QUESTÕES A RESOLVER ATÉ O FIM DE JANEIRO

CHARGE DE MIGUEL PAIVA

O desastre do esquema conjunto de “segurança” no Distrito Federal, no último domingo, 8 de janeiro, que permitiu a série de atentados “terroristas”, com depredações e roubos de peças, contra o conjunto de edifícios e salas do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal, pode ser comparado à defesa do Brasil armada por Felipão no fatídico 7 x 1, no estádio do Mineirão. Também num dia 8 (junho de 2014), assim como a turba bolsonarista foi gentilmente “escoltada” pela PM do DF até a Praça dos Três Poderes, os jogadores alemães ganharam salvo-conduto da zaga brasileira. Quase oito anos depois, após perder de 5 X 0 do Flamengo no Maracanã, Felipão, então à frente do Club Athletico Paranaense, balbuciou que “tanto fazia perder de um ou de cinco”. Nenhum repórter emendou: “E de 7 a 1?”.

As falhas sucessivas – por omissões injustificadamente propositadas – deixam cada dia mais claro que havia o manifesto intuito, desde o episódio da vandalização noturna no dia 12 de dezembro, quando o Tribunal Superior Eleitoral promoveu a diplomação do presidente eleitor Luís Inácio Lula da Silva e do seu vice, Geraldo Alkmin, de criar um tumulto que fugisse ao controle das forças regulares de segurança. Se isso ocorresse, motivaria a invocação, pelo presidente da República, do estado de “Garantia da Lei e da Ordem (GLO)”, previsto na Constituição Federal, a partir da qual estaria autorizado o uso das Forças Armadas, para impor a ordem, diante do esgotamento das forças tradicionais de segurança pública. A última descoberta, feita esta semana, pela Polícia Federal, em cumprimento de mandado de busca na residência do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública de Jair Bolsonaro, Anderson Torres, nomeado secretário de Segurança do DF no 2º governo de Ibaneis Rocha, em cujo 1º governo exercera o cargo até ser chamado a substituir Sérgio Moro, em abril de 2020, mas que estava de férias nos Estados Unidos, justamente em Orlando, onde estava seu ex-chefe, o ex-presidente Jair Bolsonaro desde o dia 30, configura a gestação de assaltos à democracia para reverter o resultado eleitoral e implantar uma ditadura sob tutela militar no Brasil. Com ou sem Bolsonaro no comando.



Cadeias sem comando

É irrefutável que ocorreram falhas múltiplas nas cadeias de comando que deveriam zelar pela segurança do Distrito Federal e particularmente na Praça dos Três Poderes. Ser “engenheiro de obra feita” é fácil. Mas, parece evidente que se o ministro Alexandre de Moraes, do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, não tivesse determinado a suspensão do porte de arma no entorno de Brasília, após as arruaças de 12 de dezembro, quando hostes bolsonaristas, que mantinham acampamento diante do QG do Exército em Brasília, clamando pela “intervenção federal”, disfarce em substituição ao escancarado pedido de “intervenção militar”, espalharam o terror no Eixo Monumental e tentaram invadir uma delegacia e a Polícia Federal, hoje estaríamos contando a história de sangrenta guerra civil ou de um golpe antidemocrático (o que, provavelmente, nos impediria de estar escrevendo/ou lendo essas linhas sob um regime de exceção. A descoberta, a tempo, pela Polícia Federal, do planejamento de um atentado à bomba, com explosão de caminhão tanque com querosene de aviação na retaguarda do Aeroporto de Brasília, mais os planos de explosão de subestações de energia nas cidades-satélites, configuravam alto risco de atentados no dia da posse, em 1º de janeiro.

Confesso: apesar de todas as medidas preventivas e varreduras prévias para a admissão de um público mais restrito na Praça dos Três Poderes, onde transcorreram as cerimônias de posse de Lula e do vice Alkmin, fiquei preocupado o tempo todo com a eventual presença de um franco atirador disposto a alvejar o presidente e a democracia brasileira. A existência de centenas de milhares de CACs fortemente armados e incentivados a ter múltiplo porte de armas pesadas e letais no governo Bolsonaro reforçava os temores. Mas tudo correu magnificamente bem. Não houve transferência de faixa. Entretanto, uma comissão de representantes do povo brasileiro, reunindo as minorias e maiorias marginalizadas por Bolsonaro – um velho cacique índio, menino negro, um metalúrgico, um portador de deficiência e uma catadora de resíduos – entregou a faixa a Lula e subiu a rampa com ele, acompanhado da primeira-dama Janja da Silva e da vira-lata “Resistência”. Nada mais simbólico.

