Ficou famosa a máxima de Karl Marx, quando interpretou o golpe de Estado que levou Napoleão III ao poder, na França do século 19: Marx concluiu que a história acontece como tragédia e se repete como farsa. Entre os vários ensaios de tentativa de golpe de Estado para tentar reverter a eleição do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, enredos paralelos vão sendo revelados. O último deles foi a “denúncia bomba”, acompanhada da disposição de renúncia do envolvido, o senador Marcos do Val (Podemos-ES), do mandato conquistado em 2018, com validade até 2026. A história, meio rocambolesca, meio sem pé-nem-cabeça, não pode ser desprezível pelo objetivo claro de tentar envolver o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, que comanda os inquéritos das “fakes news” e do financiamento ilegal de campanha, e que enfeixou tudo ao assumir o comando do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em setembro último, foi desdenhada pelo próprio Alexandre de Moraes, que a tachou de uma operação das “Organizações Tabajara”, famosa nas paródias do Casseta&Planeta na televisão. Até agora, Marcos do Val não deu a data precisa da reunião ocorrida em dezembro, no Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente derrotado, que estava aparentemente mudo e recluso, em função de uma erisipela em uma das pernas, que o impedia de usar ternos.
Mal engendrada, como várias das tentativas de golpe que começaram a ocorrer no país antes (quando a credibilidade das urnas eletrônicas foi torpedeada até pelo Exército, para justificar, posteriormente, alegações de fraude na derrota, que se desenhava nas pesquisas eleitorais) e após as votações em 1º e 2º turno, que elegeram Lula para um 3º mandato presidencial, na 1ª derrota de um presidente em exercício, com todo o poder desmedido da máquina pública à reeleição, a fracassada tentativa de envolver o presidente do TSE numa escuta clandestina não tem as digitais das “Organizações Tabajara”, que perderam o carisma depois da morte, em 2006, de seu sócio fundador, o saudoso Bussunda (Cláudio Besserman Vianna). Está mais para o DNA das “Organizações Bolsonaro”.
É importante situar se o encontro a três no Alvorada foi antes ou depois do dia 12 de dezembro, quando houve a diplomação pelo TSE do presidente eleito e do vice, Geraldo Alkmin, mas à noite vândalos bolsonaristas fizeram um ensaio de golpe na capital federal, incendiando carros e ônibus e depredando a sede da Polícia Federal e uma delegacia da polícia civil do DF. Ninguém foi preso. Os fatos posteriores à frustrada explosão de caminhão tanque no Aeroporto de Brasília e à infame intentona do 8 de janeiro servem de ponto de ligação com a trama. Cabe à PF levantar todos os vários pontos obscuros.
Não foi à toa que antes mesmo de Marcos do Val ir à tribuna do Senado contar uma nova versão, coube ao filho 01, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), tentar afastar o pai da cena do crime, afirmando que a reunião não teve os 40 minutos declarados pelo senador denunciante e que o presidente Bolsonaro ficou o tempo todo calado enquanto o deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) – o deputado “bombadão”, ex-PM que virou desafeto declarado do ministro Alexandre de Moraes e foi mandado à prisão pelo ministro-presidente do TSE, mas ganhou indulto presidencial de Bolsonaro (voltou à prisão, em definitivo, até 2ª ordem, ao perder o foro especial, findo seu mandato parlamentar em 1º de fevereiro) – apresentava os planos para que o senador fizesse uma gravação clandestina que revelasse a falta de parcialidade de Moraes.
O objetivo era fazer um “strike”, além de desmoralizar o ministro como alguma palavra que não mostrasse imparcialidade, para que Moraes fosse afastado do inquérito das “fake news” e da presidência do TSE, o que estava em gestação era bem maior. Como se descobriu depois da decretação da prisão do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública de Bolsonaro, Anderson Torres (nomeado pelo governador reeleito, Ibaneis Rocha, para reassumir a Secretaria de Segurança do DF), mas o mesmo escafedeu-se dia 6 de janeiro, deixando acéfala a secretaria de segurança da capital federal dois dias antes do mega-ataque programado para o domingo, 8, contra os Três Poderes em Brasília, porque antecipara as férias que começariam dia 9 de janeiro. “Elementar, meu caro Watson”, diria Sherlock Holmes, ao se inteirar do caso. Sobretudo porque Torres foi para os Estados Unidos. Precisamente para a cidade de Orlando, onde estava o ex-presidente Bolsonaro desde 30 de dezembro. Bolsonaro evitou deixar impressões digitais desde meados de novembro. Torres quis se afastar da cena do crime. Mas uma busca da PF na casa de Anderson Torres, em Brasília, encontrou uma curiosa minuta de “Intervenção Federal na sede do TSE, com a prisão de Alexandre de Moraes e a anulação das eleições”.
