada entre Ministérios e associações civis. Não dá mais para pensar em políticas públicas com cada agente jogando no seu campo e definindo sua estratégia.
O primeiro passo é entender o estágio atual da economia brasileira e definir setores prioritários, aqueles com maior capacidade de disseminação, maior afinidade com as novas tecnologias, dentro de uma visão sistêmica, da qual o maior exemplo é o complexo industrial da saúde.
A visão sistêmica consiste em entender todas as implicações de uma política industrial, tendo como foco central o atendimento das necessidades da população e a utilização do poder de compra do Estado para estimular o desenvolvimento de setores industriais.
Diagnósticos com tal grau de complexidade precisam ser montados com a participação de muitos atores:
- Uma orquestração liderada pelo Ministério da Fazenda, e mobilizando demais Ministérios – Planejamento, Indústria e Comércio, Agricultura, Trabalho, Saúde etc. Os Ministérios atuariam como pivôs de uma estrutura nacional envolvendo atores, mas dentro de uma lógica central.
- Instituições acadêmicas, Universidades, IPEA (Instituto de Pesquisa Econômicas Aplicadas), setores técnicos do BNDES. Em 2014, o Ministério de Ciência e Tecnologia preparou um belíssimo plano de políticas públicas para o segundo governo Dilma, contando com a colaboração das universidades. Mofou em uma gaveta;
- Confederações e federações empresariais, sistema S.
- Fóruns de discussão, como o Conselhão, a ABDI (Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial) e Apex (Agência de Promoção das Exportações).
- Sistema de financiamento da pesquisa, como CNPQ, Fundações de Amparo à Pesquisa, Finep (Financiadora de Pesquisas e Projetos).
Articulação dessa ordem evitaria sobreposição e voluntarismos, como essa ideia de criar uma MIT para a Amazônia, sabendo que existem universidades federais por lá, com especialistas estudando o tema. Mesmo porque o autor da ideia, o cientista Carlos Nobre é respeitabilíssimo na sua área, a climatologia, não em biociência.
Peça 3 – os problemas
No ano passado, pintou um ciclo benéfico. Foi desperdiçado pelo oportunismo, curto prazismo e pela falta de visão estruturante do Ministro da Economia Paulo Guedes.
Houvesse um mínimo de estratégia, essa poupança teria sido canalizada para obras de infraestrutura, com aporte da União, e enormes reflexos na cadeia produtiva nacional.
Em vez disso, permitiu-se a constituição de bolhas em ações de empresas, fundos imobiliários, securitização de recebíveis. Com a guerra da Ucrânia, houve uma explosão nos preços da energia, dos alimentos e fertilizantes, impactando a inflação interna, com a elevação mais que proporcional da Selic.
Agora, tem-se uma bomba de efeito retardado prestes a explodir. E o governo Bolsonaro deixou duas heranças terríveis: a estabilidade da diretoria do Banco Central, nas mãos de diretores que pensam exclusivamente no mercado; e a estabilidade do Conselho de Administração da Petrobras, que cometeu o ato mais irresponsável possível, a distribuição de dividendos em valor superior a todo o lucro contábil da Petrobras.
O primeiro segura a Selic a 13,75%. O segundo impede a revogação do PPI (Preço do Petróleo Importado) como parâmetro para os preços internos de combustíveis.
Com Selic a 13,75% ao ano e custo do crédito em percentuais muito maiores – para uma inflação anual de apenas 5,77% e em queda consistente desde abril de 2022 – já havia uma crise de crédito na economia. As empresas passaram a recorrer ao chamado crédito corporativo – que responde por 10% do PIB. Com o golpe das Americanas, houve novo movimento de restrição de oferta, aumento no custo do dinheiro e a expectativa de uma crise gigante. Ou seja, há um tsunami a caminho.
Ao mesmo tempo, a necessidade de devolver aos estados a arrecadação perdida levou a Fazenda a reinstituir o imposto sobre combustíveis, mas sem condições de compensar com redução dos preços do petróleo, através da revogação do PPI, devido à resistência do Conselho de Administração da Petrobras – que só será trocado em maio.