Nas semanas seguintes não era admissível que houvesse relaxamento das rígidas normas de segurança. As sucessivas cerimônias de posse de 37 novos ministros envolveriam deslocamentos de muitas pessoas até a Esplanada dos Ministérios e o Palácio do Planalto. O ir e vir de pessoas era motivo de redobrar as medidas preventivas dos dias que antecederam a posse. Eu imaginava, como deveria pensar qualquer pessoa de bom senso responsável pela segurança do governo federal, que a rigidez do protocolo perdurasse até meados de janeiro. Mas não. Estranhamente na véspera da escalada programada para domingo, 8 de janeiro, conforme se divulgava abertamente nas redes sociais bolsonaristas, houve sucessivas dispensas de contingentes que deveriam estar de prontidão. Uma cumplicidade com o golpe que não veio.

Brasília tem um duplo controle de segurança: o governo do Distrito Federal – que teve Ibaneis Rocha (bolsonarista de carteirinha, alojado no MDB-DF) reeleito e que logo convocou Anderson Torres para voltar ao cargo, mas o deixou entrar de férias – é responsável pelo policiamento da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes, por intermédio da Polícia Militar (PM-DF). Para tanto, recebe a maior transferência da União entre as diversas PMs para a função de segurança pública (R$ 10,19 milhões estão reservados para 2023). Ou seja, cabe à PM-DF zelar pela segurança das instalações externas do Congresso Nacional (Câmara e Senado), que dispõe de uma Polícia Legislativa para a proteção interna, e do Supremo Tribunal Federal, além do Superior Tribunal de Justiça e demais instâncias federais. Mas o Palácio do Planalto, assim como outros prédios da Presidência da República, como o Palácio da Alvorada (residência oficial do presidente), o Palácio do Jaburu e a Granja do Torto, conta com a proteção específica do Batalhão de Guarda Presidencial. Ele é acionado pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI), dominado durante quatro anos pelo general Augusto Heleno, ferrenho adversário de Lula e que tem tradição golpista desde que era auxiliar do então ministro do Exército, Sylvio Frota, que tentou uma cartada contra o presidente Geisel, em 12 de outubro de 1977, e foi demitido pelo general-presidente. O GSI tem ainda a obrigação de zelar pela segurança do presidente e seus familiares, e do vice e família, incluindo os seus deslocamentos no país.

Pois o GSI, sob a direção do general Gonçalves Dias, homem de confiança de Lula, mas sem ainda ter trocado todas as peças da engrenagem antiga do GSI, dispensou a prontidão do Batalhão de Guarda no sábado à noite. Se considerarmos que a cadeia de comando da Secretaria de Segurança do DF também tinha sido trocada por Torres, que se ausentou (de férias, oficialmente válidas a partir de 9 de janeiro) de Brasília no meio da semana e foi se encontrar com Bolsonaro em Orlando (Flórida-EUA), não precisa juntar os pontos para perceber uma ardilosa armação de golpe. As explosões nas torres de transmissão de energia elétrica das usinas do Rio Madeira, em Rondônia, e de Itaipu, no Paraná e em São Paulo, mostram a extensão nacional do golpe. Com a energia interrompida em boa parte do país, seria o caos e a justificativa para a GLO e a intervenção das forças armadas, supunham os mentores.

Para culminar e tornar a situação mais complexa, sobre as duas instâncias de segurança da capital paira o Comando Militar do Planalto. O CMP, que de agosto de 1983 a novembro de 1984, nos estertores do regime militar, esteve sob as ordens do general Newton Cruz, polêmico ex-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), falecido no ano passado, ficou tristemente famoso pelo rompante do general Newton Cruz, enlouquecido durante repressão das manifestações ocorridas em Brasília para aprovar a emenda Dante de Oliveira (PMDB-MS) das eleições diretas, em 198: montado em um cavalo branco, o general Nini brandia um chicote e conclamava as tropas do CMP a investir sobre os manifestantes e veículos na Praça dos Três Poderes.