Como o documento era datado de 12 de dezembro, era de se supor que a tal reunião a três no Palácio da Alvorada teria acontecido antes do dia 12 de dezembro. O do Val diz que não mordeu a isca. Mas só se dispôs a revelar a trama depois do insucesso triplo das invasões no dia 8, que também tiveram o fracasso da tentativa de corte de energia em boa parte do país com a explosão de torres de alta tensão de Itaipu (no Paraná e São Paulo) e de torres de transmissão, em Rondônia, da energia vinda das hidroelétricas do rio Madeira (AC). O caos seria fechado com a ocupação das refinarias da Petrobras, sendo aberto o caminho (assim imaginavam os golpistas) para o recurso da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), com o acionamento das forças armadas para assumir o controle do país. Não se sabe se o senador Marcos do Val, que tem mais ligações com os filhos de Bolsonaro do que com a democracia, chegou a encarnar o papel de “Rambo”, ele que é ex-oficial do Exército, se diz em seu perfil nas redes sociais “instrutor de segurança da Swat” e tropas de elite das polícias pelo mundo afora. O que veio à tona foi a versão de um jornalista que foi seu assessor e publicou a história da trama contra Moraes no site da “Veja”. Mas, quase ao mesmo tempo, Marcos do Val deu entrevista ao vivo ao site do MBL, com versão um pouco diferente. Ele disse que ligou para o ministro Alexandre de Moraes após os fatos do dia 8 de janeiro e marcou uma conversa pessoal no dia 9. Escolado, o ministro o recebeu no amplo salão branco do STF (com várias câmeras), até porque seu gabinete fora danificado pelos vândalos. Nada de bombástico foi relevado que levasse Moraes a demonstrar surpresa. O ministro solicitou que o senador fizesse uma denúncia por escrito. Mas, em vez disso, o senador capixaba pôs a boca no trombone e foi mudando as versões a cada inquirição; a da Polícia Federal solicitada, já após as denúncias públicas, por Alexandre Moraes. Esse filme barato de espionagem política e tentativa de golpe de Estado ainda tem muitos fios a serem puxados. Mas, qual um quebra-cabeça, as peças estão se encaixando para escrever golpe.
Relembremos Carlos Lacerda
Já escrevi aqui, comparando os acampamentos de “patriotas” à frente dos quartéis clamando por uma intervenção militar para impedir a posse de Lula à atuação das “viúvas de Carlos Lacerda”. Comunista na juventude, seguindo os passos do pai e do tio, Carlos Werneck de Lacerda tomou horrores de Getúlio Vargas, já virtualmente apeado do poder, em 1945, após a 2ª Guerra; quando foram convocadas eleições gerais, Vargas sacou da algibeira a candidatura do então ministro do Exército, marechal Eurico de Gaspar Dutra, para enfrentar o candidato apoiado por Lacerda, e que era tido como favorito, brigadeiro Eduardo Gomes. Pois Dutra ganhou com boa margem, e Lacerda não se conformou. Em sua coluna no “Correio da Manhã”, na qual cobria os trabalhos da Câmara e no Senado na então capital federal, batizada de “Na Tribuna da Imprensa”, vivia a desancar Getúlio Vargas e Dutra. Quando criou seu próprio jornal, “Tribuna da Imprensa”, em fins de 1949, explodiu em virulentos ataques a ambos. Destaque absoluto para o artigo, escrito em junho de 1950, contra a candidatura presidencial do senador Getúlio Vargas, que estava meio que retirado da vida pública (não tão mudo, porém, como Bolsonaro).
Vale a pena replicar os pontos fortes do artigo contra Getúlio Vargas (a eleição seria em 3 de outubro), e vermos as semelhanças com coisas que aconteceram de 2020 para cá (a começar pela reação de Bolsonaro e dos militares que o cercaram) contra a declaração de que a condenação de Lula (em 2ª instância) só seria válida se esgotadas todas as instâncias recursais – até o julgamento pelo STF, ou 4ª instância) e, posteriormente, a declaração de foro inadequado dos processos do juiz Sérgio Moro, da Vara Federal de Curitiba (PR), contra o ex-presidente. Os processos acabaram caducando e Lula foi solto e voltou à cena política. A primeira frase dura de Lacerda resume isso: “O Senhor Getúlio Vargas senador não deve ser candidato à presidência”.
Com Lula em campanha, a vantagens de Bolsonaro nas pesquisas começaram a cair, a partir da metade de 2020, pela conduta desastrosa do presidente Bolsonaro na pandemia da Covid-19, na qual morreram 700 mil brasileiros. Mas, repetindo o que disse Lacerda em 1950 –“Candidato não deve ser eleito” -, as redes sociais e mídias bolsonaristas batiam impiedosamente em Lula, tachado de o “maior ladrão da história”, como se não fossem as empreiteiras e fornecedores que mais superfaturavam descaradamente contra o Estado e as empresas estatais, desviando parte (já embutida nos preços) para irrigar partidos e políticos aliados (muitos são da base aliada de Bolsonaro, além do PT, MDB e PP). E a credibilidade das urnas era a carta extra do baralho.
