O ano de 2023 está sendo pródigo em colocar na berlinda reputações sólidas, ou com imagens de sólidas. Malgrado ter falido na sua primeira investida no mercado financeiro, na Corretora Libra, muito ativa no mercado de ações, no começo dos anos 70, Jorge Paulo Lemann deu a volta por cima e construiu um império a partir da Corretora Garantia, que fundou em 1971, em parceria com o banqueiro Adolfo Gentil (Banco Aliança). O grande filão foi o mercado de títulos públicos de renda fixa, negociados no “open market”. Com um time mesclado por experientes operadores, como Luiz Cesar Fernandes, e jovens, que ia recrutar nas faculdades de Economia, caso de Marcel Hermann Telles, Jorge Paulo, dez anos mais velho, formou uma equipe inovadora e a corretora foi a pioneira entre os seus pares a virar Banco de Investimento, em 1976. Ao time logo se juntou no Banco Garantia o jovem Carlos Alberto Sicupira. Mergulhador e surfista nas horas vagas, ele raramente vestia terno no expediente, mas era obstinado no trabalho. Enquanto Marcel Telles comandava a mesa de operações em títulos, Beto Sicupira produzia inovações no banco. Foi dele a ideia de o Garantia sair da moldura exclusiva do mercado financeiro e aproveitar a diluição do controle acionário aberta pela nova Lei das Sociedades Anônimas, de 1976, ano em que também foi criada a Comissão de Valores Mobiliários, o xerife do mercado de capitais, para comprar posições estratégicas em empresas de capital pulverizado. A 1ª tentativa foi na Brahma, no final de 1980. Hubert Gregg, acionista controlador, fez arranjos com bancos e fundos de investimento para manter o controle. O Garantia mirou então nas Lojas Americanas e arrematou o controle em 1982. Animada pelos lucros na operação, comandada por Beto Sicupira, o Garantia armou novo bote na Brahma, que deu certo em 1989. Com a relevância dos dois negócios, o trio criou a GP Investimentos, que ficou mais robusto e diversificado que o Banco Garantia, que sucumbiu em 1998 aos sucessivos efeitos da crise asiática de 1997 e fez apostas erradas contra o real, sendo vendido ao Credit Suisse.
Dez anos depois a Brahma compra a Antártica e forma a Ambev, que se expande pela América do Sul e do Norte. Em 2004 o trio que havia vendido o controle da GP Investimentos, cria a 3G e, no mesmo ano, faz uma fusão com a belga Interbrew, fabricante da Stela Artois, e fica com posição minoritária, mas relevante na InBev. Com a compra da gigante americana Anheuser-Busch, fabricante da Budweiser, o trio passa a integrar o maior grupo cervejeiro do mundo. Antes, em 2006, a Americanas.com, braço eletrônico do grupo, reforça as vendas pela internet ao adquirir o site Submarino (mais adiante, adquire o Shoptime). Em 2010 compra o controle da Burger King e em 2013 põe mais molho na operação de hamburguer ao adquirir o controle da Heinz, em parceria com o megainvestidor americano Warren Buffet. A reputação do trio vai às alturas. Viram os brasileiros mais ricos do mundo (posto momentaneamente cobiçado por Eike Batista). Mas sofrem o primeiro arranhão na reputação depois que a compra na fabricante de massas Kraft (que se fundiu à Heinz) revela ter rombo contábil bilionário. Era um aperitivo do que viria a sacudir o mercado empresarial brasileiro dia 11 de janeiro, quando o executivo Sérgio Rial, que deixara o comando do Banco Santander Brasil em 2022, para assumir a presidência das Americanas (que fizera uma fusão em fins de 2021 com a Americanas.com), anuncia que a empresa apresentava “inconsistências contábeis” de R$ 20 bilhões de empréstimos bancários contraídos nas operações com os fornecedores não contabilizados em balanço. O terremoto sacudiu os meios empresariais, já em sobressalto com as revelações da profundidade do fracassado golpe de 8 de janeiro em Brasília.
