O BRASIL VOLTA AO PALCO MUNDIAL

CHARGE DE MIGUEL PAIVA

Se a inflação cai pela metade (estava na faixa de 10% e baixou para 5,79/5,77%) e o Banco Central não move a Selic, não está errado?

Na semana em que completou um mês da infame invasão seguida de depredação das sedes dos Três Poderes, por vândalos bolsonaristas, em 8 de janeiro, em Brasília, sob a estranha omissão conjunta das redes de segurança dos governos Federal e do Distrito Federal, o encontro do presidente Lula com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, do partido Democrata, no Salão Oval da Casa Branca, representou mais que o desagravo das duas maiores democracias ocidentais a atentados contra o Estado Democrático de Direito. Em 6 de janeiro de 2021, quando Biden seria diplomado, junto com a vice-presidente eleita Kamala Harris, no Capitólio (prédio do Congresso que abriga a Câmara dos Representantes e o Senado), houve infame atentado à democracia, sob o incentivo do presidente republicano Donald Trump, que continuava alegando fraude nas urnas (negadas em todas as instâncias), com a depredação de parte das instalações, enquanto o insano e golpista ex-presidente sugeria o enforcamento do seu vice, Mike Pence, que presidia a cerimônia de diplomação.

Aqui, no Brasil, o enredo, que tinha a mesma fonte de inspiração – o ativista da ultradireita Steve Bannon, condenado na Justiça americana por fraudes e desvio de dinheiro -, usou o batido argumento prévio de fraudes antes mesmo de iniciadas as votações nas confiáveis urnas eletrônicas. Nos EUA, Trump dizia que o voto pelo correio (precaução em plena pandemia da Covid-19 para evitar o contágio), que mobilizou os eleitores democratas, era “fraude”, pois o levaria à derrota por quase 7 milhões de votos e nos colégios eleitorais dos estados. Mas a questão é que mesmo após Bolsonaro usar como nunca a máquina do governo, manipulando bilhões para aliciar o eleitor e derrubando impostos para dar a falsa sensação de inflação baixa e economia em crescimento, Lula venceu por mais de 2,1 milhões de votos. A alegação de fraude seguiu permeando o entorno do presidente não reeleito (fato inédito desde a aprovação do instrumento em 1997). Jair Bolsonaro não cumprimentou Lula pela vitória, nem reconheceu a derrota. E avisou que não passaria a faixa. Várias ‘senhas’ foram distribuídas pelas redes sociais incitando os bolsonaristas a fecharem estradas federais e a se postarem perante os quartéis para invocar uma intervenção militar que anulasse o resultado das urnas. Na noite de 12 de dezembro, após a diplomação, houve ensaio de golpe em Brasília, com incêndio de veículos e ataques à sede da Polícia Federal e a uma Delegacia do DF. A intenção clara (como investigações posteriores descobriram) era criar o caos para que houvesse Decretação de Estado de Defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral, com a anulação das eleições.

Ainda sem tomar posse, o futuro ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, teve que se antecipar aos fatos e acionar a PF, que descobriu um plano para explodir um caminhão tanque no aeroporto de Brasília. Com redobradas medidas de segurança, incluindo a suspensão do porte de armas no perímetro da capital, a posse em 1º de janeiro foi uma festa democrática. Mas uma semana depois, por relaxamento do “estado de atenção” na capital e a desmobilização criminosa das forças de segurança federais (em processo de mudança) e no governo do DF, onde o Secretário de Segurança Pública, que tinha sido o antecessor de Flávio Dino, viajou para os Estados Unidos, para se encontrar com o ex-presidente Jair Bolsonaro, homiziado em Orlando desde 30 de dezembro, na residência do ex-lutador de MMA José Aldo, na 6ª feira, 6 de janeiro, antecipando as férias a partir de 9 de janeiro, quase deu certo a nova tentativa de golpe. Mais do que a ausência do local da invasão em dose tripla se comparada à do Capitólio, Torres desmobilizou os comandos da Secretaria de Segurança do DF, sem apresentar ao governador Ibaneis Rocha nomes e telefones dos substitutos. Quando Lula iniciou a narração a Biden da disseminação de “fake news” por Jair Bolsonaro e seus adeptos, o presidente americano não resistiu e aparteou de modo incomum: “Isso me soa familiar”. Os golpistas beberam na mesma fonte: Steve Bannon. Quando o presidente brasileiro contou detalhes da intentona à democracia, Biden ficou pasmo.

