Genocídio Yanomami e a proibição do aborto compõem um combo de pautas de políticos que oculta objetivos escusos por trás de falsas boas intenções.
- Nesta semana, em que deputados e senadores eleitos em 2022 estão assumindo seus mandatos, vale uma reflexão ainda à luz do genocídio da população Yanomami. Puxo esse assunto por ser a memória mais fresca do que significa a violência de estado, seja de quem preside o país ou de quem exerce um mandato parlamentar. Mas poderia ser à luz da tentativa de golpe em 8 de janeiro, ou da descoberta de uma bomba num caminhão às vésperas do Natal na capital. E por que não a raiz da perseguição atroz de uma criança de 10 anos no Espírito Santo, em 2020, que buscava o aborto legal depois de ser estuprada pelo tio?
Por trás dessas violências, estão parlamentares que as sustentaram e investirão na pauta moral em “nome da vida” em seus novos mandatos. Especificamente, contra o aborto legal e qualquer avanço a partir dos casos hoje contemplados. A articulação tem as deputadas Bia Kicis e Carla Zambelli, do PL, e a senadora Damares Alves, do Republicanos, na linha de frente. Mulheres que se unem ao machismo enraivecido de um Congresso masculino e relativizam um governo que mata indígenas, ou terroristas que poderiam ter explodido o aeroporto de Brasília.
É preciso reforçar quem são esses eleitos: os mesmos que se engajaram no negacionismo da vacina no auge da pandemia da covid-19 e espalham notícias falsas para envenenar o debate sobre o aborto. “É parte da estratégia de espalhar pânico moral”, explicou Jolúzia Batista, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, o Cfemea.
É um jogo sofisticado para barrar a lucidez coletiva e a verdadeira liberdade de escolhas. Seja a lucidez de aceitar o político eleito por uma maioria, seja a de admitir o direito ao aborto legal diante de uma violência praticada contra uma mulher ou, pior ainda, contra uma criança.
Uma reportagem do Intercept e do Portal Catarinas publicada esta semana mostra como o micropoder em um foro judicial no Piauí foi cruel com uma menina de 12 anos estuprada, que teve o direito de abortar legalmente interrompido após uma juíza que nomeou uma curadora para defender… o feto.
Cito também um projeto de lei da Assembleia Legislativa de Goiás que por pouco não limitou ainda mais o direito das mulheres no estado. Por unanimidade, 21 deputados estaduais (20 homens e 1 mulher) aprovaram um PL que determinava que, sem um alvará judicial para provar o estupro ou sem uma argumentação jurídica que explicitasse o risco de morte para a gestante, as mulheres de Goiás não poderiam contar com o direito ao aborto, garantido nesses casos desde 1940. O estado ainda poderia interpor recursos processuais ao pedido de interromper a gravidez.
Hoje, mesmo com uma legislação que em alguns anos vai completar um século, o aborto legal é tratado como um crime pela sociedade. A mesma sociedade que assiste aos escabrosos casos de anestesistas estupradores em salas de parto, de lideranças religiosas, treinadores, atletas famosos, políticos e até juízes. Todos estupradores. Goiás vive uma média de oito estupros por dia e o passou de 23° estado em número de estupros no país, em 2017, para a nona posição em 2021.
Felizmente, depois da derrota de Jair Bolsonaro nas eleições, o projeto, que só dependia da sanção do governador de Goiás, foi vetado.
Em outubro de 2020, o Brasil aderiu ao chamado Consenso de Genebra sobre saúde da mulher, elaborado por países ultraconservadores contra políticas de acesso ao aborto. Com Bolsonaro, o Ministério da Saúde ainda criou uma cartilha desencorajando o aborto para intimidar profissionais de saúde do sistema público.
A articulação perversa começou a ser quebrada quando o novo Ministério da Saúde anunciou o fim da participação do Brasil no Consenso de Genebra no último dia 16. A nova orientação levou a Assembleia de Goiás a arquivar em definitivo o PL antiaborto.
Não se pode ignorar a “coincidência” de pautas dos deputados e senadores que invocam a falsa preocupação com a “vida” nas tribunas do Congresso. Querem decidir pela mulher se ela deve levar a gravidez adiante, mas fecham os olhos para o extermínio de povos originários. Por trás do genocídio Yanomami e das “boas intenções” de integrar indígenas à sociedade, há uma milionária engrenagem de tráfico internacional de ouro. Por trás da defesa do aborto, uma antiga intenção de manter mulheres no cabresto sob uma falsa culpa cristã. É tempo de reagir.Carla JimenezColunista
CARLA JIMENÉZ ” THE INTERCEP” ( BRASIL)