Na redemocratização, as funções foram redistribuídas pela Constituição de 1988 e a autonomia política do governo do Distrito Federal (antes o governador local era nomeado pelo presidente da República) passou a exigir duplo entrosamento na cadeia de comando. Vale lembrar que o Exército dispõe das forças do 11º Regimento Militar no DF, do Comando de Operações Especiais (sediado a poucos quilômetros, em Goiânia), uma tropa preparada para reagir a operações terroristas, e ainda o Batalhão de Guarda Presidencial, da Polícia do Exército, e ainda o 1º Regimento de Cavalaria, no entorno de Brasília.



Como refazer os comandos?

Talvez tenha sido sorte ou astúcia de Lula evitar tanto a convocação da GLO quanto da Força Nacional para repor a ordem na capital federal. Se Lula declarasse fraqueza diante dos terroristas e arruaceiros, que danificaram o patrimônio nacional, mas não conseguiram abalar os alicerces da democracia, estaria configurado um campo para instigação dos radicais insuflados por Jair Bolsonaro a tentar uma intervenção no governo legitimamente eleito. Lula preferiu somar a força da legitimidade dos Três Poderes da República, reunidos ainda na noite de domingo em Brasília. Determinou a intervenção federal na perigosamente inoperante Secretaria de Segurança do DF, enquanto o ministro Alexandre de Moraes determinava o afastamento, por 90 dias, do governador do DF, Ibaneis Rocha, diante da omissão de segurança do DF.

Ato contínuo, convocou na 2ª feira uma reunião conjunta dos chefes do Judiciário, do Legislativo e dos executivos das 27 unidades da federação, independente das divergências político-administrativas, para selar um pacto mínimo em torno da defesa dos postulados democráticos.

Como se pode garantir a segurança dos Três Poderes em Brasília enquanto não for feita uma varredura nos diversos escalões que deveriam zelar pela integridade dos poderes? O governo Lula já cogitava criar uma Guarda Nacional (que funcionou do Império até 1922), para emergências de segurança, em lugar da dispersa Força Nacional e das próprias Forças Armadas, que deviam ficar circunscritas à defesa nacional das fronteiras e do espaço aéreo e da plataforma marítima. Getúlio Vargas já passou por situação semelhante, quando viu o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, totalmente desguarnecido. Como não confiava nas forças policiais do então DF e havia muitas traições nos comandos das Forças Armadas, optou por criar uma “guarda pessoal”, chefiada por seu guarda-costas, Gregório Fortunato, que acabou por lhe trazer tantos dissabores e contribuiu para o suicídio.

E pensar que Juscelino Kubitschek resolveu construir Brasília, no Planalto Central, para que os poderes da República não ficassem tão à mercê da pressão popular. Acontece que a capital, desenhada pelo Plano de Lúcio Costa, com a arquitetura de Oscar Niemeyer, foi projetada para 700 mil a 1 milhão de habitantes no território do Distrito Federal. Hoje são 3,8 milhões de habitantes. Se somarmos o entorno do DF, com área extensiva a Goiânia e outras cidades próximas, são quase 6 milhões. E a ligação rodoviária da capital federal com os principais estados do país facilitou a vinda da massa de manobra golpista por ônibus fretados.

Considero que há urgência de estabelecer a nova divisão de tarefas enquanto o Congresso não retomar as atividades da nova Legislatura que tomará posse em 1º de fevereiro, com uma composição original bem mais alinhada com o frustrado 2º mandato de Jair Messias Bolsonaro. Brasília será alvo de novas caravanas de correlegionários instigados pelos radicais eleitos nas urnas. As mesmas urnas que valeram no 1º turno para que todos chegassem ao Congresso, mas foram consideradas “fraudulentas” por Bolsonaro e seu partido, o PL, apenas no 2º turno. Não se deve esperar a volta dos tempos do general Nini, mas é inviável a repartição da liberdade, sem responsabilidade, que prevaleceu, propositadamente, na transição dos governos.

O episódio também deveria levar o governo a mudar os métodos e avançar na agenda da digitalização das atividades federais. Portugal, nossa pátria-mãe, é um dos exemplos de evolução em benefício do cidadão dentro da União Europeia. O país mais pobre e atrasado da UE deu a volta por cima. Aprender é fácil: os manuais de instrução estão todos escritos em português (de Portugal). Não precisam de tradução, só um esforço maior de leitura.