Ao fim e ao cabo da visita, a convite do presidente dos Estados Unidos, Lula que se fez acompanhar de quatro ministros (Fazenda, Fernando Haddad, do Meio Ambiente e Mudança Climática, Marina Silva, da Igualdade Racial, Anielle Franco, e das Relações Exteriores, Mauro Vieira), além do ex-chanceler Celso Amorim, assessor especial do presidente e cabeça pensante do relançamento do Brasil de Luís Inácio Lula na cena internacional, o Brasil já evoluía com desembaraço no palco. Ao tratar da Amazônia, Lula fez questão de explicar que o bioma transcende ao Brasil, dono de 67% de sua área, mas se estende por outros seis países sulamericanos e as antigas Guianas (uma das quais faz parte do território da França). Assim, o Brasil passou a advogar ajuda internacional, inclusive dos Estados Unidos, não só para o Fundo Amazônia, constituído por contribuições dos governos da Noruega e Alemanha, que havia sido congelado na gestão Bolsonaro, que não queria que os dois países acompanhassem a governança do Fundo. A adesão inicial dos EUA foi modesta (US$ 50 milhões, ou menos de R$ 260 milhões), mas sacramenta o compromisso. Ato contínuo, Lula anunciou que irá a três países africanos (Angola, África do Sul e Moçambique), retomando os históricos laços do Brasil com continente africano de onde são oriundos mais da metade dos brasileiros. Lula disse que a questão climática, assim como outras questões complexas da transição energética, estão extrapolando os trâmites da Organização das Nações Unidas e pedem nova governança mundial, com a ampliação do reduzido grupo do Conselho de Segurança da ONU (cinco países que são potências nucleares – EUA, Rússia, Grã-Bretanha, França e China e observadores em regime de rodízio), numa clara retomada da proposta de reforma do CS da ONU. E propôs como prioridade do novo foro as gestões para o fim da guerra entre a Rússia e a Ucrânia.

Bolsonaro foi várias vezes aos Estados Unidos, onde está com visto de turista renovado, agora com a ameaça concreta de ser processado em 1ª Instância, depois da perda do foro privilegiado, conforme decisão da ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia, que remeteu os processos à Justiça Federal nos diversos estados onde o então presidente foi acionado. A 1ª vez, num encontro com o então presidente Trump, em março de 2019. Depois foram idas para o discurso de praxe do Brasil na abertura dos trabalhos da Assembleia Geral da ONU, em setembro (fez isso em 2019 e em 2021 e 2022). Em 2019, encontrou-se com Trump nos bastidores da ONU e foi saudado apenas com um “Hi” e um toque de mão, sem cumprimento. Em 2020, com a pandemia, as falas foram em zoom. Em 2021, sem vacinação, disse bobagens no púlpito e depois, com a comitiva, a maior parte sem carnê de vacinação, foi barrado numa churrascaria de brasileiros. O grupo deu o vexame de comer pizza na calçada. O ministro da Saúde e outros membros da comitiva pegaram Covid e tiveram de cumprir quarentena prolongada no hotel de Nova Iorque, que despejou o ministro Marcelo Queiroga. A última estada, em setembro de 2022, foi para usar o palanque com fins eleitorais, como fizera na estada em Londres para as exéquias da Rainha Elizabeth. Derrotado, espalhou que ficaria hospedado em Mar a Lago, “resort” de Trump na Flórida, que o recebeu quando eram ambos presidentes. Agora, que são cartas-fora-do-baralho, Trump fez cara de paisagem, não insistiu no convite, e restou o abrigo em Orlando, lar do Pateta.

