- Certa vez, numa festa dos anos 1950, em Copacabana, no Rio de Janeiro, época de ouro do chamado ‘café society’, elegantes mulheres cercaram o indigenista Noel Nutels (1913 – 1973), que acabara de voltar do Parque do Xingu, onde era um dos responsáveis pela Vila Xavantina. Elas desejavam saber se não tinha nenhum temor de trabalhar junto aos índios e ser devorado por eles – como acontecera com alguns dos primeiros exploradores do litoral brasileiro. Uma delas teria perguntado diretamente: “Você não tem medo de ser comido por aqueles antropófagos?” Bem-humorado, Nutels, judeu russo, nascido na região de Odessa, no Mar Negro, próxima à Crimeia, um dos cenários da atual guerra entre a Rússia e a Ucrânia, sorriu e teria respondido: “Minha senhora, faz tempo que, no Brasil, ninguém come mais ninguém por via oral”.
- A surpreendente frase marcaria para sempre, folcloricamente, a carreira do estudioso. Sua resposta, àquela altura, era correta. Muitos, entretanto, foram os europeus engolidos, aqui, pelos índios – quase todos, claro, portugueses. O caso mais famoso pela dramaticidade foi o do primeiro bispo enviado ao Brasil, para a diocese da Bahia, Dom Pero Fernandes Sardinha, natural de Setúbal, ao Sul de Lisboa. Foi devorado, aos 59 anos, pelos caetés, ao Norte de Salvador, numa cerimônia de antropofagia, no dia 16 de junho de 1556 – dois anos após sua chegada à colônia.
- A antropofagia, conhecida, ainda, como canibalismo, era a prática realizada por determinadas tribos indígenas de comer prisioneiros – amplamente pesquisada, nos anos 1930, pelo antropólogo belga Claude Levy-Strauss (1908 – 2009), de origem judaica como Nutels, para sua festejada obra “Tristes Trópicos”.
- Quase também foi devorado pelos índios brasileiros o legendário minhoto de Viana do Castelo, Diogo Álvares Correia (1475 – 1557), o célebre Caramuru, que começou a colonização da Bahia, na primeira metade do século XVI – criando, inclusive, o vilarejo de Salvador que, em 1549, o Governador-Geral, o poveiro Tomé de Sousa (1503 – 1579), fundaria, oficialmente, e se tornaria capital do futuro País. Naufragara na costa da Bahia e, capturado, fora levado para o ritual de antropofagia pelos tupinambás. Mas, como possuía uma arma de fogo, deu um tiro para assustar os silvícolas. Não só assustou. Os nativos ficaram boquiabertos e encantados com seu poder de fogo e conseguiu, assim, escapar de ser o prato principal de um banquete.
- Outro personagem que se livrou de ser comido via oral pelos tupinambás foi o aventureiro alemão Hans Staden (1525 – 1576), que esteve por duas vezes na colônia, ao lado dos lusitanos, em busca da madeira do “Pau Brasil”. Ele também naufragou no litoral brasileiro, na segunda viagem, e correu risco de ser devorado. Sobreviveu por ter ajudado os tupinambás contra os tupiniquins, e, ao retornar à Alemanha, escreveu um livro sobre suas experiências, “História Verdadeira e Descrição”, publicado em 1557, que logo se transformou num grande sucesso. Caramuru e Staden, por sorte, se salvaram dos canibais.
- A morte, porém, de Dom Pero Sardinha é um dos momentos mais tristes dos primeiros anos da evangelização do Catolicismo nas novas terras portuguesas nas Américas. O ritual ao qual foi submetido o prelado setubalense influenciaria, quatro séculos depois, em 1922, o “Manifesto Antropofágico” do escritor Oswald de Andrade (1890 – 1954), articulador da memorável Semana de Arte Moderna – que, no ano passado, comemorou o Centenário. E inspiraria o título sensacionalista desta coluna em homenagem ao Manifesto de Oswald de Andrade – uma de minhas referências quando tive a incumbência, juntamente com Marcos Wilson, meu querido amigo e chefe, de criarmos, a pedido de Sílvio Santos, o vanguardista programa jornalístico “Aqui Agora”, campeão de audiência no SBT durante os anos 1990.
ALBINO DE CASTRO ” PORTUGAL EM FOCO” ( BRASIL / PORTUGAL)
Albino Castro ´é jornalista e historiador