Terreno minado
Como todos sabem, em períodos que antecedem os desfiles na Passarela do Samba, na Marquês de Sapucaí, as escolas ensaiam o samba enredo vencedor com a bateria e as coreografias das diversas alas em suas quadras. Nos barracões da Cidade do Samba são finalizados os carros alegóricos e as fantasias mais luxuosas (tudo sob aparente segredo). Mas há ensaios técnicos na própria Sapucaí (quando os bombeiros dão o OK). No caso dos atentados terroristas em Brasília, também tivemos vários ensaios. O mais eloquente foi na noite do dia 12 de dezembro, ainda sob o governo Bolsonaro, quando o presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva e o vice Geraldo Alkmin foram diplomados pelo Tribunal Superior Eleitoral. As arruaças, com queima de carros e ônibus, além das invasões parciais a uma Delegacia do Distrito Federal e à sede da Política Federal deram a dimensão da violência em gestação. O futuro ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, começou a articular com a Polícia Federal um esquema especial para a posse. Com a descoberta da trama da explosão de um caminhão-tanque de querosene de aviação no Aeroporto de Brasília, no sábado seguinte, com a prisão de dois dos participantes diretos da ação que foi abortada pela investigação da PF, o futuro governo Lula redobrou o esquema de segurança para a posse, em 1º de janeiro. E o ministro Alexandre de Moraes determinou a proibição do uso de armas em um vasto perímetro no entorno da capital. Esquemas de triagem, com revista prévia, em pontos determinados, dos que iriam assistir à cerimônia de posse, garantiram uma bela festa da Democracia.
Mas, quando era recomendável que o esquema de segurança perdurasse por pelo menos mais duas semanas, tudo foi relaxado na primeira semana do governo Lula. Com o agravante de que, com a troca simultânea nos comandos do governo federal e do governo do Distrito Federal (mesmo com a reeleição do governador Ibaneis Rocha), com a esdrúxula e perigosa volta ao cargo de Secretário de Segurança Pública do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública de Jair Bolsonaro, Anderson Torres (cuja Polícia Federal, estranhamente, não efetuou qualquer prisão no dia 12 de dezembro), a segurança para o funcionamento dos três Poderes em uma semana repleta de posses que atraíam correlegionários de todo o Brasil estava meio que entregue ao Deus dará. O corpo-mole dos comandos postos-chave da segurança do governo, em fase de mudança, e a inação provocada no governo do GDF com a troca prévia dos antigos comandantes por novos, que ainda precisavam se assenhorar das rotinas das escalas de comando, tudo agravado pela viagem repentina de Anderson Torres a Orlando (EUA), onde certamente acompanharia, com o ex-presidente Jair Bolsonaro, o início de um golpe militar, quando, após instalado o caos (que seria reforçado pelo blecaute causado pela explosão de mais de uma dezena de torres de transmissão de linhões de alta voltagem do complexo de Itaipu (no PR e em SP) e nas usinas hidroelétricas do Rio Madeira (RO), poderia levar à implantação da Garantia da Lei e da Ordem (a popular GLO), pela qual as forças armadas seriam compelidas a intervir. O bloqueio de diversas refinarias da Petrobras, a partir da zera hora do dia 9, completaria o caos e a perda de controle do governo Lula sobre a situação. Lula e Dino não morderam a isca da GLO. Decretaram intervenção na segurança do DF, enquanto Alexandre de Moraes afastou o governador Ibaneis Rocha, por 90 dias, enquanto se apuram as responsabilidades.
Apesar da estranha omissão da Guarda Presidencial, que operava no dia com contingente diminuto, quando as redes sociais falavam na “Tomada dos Poderes” dia 8, há dias, a desarticulação das forças de segurança do DF, o controle da situação foi retomado com o emprego de tropas regulares, que incluía a PM-DF, a Polícia Federal, o próprio batalhão de Guardas, acionado tardiamente para proteger o já vandalizado Palácio do Planalto, e o reforço de tropas do governo de Goiás (no encontro de 6ª feira com os governadores, Lula agradeceu ao governador Ronaldo Caiado pela pronta mobilização de tropas para reforço do contingente da Força Nacional. Tudo precisa ser reconstruído na vigilância dos espaços dos três Poderes na capital federal, como já defendemos aqui. O retorno das atividades na Câmara e no Senado, com a posse dos novos parlamentares eleitos em 2022 e a eleição para o comando das duas casas em 1º de fevereiro, será o primeiro grande teste.