Mas o desprestígio de sua política externa pode ser medido pela ausência total dos diplomatas que nomeou para a Embaixada do Brasil em Washington. Quando um presidente brasileiro visita a capital do país onde serve, o representante do país no local tem obrigação de receber o chefe de Estado. O embaixador Nestor Foster, nomeado por Jair Bolsonaro e seu eleitor de carteirinha, como todo o staff da embaixada que chegou a ser pleiteada em 2019 pelo filho 03, deputado Eduardo Bolsonaro (então no PSL-SP), com a credencial de “falar inglês e fritar hamburguer”, como se gabava o orgulhoso pai, tirou férias para não prestar honras a Lula e todos foram postos de lado. Melhor assim, pois a nova equipe do Itamaraty preza diplomatas competentes.

Vale lembrar que a movimentação de Lula na frente diplomática tem sido impecável para relançar o Brasil como peça importante no tabuleiro mundial. Reconciliou-se com os países da América Latina e Caribe, na cúpula da Celac, em Buenos Aires, onde estreitou laços com o presidente argentino Alberto Fernández. Recebeu o chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, que se comprometeu a ampliar a ajuda ao Fundo Amazônia. Os próximos passos serão a China, para retomar as relações com o maior comprador do Brasil, desdenhado e espicaçado por Jair Bolsonaro.

Na cena doméstica, o BC piscou primeiro

Como jornalista especializado em economia, cobrindo há cinco décadas o mercado financeiro e o Banco Central, confesso que me cansa ouvir colegas da imprensa repetindo, como um realejo, a cantilena de que a independência do Banco Central o torna quase que um totem sagrado. Ora, criticar os bancos centrais está em moda entre os economistas mais antenados no Brasil e no mundo. Esta semana, o CEO da Coface, a resseguradora dos créditos oficiais do governo da França (que age como o Eximbank dos EUA e o nosso BNDES quando financia compras de bens e serviços brasileiros no exterior), para cobrir eventuais calotes, Xavier Durand, disse em entrevista ao “Valor Econômico” de 6ª feira, que o excesso de rigor dos bancos centrais na fixação de juros altos para perseguirem metas inflacionárias baixas pode levar a uma recessão global. O que significa calotes que a Coface terá de cobrir. No BNDES existe um fundo garantidor de crédito, que já embute um seguro para cada operação, resguardando o banco. A questão que meus colegas menos experientes (alguns nem muito versados em economia – sobretudo na TV, onde atuei muitos anos na Globonews, junto com o colega George Vidor, fazendo comentários de economia) não conseguem distinguir é que criticar a política do Banco Central não implica estar querendo acabar com sua independência. Mas é preciso deixar claro que a independência do Banco Central (conquistada em fevereiro de 2021, em projeto de Lei aprovado pelo Senado e a Câmara) não o torna mais infalível do que antes da independência. Banco Centrais erram quando são independentes ou quando seu corpo diretor é nomeado pelo Executivo. Na independência, com mandato fixo de três anos, se acertar, tudo bem; se errar (sem mudança de rumo), quem paga a conta é a sociedade.

A discussão levantada pelo presidente Lula pode ter vindo com enunciado errado. Como Roberto Campos Neto tem mandato próprio e é um corpo estranho à equipe econômica montada pelo presidente eleito, Lula, quando se referiu a ele como “esse cidadão” (que não integra formalmente o seu governo, mas faz parte do aparato do Estado), foi um pouco depreciativo. Já Campos Neto, que fez campanha aberta pela reeleição de Bolsonaro, errou em repetir o gesto de vários auxiliares de Bolsonaro de não se apresentar ao novo governo e se mostrar disposto a discutir política econômica. Deveria ter lido com mais atenção o discurso do então Comandante Militar do Sudeste, general Tomás Paiva, que disse que os militares, como os demais servidores do Estado brasileiro, têm de acatar as orientações do comandante em chefe supremo das Forças Armadas, no caso o presidente da República. Pela atitude legalista, que condenava a insubordinação diante dos quarteis, Paiva foi convidado a substituir o antigo chefe do Exército, general Júlio Cesar de Arruda, nomeado em dezembro, ainda no governo Bolsonaro, porque o general evitava retirar os acampamentos de bolsonaristas diante dos quarteis, em especial no DG do Exército, em Brasília, onde se planejaram ações terroristas e se refugiaram depredadores dos três Poderes na noite de 8 de janeiro. A presidência do Banco Central tem “status” de uma agência reguladora, como a Anvisa, ou a Aneel. Na Anvisa, o almirante Barra Torres reagiu às ordens absurdas do então presidente Bolsonaro e se apresentou à nova administração na área da Saúde.

