A cada dia que passa mata-se a possibilidade do pequeno empreendedorismo, gerador de empregos e laboratório para futuras grandes empresas
Há uma longa luta pela frente, para dotar a economia de um mínimo de legitimidade social. O episódio das Americanas trouxe à tona os malefícios da concentração econômica das últimas décadas. O padrão Americanas – de fazer capital de giro em cima de atraso de pagamentos para fornecedores – é uma constante na economia, especialmente em setores cartelizados. Acontece com grandes hospitais, com planos de saúde.
No começo da abertura econômica, pelo menos até início dos anos 2000, antes se viam grandes empresas procurando levar princípios de gestão a seus fornecedores, especialmente pequenos e médios. Mesmo o governo Collor teve iniciativas louváveis como a Câmara da Indústrias Automobilística, juntando montadoras, centrais sindicais, fornecedores, trabalhando em cima de um mesmo objetivo, de fortalecer a cadeia produtiva do setor.
Com o tempo, essas boas práticas se esboroaram. O padrão vencedor passou a ser o da 3G, com sua tática de ver as empresas apenas como geradoras de valores imediatos, matando seu futuro, sua manutenção em troca de resultados de curto prazo.
Foi isso que levou ao assalto ao Estado brasileiro a partir do impeachment. O mesmo padrão dos biliardários russos e ucranianos, aproveitando momentos de trauma político para saquearem o Estado, adquirindo estatais por preços subavaliados e passando a exercer monopólios privados.
No Brasil de hoje, a cada dia que passa mata-se a possibilidade do pequeno empreendedorismo, o pequeno comércio, gerador de empregos e laboratório para futuras grandes empresas.
Matou-se a farmácia individual com o avanço das grandes redes de drogarias. E, em cima da cegueira cúmplice do CADE (Conselho Administrativo de Direito Econômico), desde os escândalos da formação da Ambev, quando funcionários públicos irresponsáveis, como Gesner de Oliveira e Milton Seligman aprovaram a operação, permitindo o esmagamento da rede de distribuidores da Antárctica.PUBLICIDADE
Haverá a necessidade de fortalecer o papel dos órgãos que atuam no setor – como o Sebrae – e de uma ampla limpeza nas agências reguladoras. O CADE continua um escândalo. É só ver sua total anomia em relação ao pacto de grandes fabricantes e grandes redes de supermercados, que articulam suas promoções e espaços em gôndolas, matando qualquer possibilidade de competição das médias empresas.
Na outra ponta, cometeu o ato escandaloso de “obrigar” a Petrobras a vender suas refinarias, a pretexto de instituir a competição no comércio de derivados. É um dado falso, já que cada refinaria é monopolista em sua área de atuação, pelos custos de transporte para viabilizar competição com outras refinarias. Mesmo assim, aceitou-se.
Um dos pontos a serem aprimorados é no nível de conhecimento do Supremo Tribunal Federal em relação a temas econômicos. Recentemente, a insuspeita Ministra Rosa Weber votou a favor da manutenção dos incentivos fiscais em Manaus para concentrados de guaraná. É um subsídio indecente, porque o fabricante não apenas não paga o IPI, mas fica com crédito para compensar na etapa seguinte, quando a produção é em outro estado.
A Ministra aprovou a manutenção do IPI sob o argumento de que a Zona Franca é uma prioridade nacional, para ajudar a desenvolver a região. Os concentrados de guaraná representam menos de 0,9% da força de trabalho. Mas o incentivo – somado ao sobrepreço praticado – permitiram à Coca Cola e à Ambev esmagar a concorrência das empresas menores. Na conta total nacional, ajudaram a desempregar pessoas, quebrar empresas e não pagar impostos.
Julgamentos com tais desdobramentos não podem ser efetuados sem audiencias públicas. O próprio STF aprovou a venda de subsidiárias da Petrobras, sem a necessidade de autorização do Congresso. Quem votou de boa fé nessa proposta não tinha a menor ideia sobre a lógica das empresas petrolíferas, na qual a integração de atividade é essencial.
Nem se fale de temas mais simples, como o homeschooling (a permissão para famílias educarem os filhos em casa). Pai da votação no STF, o ministro Luís Roberto Barroso não tinha a menor ideia sobre os abusos que são cometidos em famílias e o fato da escola ser a única forma de defesa dos filhos abusados. Na ignorância crassa que tomou conta de muitas cabeças, no período do impeachment, passou a tratar o ultraliberalismo como medida para todas as decisões. A esta altura, já deve ter se dado conta de que apenas repetia os princípios da ultradireita americana, importados pelo olavismo e bolsonarismo.
O grande nó é que as informações sobre temas complexos chegam aos Ministros pela porta da grande mídia – que padece de enormes dificuldades para entender temas complexos e trata todos os temas com a visão primário de que toda sorte de liberalismo e desregulação é virtuoso.
Em suma, para o Brasil começar a ter níveis mínimos de civilidade, há que se abrir uma discussão muito mais ampla do que o bolsonarismo explícito de Roberto Campos Neto.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)