Mas há várias camadas da trama que precisam ainda ser desvendadas. As investigações do MPF, que têm o ministro Alexandre de Moraes na retaguarda, ganharam musculatura, enfim, com o envolvimento da Procuradoria Geral da República. Não há de haver pressa, mas não deixarem de ser colhidas as provas devidas, respeitando-se o processo legal do Estado Democrático de Direito. Mas parece evidente que estava em curso um imenso golpe com seus mentores operando à distância. Inclusive nos comandos das Forças Armadas.
É sintomático que tão logo vieram à tona as prisões de mais de um milhar de pessoas nos atos terroristas que eram tramados nos acampamentos em frente ao QG do Exército, incluindo deputados da atual e futura legislatura, dois deputados já tenham corrido à Câmara para solicitar o “impeachment” do presidente Lula por ter o mesmo, numa clara figura de retórica, ao agradecer, em Buenos Aires, na cúpula dos presidentes da Celac, a solidariedade dos países da América Latina e da comunidade mundial contra os atos de terrorismo contra seu governo, mencionado que a ex-presidente Dilma, apeada do poder por “impeachment” no Congresso, sob a presidência do então presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, fora vítima de um golpe. Ora, o golpe de 8 de janeiro passou, ao vivo, para todo o país, nas telas das TVs. Só manobras diversionistas podem querer encobrir o sol com a peneira. Mas é o que teremos na volta das atividades do Poder Legislativo.
Um dos embates será causado pela intenção da oposição, dos aliados do ex-presidente Bolsonaro ao governo Lula, de instalar uma CPI para apurar os atentados de 8 de janeiro na capital (ou também no interior e nos dias antecedentes). O senador eleito Rogério Marinho (PL-RN), que almeja o comando do Senado, quer oficializar a instauração de uma CPI (não se sabe se mista, com membros do Senado e da Câmara ou apenas em uma das casas). É óbvio que, depois de três semanas de investigação, a manobra seria protelatória e tentaria anular provas e dar início a novas linhas de investigação, e embolar o processo. O governo Lula está contra a CPI, não só porque costumam acabar em pizzas – haja vista a CPI da Covid-19, que produziu tantas provas em 2021, mas a PGR não levou os inquéritos adiante – mas porque uma CPI atrapalharia a tramitação das reformas que pretende submeter ao Congresso, como a Tributária. Idem a resistência de Lula à armadilha da GLO ou outro tipo de intervenção que afetariam reformas no Congresso.
Inconsistências fiscais oficiais
O governo Bolsonaro comemorou na 6ª feira a divulgação de um inédito superávit primário do Orçamento da União de R$ 54,1 bilhões em 2022, o que não acontecia desde 2013. É muito cedo para soltar foguetes. O superávit primário não reflete o estado real das finanças do governo (assim como os balanços das Americanas não refletiam o verdadeiro tamanho de suas dívidas com fornecedores, intermediadas com bancos). É que o conceito de déficit ou superávit primário das contas do governo considera apenas o fluxo entre receitas de impostos, taxas e contribuições e despesas. Não leva em conta o custo da gigantesca dívida mobiliária do governo. Imagine, caro leitor, se o seu balanço de gastos pudesse se restringir apenas ao cotejo entre o que você ganhou e o que gastou, sem considerar os juros do cartão de crédito ou o empréstimo da casa própria (se for seu caso), ou ainda uma compra a prazo. Na 2ª feira, o Banco Central vai divulgar o resultado consolidado do setor público, incluindo estatais, estados e municípios, e os gastos com juros. De janeiro a novembro, os gastos com juros somaram R$ 527,4 bilhões, um aumento de R$ 179,1 bilhões sobre os 348,3 bilhões de 2021. Tudo indica que o aumento nas despesas com juros vai bater na casa dos R$ 200 bilhões.
A inconsistência fiscal é clara. O superávit de R$ 54,1 bilhões do governo central em 2022 foi gerado por receitas não recorrentes (antecipação recorde de dividendos das estatais, como a Petrobras, a venda do controle da Eletrobrás) e execução menor das despesas que o projetado. O relatório que a Equipe de Transição apresentava dia 29 de dezembro, com descalabro na educação, saúde e várias áreas e programas ministeriais que foram abandonados explicam o falso superávit, tão maquiado quanto o balanço das Americanas. Mas a morte de Pelé interrompeu por dois a três dias a exploração do caso e aí veio a posse no dia 1º de janeiro. Se despesas bilionárias não foram executadas – e a maioria beneficiaria as camadas mais pobres da sociedade – está claro que o tal superávit é falso (à base de “restos a pagar”).