O “múnus” da “agência reguladora” do Banco Central é a regulagem da oferta de moeda e a calibragem dos juros para oxigenar a economia sem realimentar a inflação. Para isso, opera com sistemas de metas de inflação, que são fixadas com 18 meses de antecedência (geralmente nos meses de junho de cada ano, prescrevendo metas para dois anos adiante), porque o horizonte de estabilidade econômico-financeira perseguido pelos Banco Central é divisado pelo para-brisa 18 meses adiante (no momento, o BC já opera visando as metas de 2024). Acontece que quando as metas foram fixadas, o ambiente econômico era mais estável no Brasil e no mundo (em março de 2020 houve a declaração da pandemia da Covid-19). A economia entrou em recessão global (só a China teve algum crescimento, mas o país penou em 2021). O BC cumpriu a meta de 2020 (fixada em 2017, que era inflação de 4,0%, com tolerância de 1,50 = 5,50%; deu 4,52%, mas os alimentos subiram 14%, uma vergonha no país celeiro do mundo, e o que assegurou a meta foi a baixa mundial dos combustíveis). Com a vacinação iniciada em dezembro de 2020 nos Estados Unidos e Reino Unido (aqui, em 17 de janeiro), os preços dos combustíveis reaceleraram e a inflação de 2021 estourou o teto de 5,25%, chegando a 10,06%. No 1º ano de sua independência, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, teve de escrever ao presidente do Conselho Monetário Nacional, que fixa a meta (no caso, o então ministro da Economia, Paulo, Guedes), o porquê do baita estouro da meta.

No ano eleitoral de 2022, a invasão da Ucrânia pela Rússia jogou gasolina (e os demais combustíveis em alta) na fogueira da inflação. Com a reeleição ameaçada, Bolsonaro trocou três vezes o comando da Petrobras e o Ministério das Minas e Energia. Como o tempo era curto e o receituário do BC contra a inflação, via escalada de juros seria inócuo (se viesse a produzir efeitos seria em 2024), antes mataria a economia de inanição e sepultaria a reeleição do presidente. Paulo Guedes bolou um pacote para irrigar o bolso dos eleitores com bilhões enquanto reduzia os impostos para derrubar a inflação e pintar um quadro róseo na economia às vésperas da eleição. Não adiantou. Bolsonaro perdeu para Lula. A inflação, derrubada a canetadas nos impostos (a arrecadação tinha explodido com a escalada da inflação, que chegou a 12,13% em abril, dos combustíveis, e a turbinada na economia acabou fechando o ano a 5,79% (nenhum mérito do Banco Central, que manteve os juros básicos da taxa Selic em 13,75% ao ano desde 3 de agosto). E, mais uma vez, o presidente independente do Banco Central teve de escrever, em 10 de janeiro, quando o IBGE divulgou o IPCA oficial de 5,79% em 2020, uma carta ao presidente do CMN (já Fernando Haddad, ministro da Fazenda), se justificando pelo não cumprimento da meta. Bolsonaro e Guedes não esperaram pela eficácia do “tratamento” do Banco Central. Mas a inflação seguiu com ligeira queda em janeiro, quando a taxa do ICPA em 12 meses desceu a 5,77%, mas o Banco Central seguiu com a Selic em 13,75%, calibrada quando a inflação estava na faixa de dois dígitos (atravessou nesse período de agosto de 2021 a julho de 2022). E as projeções apontam que o IPCA descerá a 4% em abril e fechará o ano em torno de 5,8%. Portanto, o Banco Central, ao perseguir metas inflacionárias que são irrealistas (e deveriam ser revistas pelo CMN), calibra os juros numa dose cavalar (que se mostrou ineficaz em 2022 e pode matar o organismo econômico, definhante desde o 2º semestre de 2022.

