Olivério Ferreira passaria para a história do samba carregando o nome do seu orixá protetor e da escola que fez parte por mais de 50 anos
“Sou eu o diretor de harmonia. Apito para entrar a bateria. Sou eu quem manda o Mestre Sala. Se apresentar com a Porta Bandeira Maria“, com os versos acima o mangueirense Jorge Zagaia prestou uma das mais belas homenagens aqueles que são os responsáveis pelo sucesso dos desfiles das escolas de samba. Com o crescimento e profissionalização do espetáculo, respeitar o tempo estabelecido virou um grande desafio para as agremiações, e o diretor de harmonia ao desempenhar seu papel, assume as vestes de maestro dessa verdadeira ópera popular que encanta e emociona os integrantes das escolas e o público espectador. Diretor de harmonia foi composta para homenagear aquele que além de grande mestre na arte de versar nas rodas de partido alto é reconhecido por seus pares como um dos grandes diretores de harmonia do carnaval carioca.
Nascido em 19 de janeiro de 1923, Olivério Ferreira passaria para a história do samba carregando o nome do seu orixá protetor e da escola que fez parte por mais de 50 anos, em 2023 Xangô da Mangueira completaria 100 anos, porém como a maioria dos grandes mestres da cultura popular a efeméride passará despercebida. Segundo o jornalista e pesquisador Pedro Alexandre Sanches, “a importância de Xangô para a história do samba é maior que a lembrança atual de seu nome”.
Apesar de nascido no Rio Comprido e ter passado por lugares como o morro do Turano e pelo mítico bairro do Estácio, berço do samba moderno criado por nomes como Ismael Silva, Bide, Heitor dos Prazeres e tantos outros bambas, Xangô passou a infância em um sítio na região de Paracambi, na Baixada Fluminense. A vivência na área rural deixaria marcas em sua obra, principalmente pela forte presença do toque do jongo, do calango e até do repente nordestino em suas composições. Como o leitor pode perceber, ao contrário daquele que fora um dos seus grandes sucessos, Olivério não veio de Minas Gerais, sua mãe sim, uma mineira nascida em Ubá que junto de seu pai nascido em Campinas, as recordações dos pais seriam grande influência no partido alto urbano de influência caipira desenvolvido por Xangô.
Até o começo da década de 1950 Xangô foi o intérprete principal da Estação Primeira de Mangueira sendo a voz de sambas de Cartola, Carlos Cachaça, Alfredo Português e outros grandes compositores. Xangô foi a voz da verde e Rosa até o momento que passa o bastão para José Bispo Clementino dos Santos, o Jamelão, aquele que até hoje representa a voz das escolas de samba e do carnaval carioca. Daí em diante passa a ocupar a função de diretor de harmonia da escola, sob sua direção a escola se consagraria sete vezes campeã, ainda seria integrante da bateria e da ala de compositores da verde e rosa.
Ao longo da década de 1960 Xangô participaria de diversos espetáculos, sendo figura frequente nas noitadas de samba do Teatro Opinião, onde travou verdadeiros duelos, improvisando ao lado de mestres como Aniceto e Campolino e principalmente, trazendo ao grande público seu repertório. No conturbado ano de 1968, ao lado de Amaury Jório, presidente da Associação das Escolas de Samba da Guanabara é um dos fundadores do Conselho Superior das Escolas de Samba, órgão que buscou aglutinar críticos, estudiosos e personalidades do samba com o intuito de fortalecer as agremiações e os desfiles carnavalescos.