Mas não é só essa a questão. Toda a ação do governo Bolsonaro na Economia, sob o comando do ex-ministro Paulo Guedes, foi para turbinar as chances eleitorais do presidente, que não se reelegeu. Os gastos de R$ 200 bilhões com juros aos rentistas e ao sistema financeiro foram rolados e garantidos com o sacrifício de programas para os mais pobres. Mas a manobra eleitoreira para baixar artificialmente a inflação, mediante redução dos impostos (federais e estaduais dos combustíveis, sobretudo a gasolina, a energia elétrica e as comunicações) produziu uma economia artificial. O governo federal baixou os impostos porque sua arrecadação cresceu muito com a escalada dos preços do petróleo e alguns produtos agrícolas, devido às consequências da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, que completará um ano em 28 de fevereiro. Mesmo baixando impostos, ficou um elevado saldo em caixa (mas em déficit com a sociedade pelos motivos já explicados). A baixa dos preços, via impostos, com o chapéu alheio (na reunião com o presidente Lula, na 6ª feira), os 27 governadores, incluindo a em exercício do DF, apresentaram uma conta de R$ 33,5 bilhões de receitas perdidas com a redução do ICMS para 17/18%, que pelo “Estado de Emergência Econômica” aprovado pelo Congresso, em julho, até 31 de dezembro de 2022, teriam de ser compensados pela União.
Não é só esta conta que está maquiada. A volta dos impostos (mesmo que em alíquotas menores – a reforma tributária recomenda cautela no retorno imediato ao estado anterior) vai pressionar a inflação, artificialmente reduzida da faixa de 12% até maio, para 5,79% em dezembro de 2022. Para evitar um choque inflacionário no começo do governo, enquanto se discute o rearranjo com os estados, estendeu-se isenção/redução dos impostos do PIS/Cofins à gasolina e ao etanol até 28 de fevereiro. Mas o Banco Central, que reúne o Comitê de Política Monetária (Copom) nesta 3ª e 4ª feira, ficou em teias de aranha. Ele elevou os juros da Selic para 13,75% ao ano em 3 de agosto para lidar com uma inflação na faixa dos 10%. Mas a inflação foi artificialmente reduzida para 5,79%, com queda em gasolina e no item Transportes. Entretanto, o próprio IBGE, que calcula a inflação do IPCA, diz que os preços teriam subido 9,56% sem a baixa artificial dos impostos.
É dentro deste dilema, em que se enredou o Banco Central, que se situa a questão das metas de inflação. Elas estouraram em 2021 e 2022, porque houve choques externos e má gestão de estoques de alimentos no mercado doméstico (o “país celeiro do mundo” deixa não só os preços dos alimentos muito acima das metas pelo 3º ano seguido – em 2022 subiram 11,64% – como deixa uma parte da população passando fome [nem vou falar da tragédia desumana do genocídio contra o povo Ianomami, que não pode ser obra de pessoas humanas, mas quando se recorda a falta de empatia com os quase 700 mil mortos pela Covid-19, está tudo explicado]). A meta é artificial e pode estourar novamente em 2023. Ao se elevar a meta, o Banco Central não ficaria obrigado a manter o freio de mão dos juros puxado, travando a economia e o emprego. Mas ao tirar um pouco dos ganhos dos rentistas, o governo que está em palpos de aranha mexeu num vespeiro (ao menos nos meios econômicos).
É incrível, caro leitor, que a indignação com a maquiagem dos balanços das Americanas não se estenda ao que fez o governo Bolsonaro na área econômica. E não foi só Paulo Guedes. O Banco Central divulgou esta semana uma “errata” de suas contas cambiais que é de corar os executivos das Americanas e da Price Waterhouse Coopers, que fazia a auditoria dos balanços e teriam “comido mosca”. O BC tinha anunciado um saldo positivo de US$ 9,574 bilhões no fluxo cambial de 2022 (R$ 48,827 bilhões). Ao revisar contas mal lançadas, conforme o próprio BC, o que era saldo virou déficit de US$ 3,233 bilhões (R$ 16,488 bilhões). Ou seja, houve um desvio de US$ 12,787 bilhões, ou R$ 65,213 bilhões. Ou de quase uma vez e meia o tomado da Recuperação Judicial das Americanas, de R$ 41,3 bilhões. Ainda há muita sujeira a ser revirada embaixo do tapete.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)