Roberto de Oliveira Campos Neto deveria reler um pouco os ensinamentos e atitudes de seu avô, o ex-ministro do Planejamento (1964-67), que foi um dos responsáveis, com o ministro da Fazenda, Octávio Gouvêa de Bulhões, pela criação do Banco Central do Brasil em 31 de dezembro de 1964 (Lei 4.595). Ou não se prender apenas a um dos assessores econômicos de seu avô, quando ele virou senador por Mato Grosso do Sul, entrando na vida política-parlamentar. O senador tinha como assessores o então jovem Paulo Roberto Nunes Guedes e o advogado e economista, um pouco mais experiente, Paulo Rabello de Castro. Paulo Guedes fez carreira no mercado financeiro, incluindo uma passagem pelo Banco Bozano, Simonsen, depois que deixou o Banco Pactual, que ajudara a fundar no fim dos anos 80. No Bozano, Guedes conheceu o jovem neto do avô, que admirava e o colocou na Tesouraria do Bozano. Quando o espanhol Santander comprou o Bozano e reforçou a musculatura ao comprar o Banespa, Campos Neto foi para a Tesouraria do Santander Brasil. A operação mais do que dobrou quando o banco de Ana Botin comprou o controle do ABN-Amro, que controlava o antigo Banco Real no Brasil e se tornou a joia da coroa da organização. Como Tesoureiro da operação brasileira, Campos Neto era o menino de ouro do Santander.

Pois em memorável artigo publicado sábado no “Estado de Minas Gerais”, Paulo Rabello de Castro, que dirigiu o Instituto Atlântico, e foi presidente do IBGE e do BNDES no governo Temer, bate duro em Campos Neto e no Banco Central, fazendo distinção (como eu) entre independência e competência. Paulo Rabello indaga sutilmente: “se a inflação cai pela metade (estava na faixa de 10% e baixou para 5,79/5,77%) e o Banco Central não move a Selic, não está errado? Deu para entender, caros leitores e coleguinhas da imprensa?

STF dá reforço fiscal a Lula

Um dos argumentos mais exibidos pelo Comitê de Política Monetária (isso vem desde o governo Dilma) é a ausência de uma política fiscal que ajude o Banco Central a reduzir a dose da doença dos juros. Nos Estados Unidos o Fed também reclama disso. Mas vários economistas já provaram que os dogmas anteriores não justificam juros tão elevados. Diante da pressão da sociedade que elegeu Lula para o aumento dos gastos sociais (que tinham sido escanteados por Bolsonaro, gerando um déficit fiscal gigantesco escondido embaixo do tapete), o mercado financeiro torceu o nariz quando Lula conseguiu aprovar no Congresso a PEC da Transição, com aumento de mais de R$ 168 bilhões. Diante das cobranças de um arcabouço fiscal (Bolsonaro e Guedes destruíram a estrutura ao minar a arrecadação da União, estados e municípios), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (que só tem de apresentar o primeiro esboço do Orçamento de 2024 em abril), apresentou um plano de contenção de gastos e aumento da arrecadação, mediante agilização no contencioso fiscal, sobretudo com o fim do voto de qualidade do Carf (Conselho de Administração de Recursos Fiscais), pelo qual o voto de desempate pendia a favor dos contribuintes.

Seria bom se fosse para você ou para mim, caro leitor, num caso de glosa da declaração do Imposto de Renda pela Receita. Mas não (por causa de R$ 1 mil ou R$ 3 mil, nos enrolamos na malha fina). Quem recorria ao Carf são e continuam sendo os bancos e as grandes empresas, que podem dispor de custosas e especializadas bancas de advogados e consultorias tributárias. Pois o mercado ignorou as intenções do ministro Haddad e foi seguido nas projeções do Comitê de Política Monetária que manteve expectativas de déficit primário (receitas menos despesas, sem contar os bilionários custos do giro da dívida pública, que chegaram a R$ 586 bilhões em 2022) em torno de 2% do PIB. A proposta de Haddad previa a redução mínima à metade. Isso irritou muito o presidente Lula.