O papel ou papelão de Bolsonaro

As provas que estão sendo levantadas pela PF e o MPF contra mais de 1.500 manifestantes detidos por atos contra a democracia vão permitir identificar os verdadeiros mandantes e financiadores dos infames atentados. O próprio relato do ex-presidente Jair Bolsonaro, de que seus problemas de obstrução intestinal que motivaram sua internação em Orlando na 2ª feira, 9 de janeiro, decorreram da noite agitada de domingo, quando andou trocando informações com fontes bem situadas no Brasil e acabou desobedecendo às recomendações médicas ao comer muitas bananas na noite de domingo, revelam que ele monitorava as intenções de golpe à distância. É imprescindível que se investigue a fundo todos os indícios de que ele, que incitava a massa de manobra nos últimos dois anos a invadir o STF e a afrontar os seus ministros que interpretavam a Constituição para determinar o cumprimento da Lei, instigou a horda Bolsonarista antes, durante e depois do processo eleitoral do qual foi perdedor.

Se faltavam mais indícios, seu “twitter” na 3ª feira, endossando que Lula não tinha sido eleito nas urnas fraudadas, mas escolhido pelo STF que o libertou – uma deslavada “fake news” que endossava as ações infames de domingo contra os Três Poderes e a democracia -, ainda que apagado horas depois (o que reforça a suspeita, gravíssima, de que o filho 02, o vereador Carlos Bolsonaro, e outros integrantes do “gabinete do ódio”, usavam a conta do ex-presidente quando estava no exercício do cargo), motivou a Procuradoria Geral da União a incluir o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro entre os investigados na trama do golpe. A “Minuta do Estado de Defesa no TSE”, encontrada na casa de Anderson Torres – que foi preso ontem ao voltar ao país -, deve reforçar o espectro da investigação. Após longo período de letargia e inação, parece que até o PGR, Augusto Aras, enxergou a realidade à sua volta.

A suspeita de Marina Silva

Com um levantamento prévio de pilhas de infrações ao meio ambiente relegadas a 2º plano, com altura superior às ideias golpistas acumuladas pelo ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, que não teve como destruir no picador de documentos, pois foram encontrados em um armário de sua residência antes que voltasse ao Brasil e apagasse algumas incriminações, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, levantou uma pista sobre alguns dos manifestantes depredadores em Brasília: são pequenos e grandes empresários do agronegócio que tinham interesse em anular possíveis notificações e multas contra as agressões que fizeram ao meio ambiente, na derrubada de florestas nacionais; em limites acima dos permitidos em determinados biomas, todos sujeitos a anuência prévia do Ibama; bem como em terras indígenas, para exploração de garimpo ou de madeiras nobres.

[Por falar em Marina, sua presença, na companhia do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, no “Forum Econômico Mundial”, esta semana, em Davos (Suíça), vai ser a prova dos nove de que a questão climática e o respeito ao meio ambiente são tão importantes quanto a política fiscal aos olhos dos empresários, banqueiros e autoridades dos países de economia mais avançada. Será mais uma prova da insensatez da gestão Bolsonaro].

Digo mais: a varredura dos insufladores e ativistas deve envolver os beneficiários ilegais de auxílios do governo Bolsonaro (Auxílio Brasil de R$ 600 e as mesadas a caminhoneiros autônomos e taxistas). Mas não devem ficar de fora os devedores do fisco e alvos de multas (mesmo que minguadas na gestão Bolsonaro) da máquina pública federal. Elenco nesse grupo o pastor Silas Malafaia, que mesmo incluído no perdão geral de multas que somam R$ 2 bilhões entre o grupo de pastores beneficiados, contra apoio dos respectivos currais eleitorais que controlam, tinha uma pendência de R$ 24,5 milhões com a Receita Federal. Foi esse um dos motivos pelos quais embarcou com o então presidente para velar a Rainha Elizabeth III na Catedral de Westminster, em Londres, em setembro. Mas a multa segue pendente pois não envolve a ação pastoral da Assembleia de Deus Vitória em Cristo.

A estranha designação (anulada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad) de vários ex-funcionários da Receita Federal em bem remunerados cargos de adido no exterior sugere a possível ligação daqueles guardiões da Receita com atos para proteger os “seus familiares e amigos” da ação do Fisco (assim como Bolsonaro prometeu na reunião de 22 de abril de 2020 e fez na PF).

GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL Do BRASIL” ( BRASIL)

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