Com a abertura do mercado fonográfico para o samba na década de 1970, Xangô passaria a frequentar com maior assiduidade os estúdios de gravação. Assim, em 1970 participaria do disco Os Partideiros – Sambas do Partido Alto, além de Xangô que pode ser ouvido nas faixas Recordações de um batuqueiro (Xangô da Mangueira e J. Gomes) e Partido da remandiola (Xangô da Mangueira e Waldomiro do Candomblé), o álbum lançado pela gravadora Copacabana traz a única gravação em disco do imperiano Silas de Oliveira, e também outros grandes nomes das escolas de samba do Rio de Janeiro como Cabana (Beija-Flor), Preto RIco (Mangueira), Geraldo Babão (Salgueiro) e Edgard Canela Fina (Império Serrano). Na Copacabana, Xangô também lançaria seu primeiro disco solo, em 1972 viria a público, O rei do partido alto, álbum que traz composições já conhecidas na voz de interpetes como Clara Nunes, Martinho da Vila e Clementina de Jesus e sambas como o invocado Se o pagode é partido, parceria com Geraldo Babão e a já citada Diretor de harmonia, onde Xangô divide o microfone e versa com o autor Jorge Zagaia. Ainda na Copacabana Discos participaria do clássico Raízes da Mangueira nas faixas Jequitibá, samba de Zé Ramos e Itapoan, no álbum ainda podem ser ouvidos Jurandir da Mangueira, Babaú e Jorge Zagaia.
Porém seria na carioca Tapecar onde Xangô lançaria seus principais trabalhos, O velho batuqueiro, disco lançado em 1975 traz faixas como a autoral Carolina, meu bem, a nostalgica No tempo do mil réis, parceria com Sidney da Conceição, então compositor da Estácio de Sá, já da lavra do veterano Aniceto do Império é o partido brejeiro Namoro de Maria. Em 1976 é apresentado aos amantes do samba o fundamental Chão da Mangueira, onde o destaque são as clássicas Festa de Santo Antônio, composta por Dona Ivone Lara e que até hoje é trilha obrigatória nas festas de samba rock, as parcerias com Waldomiro do Candomblé, Amaralina e Catimbó e o partido Isso não são horas, onde no melhor estilo das rodas de versadores a faixa é dividida com Jorge Zagaia e Catoni. Em 1978 seria lançado Xangô da Mangueira volume 3, o disco que encerra o ciclo do cantor e compositor na gravadora traz também o prenúncio daquilo que seria o pagode de fundo de quintal, estilo que viria a ganhar destaque na década de 1980, a influência aparece nas faixas A cobra sussuarana e Mulher da melhor qualidade (o samba seria revistado por Xangô nos anos 2000 em gravação com os paulistanosdo Quinteto em Branco e Preto) sambas assinados pelo imperiano Beto Sem Braço e pelo salgueirense Almir Guineto. O disco traz ainda composições dos veteranos Nilton Campolino e Padeirinho, do partideiro Roque do Plá e duas faixas autorais assinadas com seu mais constante parceiro, Waldomiro do Candomblé.
Apesar de ter abraçado o budismo nos últimos anos de sua vida, o velho Olivério jamais deixou de carregar consigo o nome de seu orixá. Infelizmente o seu centenário não renderá grandes homenagens por parte daqueles que detêm o poder ou que supostamente ditam os rumos da cultura, se seu nome não batizou grandes avenidas ou praças, nem ganhou estátuas, a homenagem próxima ao Palácio do Samba, como é conhecida a quadra da escola do velho partideiro representa o reconhecimento maior aquele que figura entre os verdadeiros griots da comunidade verde e rosa.
Como muitos compositores de sua época, Xangô foi estivador no cais do porto, trabalhou também como operário, segurança e funcionário público, porém, seria na função de diretor de harmonia e como mestre na arte de versar que ao lado de grandes nomes como Jorge Zagaia, Pelado, Preto Rico, José Ramos, Comprido, Padeirinho, Jajá, Hélio Cabral, Geraldo das Neves e o também quase centenário Hélio Turco, hoje presidente de honra da Estação Primeira, que Xangô pontificaria como uma das mais destacadas figuras do panteão verde e rosa que fez o samba ecoar pelos botecos e tendinhas do Buraco Quente, Chalé, Pendura Saia e tantos outros lugares de samba do morro da Mangueira.
DANIEL COSTA ” JORNAL GGN” ( BRASIL)
Daniel Costa é historiador, pesquisador e compositor integrante do G.R.R.C. Kolombolo Diá Piratininga.