Mais uma vez, vale lembrar Lacerda em 1950: “Eleito [Getúlio Vargas, ou Lula], não deve tomar posse”. Todos os movimentos a partir do não reconhecimento da derrota por Jair Bolsonaro, que se recusou a passar a faixa presidencial, prenunciavam o que viria pela frente (o frustrado golpe do dia 12, que tinha até decreto de intervenção no TSE e a anulação das eleições). Finalmente, o que aconteceu no dia 8 tenta repetir o que pregou Lacerda em 1950: “Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”. Como se sabe, Carlos Lacerda não deu trégua a Getúlio Vargas. Pistoleiros recrutados por cabeças da guarda pessoal de Getúlio Vargas fizeram um atentado contra Lacerda, na rua Tonelero, no qual morreu o major da Aeronáutica Rubem Vaz. Lacerda subiu o tom. A chamada “República do Galeão” entrou em pé de guerra, exigindo a deposição de Getúlio. O presidente se suicidou, em 24 de agosto. Mas o ato, com o floreio da “Carta Testamento” pelo jornalista José Soares Maciel Filho, redator habitual de seus discursos, fez Getúlio dar “o primeiro passo para a eternidade e entrar para a história”. Lacerda mesmo depois de ter rompido com o regime militar que implantou o golpe de 1964, por ter adiado as eleições presidenciais de 3 de outubro de 1965, adiadas para 1966 e suspensas “sine-die” (voltaram em 1985, de forma indireta e a normalidade só foi restabelecida em 1989, com a Constituição de 1988, na eleição em que Fernando Collor venceu Lula), seguiu na oposição, como um dos articuladores da “Frente Ampla” com seus antigos adversários na época da liberdade política (JK e Jango). Todos tinham um inimigo comum: a ditadura militar e fecharam questão pela redemocratização do país.
O ano que ainda não começou
Como escreveu Zuenir Ventura, houve “1968: o Ano que não terminou”. Pois estamos vivendo “2023, o ano que ainda não começou”, tal a resistência dos “manés” bolsonaristas em aceitar que perderam. O 6º capítulo de derrotas do Bolsonarismo para a Democracia, cujo pendão está na mão do governo Lula, deu-se esta semana no Congresso, em 1º de fevereiro, quando acabou o recesso efetivo do Legislativo e do Judiciário (embora ambos tenham retomado os trabalhos após a intentona de 8 de janeiro), no começo da nova legislatura com as eleições para as mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Os bolsonaristas cerraram fileiras em torno do ex-ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, eleito senador pelo PL do Rio Grande do Norte, que se bateu contra a reeleição de Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Ao fim e ao cabo de muitas bravatas de vitória de uma zebra bolsonarista, Pacheco recebeu 49 votos contra 32 de Marinho.
O ano legislativo começa esta semana. Resta saber se os ânimos estarão serenados ou prevalecerá a exibição truculenta de Eduardo Bolsonaro, o filho 03, reeleito deputado federal pelo PL-SP com 1 milhão de votos a menos que em 2018, que exibia, com a turma mais aguerrida do PL um cartaz nas costas (inclusive das deputadas) “Fora Lula”.
Os brasileiros estão cansados de brigas que ainda ocorrem até num elevador entre moradores do mesmo prédio, antes vizinhos, se não cordiais, pelo menos respeitosos. E a economia pede normalidade para que as engrenagens voltem a funcionar. Já bastam os custos das Americanas, cujo passivo, segundo os advogados administradores da Recuperação Judicial pode ter se elevado em mais de 10%, para R$ 47,9 bilhões. O porte da maior gigante do varejo brasileiro pode trazer muitos dissabores a seus 44 mil empregados (e as respectivas famílias), mas também à imensa cadeia de mais de 16 mil fornecedores e bancos. Os grandes sabem se defender com poderosos advogados. Os mais frágeis é que não podem sobreviver a calotes.
Que o digam os milhares de clientes, credores e fornecedores da Oi, a outrora poderosa tele “verde amarela”, que naufragou em 2017, com Recuperação Judicial de R$ 65 bilhões (só inferior aos R$ 85 bilhões da Odebrecht). Depois de forçar descontos leoninos nas dívidas (era pegar ou largar tudo), voltou à crise de insolvência e pediu na semana passada tutela cautelar da Justiça porque está novamente às voltas com dívidas de R$ 29 bilhões. Isto depois das operações de telefonia móvel ser retalhada entre as concorrentes TIM, Vivo e Claro.
O ano de 2022 está parecendo “O Dia da Marmota”: o tempo não passa.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)