Pois na 4ª feira (8), o Supremo Tribunal Federal aprovou uma decisão que pode desempatar o jogo fiscal em dezenas de bilhões de reais a favor do Tesouro Nacional. O STF estabeleceu que sentenças antes consideradas definitivas em disputas sobre o pagamento de impostos podem ser alteradas. Ou seja, uma empresa pode ter levado anos brigando com o governo na Justiça, vencer em todas as instâncias e, ainda assim, não ter a segurança de que o problema terá sido superado. Se houver mudança na lei, a sentença favorável à empresa poderá ser revista e ela terá de fazer pagamentos retroativos referentes ao período em que ainda discutia com o governo na Justiça. Como descreveu o site “Jota”, especializado em questões jurídica e tributárias, “o julgamento discutiu especificamente a manutenção de sentenças que livraram empresas da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL)”. É justamente um imposto que afeta grandes bancos e dezenas de grandes empresas que já venceram algumas quedas de braços com a União, como Embraer, Pão de Açúcar, BMG, Zurich Seguros, Banco de Brasília (BRB), Holding Alfa, Samarco, Magnesita, Grupo Ale Combustíveis e Kaiser. Na Embraer, o Tesouro poderia arrecadar o mínimo de R$ 1,16 bilhão por ano.

O “Jota” acrescenta que a decisão do STF deve se estender a questões vinculadas a outros tributos, como o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) na revenda de mercadorias importadas, a contribuição patronal sobre o terço de férias e a exigência de Cofins para as sociedades uniprofissionais. A extensão retroativa das cobranças pode chegar a 2007, quando o STF considerou o CSLL constitucional. Uma corrente de advogados quer limitar a cobrança a cinco anos. O acórdão do processo esclarecerá as dúvidas. Certo apenas é que a cobrança começará em 90 dias, ou no próximo ano fiscal, conforme o imposto. Isto precisa ser precificado nas contas fiscais, como o voto de desempate do Carf.

Americanas, consulte o seu corretor

O tsunami vem aí. Na madrugada de 6ª feira (23h46), as Americanas, em Recuperação Judicial, divulgaram fato relevante à Comissão de Valores Mobiliário e ao mercado, atualizando a lista dos seus quase 17 mil credores. A dívida objeto de recuperação aumentou para R$ 47,2 bilhões, sem contar as obrigações trabalhistas com os 44 mil empregados do grupo, que têm prioridade. Os maiores credores são o trio de acionistas controladores (Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles), que são credores de R$ 3,458 bilhões de bônus globais emitidos pela holding que congrega as iniciais do trio. A B2W, uma das sub-holdings do grupo, é credora de R$ 3,3219 bilhões, o cartão Ame tem a receber R$ 751 milhões. A Ambev, outra empresa do trio, tem créditos de R$ 4,24 milhões contra a Americanas.

O maior credor, isolado, é o Bradesco, com R$ 4,846 bilhões (devidamente provisionados no balanço do último trimestre de 2022, fazendo o lucro trimestral minguar para R$ 1,595 bilhão). Mas o Itaú Unibanco, que se antecipou ao Bradesco e fez provisões de 100% para a sua posição direta de R$ 2,970 bilhões, incluindo créditos do R$ 267 milhões de sua agência nas Ilhas Cayman, pode reservar surpresas desagradáveis para investidores em alguns de seus fundos de renda fixa e multimercados (ações, moedas e títulos de crédito, incluindo debênture e certificados de recebíveis).

As Americanas pareciam sólidas até Sérgio Rial, que tinha saído do Santander para ser o CEO das Americanas (e depois renunciar), revelar, em 11 de janeiro, que havia um total de R$ 20 bilhões não lançados como dívida. Convém você consultar seu corretor se a maré alta dos juros das aplicações de “renda fixa” não esconde um tsnunami da Americanas (com o calote, o retorno seria zero) e a bomba estouraria no colo do “rentista”. Uma dezena de fundos do Itaú tinha quase R$ 2 bilhões alocados em papéis de créditos da Americanas. Centenas de condomínios e prefeituras podem levar calote.

E o tranco não será pequeno na imensa cadeia de fornecedores, liderada pela Samsung, que tem R$ 1,209 bilhão a receber. O único credor que não deve estar muito preocupado com o que tem a receber das Americanas é o dono do “Bar Cantinho da Vila”, terra de Noel Rosa e reduto de Martinho da Vila (nascido em Duas Barras-RJ): a empresa deixou um “pendura” de R$ 20,00.

GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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