Definitivamente, é impossível pensar em qualquer hipótese de recuperação da economia com taxas de juros nesses níveis. Não haverá investimento novo, não haverá condições de reativar o mercado de crédito nem mesmo a reativação de obras públicas, que esbarrará no custo do capital de giro.
Peça 4 – a estratégia de Haddad
Haddad tem recorrido a uma estratégia gradual, que tem lhe permitido conquistar a confiança do mercado.A ideia é aproximar-se de Campos Neto, confiando em conquistar sua boa vontade, sem colocar em risco nenhum dos dogmas do mercado.
- Apresentar um substituto para a Lei do Teto. E preparar o orçamento do próximo ano, acenando com orçamento equilibrado.
- Aprovar a reforma tributária.
- Avançar o programa de limpar a ficha de pessoas físicas inadimplentes.
Tudo isso para conseguir a boa vontade de Campos Neto na próxima reunião do Copom (Comitê de Política Monetária).
Há um amplo descompasso entre o ritmo da crise que vem por aí, e o timing da estratégia Haddad.
Mas há um problema de tempo aí. O Copom reúne-se a cada 45 dias. A próxima reunião será nos dias 21 e 22 de março. Se tudo der certo, a ata terá um pouco de boa vontade em relação aos esforços da Fazenda, e acenará com alguns elogios. A próxima reunião será em maio, com a possibilidade de uma queda de 0,25 na Selic.
Os mortos pela crise agradecerão penhoradamente a boa vontade.
E qual a alternativa? Se pedir a cabeça de Campos Neto ao Congresso, o governo corre o risco de ser derrotado e desmoralizado. Entenderam o tamanho da encrenca?
Por outro lado, de mãos amarradas e com a crise comendo solta, cada dia de governo nunca é mais, é sempre menos.
Peça 5 – a estratégia de Mercadante
A única estratégia clara de Mercadante é a de se habilitar a, futuramente, ocupar o lugar de Haddad. O que de mais meritório fez até agora foi a preparação de um seminário para analisar as práticas do Banco Central. No que lhe cabe – discutir linhas de financiamento à exportação – deixou a Fazenda na mão, precisando recorrer ao Banco do Brasil para montar a linha de financiamento com a Argentina.
Historicamente, os financiamentos do BNDES tinham como parâmetro o custo dos financiamentos internacionais, para conferir um mínimo de competitividade às empresas brasileiras. Por isso, a TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo) era invariavelmente inferior à Selic, permitindo aos clientes do BNDES escapar da armadilha da Selic alta. A pretexto de que esse diferencial significava subsídios – sem levar em conta o que os financiamentos do BNDES geram em novos impostos, novos postos de trabalho, novos empreendimentos -, passou-se a utilizar uma taxa de mercado. Tudo isso para permitir ao mercado faturar em cima desse novo veio. Deixou-se de lado o personagem principal do jogo – a empresa que investe – para privilegiar o intermediário.
Mas, para não incorrer na ira do mercado, Mercadante diz que não vai cobrar juros abaixo da Selic. Mencionou genericamente vários tipos de operação que poderão ser desenvolvidas, mas sem detalhar nenhuma, porque todas têm que obedecer ao princípio básico, de não ser inferior à Selic. Então, esquece!
Peça 6 – o Senhor Crise
Volta-se ao pré-2008. A política econômica deixa de ser a arte de resolver problemas concretos da economia real, para ser um vai-da-valsa em torno dos dogmas do mercado, devido às heranças malditas de Bolsonaro e à falta atual de condições políticas.
E nem se condene Haddad. Ele joga de acordo com as possibilidades políticas que têm à mão.
Só quando a crise abrir novamente a bocarra e ameaçar engolir não apenas o governo, mas qualquer pretensão de recuperação do país civilizado, os dogmas irão para segundo plano e os problemas reais ganharão novamente prioridade.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)