A inconstitucionalidade é evidente quando o ex-presidente da República pretende usar o estado de defesa para interferir em outro poder
Uma leitura mais cuidadosa do monstrengo de minuta de decreto encontrado no armário do ex-ministro Anderson Torres já permite algumas graves conclusões.
Em primeiro lugar, não foi escrito por um “popular”. Há, na escrita, um esforço racional de manter a aparência de equilíbrio entre os poderes, com pretendido envolvimento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional. Essa formulação exige um mínimo de conhecimento sobre a dinâmica das instituições, algo impensável para quem brada “intervenção federal” em instituições federais.
O texto é grosso modo uma reprodução de dispositivos do Art. 136 da Constituição Federal. “Grosso modo” porque se esquece de detalhes procedimentais que deveriam constar da introdução, tais como a audiência dos Conselhos da República e do Conselho de Defesa. Não há, ainda, referência à submissão do documento ao Congresso Nacional. Esses aspectos denotam insegurança dos pretensos golpistas no trato com outros poderes e órgãos do Estado, certamente não incorporados no projeto golpista.
A inconstitucionalidade é evidente quando o ex-presidente da República pretende usar o estado de defesa para interferir em outro poder, lembrando que a separação dos poderes configura princípio de cláusula pétrea constitucional, conforme Art. 60, § 4°, III, da Lei Maior. Mais grave ainda é que essa interferência indevida configura atentado “contra o livre exercício” do Poder Judiciário”, que sujeitaria o ex-presidente a sua responsabilização por força do Art. 85, caput, II, da Constituição. Só por isso, Bolsonaro estaria sujeito a processo de impeachment.
O texto foi escrito depois do dia 12 de dezembro. Seu Art. 2°, I, deixa isso muito claro. A redação se dá no contexto das arruaças do dia da diplomação, mostrando um claro vínculo entre seu autor e a criminosa perturbação da paz ocorrida naquele dia, que serviria de pano de fundo para a inconstitucional intervenção no Tribunal Superior Eleitoral.
Em conclusão, houve conivência de autoridades e juristas com o caos instalado. Essas autoridades estavam na proximidade do governo, em especial do ministro da justiça e do presidente da República, a ponto de conduzir à preparação de um texto normativo vil contra o judiciário e contra o estado democrático de direito, guardado com zelo no armário do ministro da justiça. Não há como deixar de correlacionar a balbúrdia golpista com o governo que se foi e, em especial, com seu chefe.
Claro, ninguém comete crime só por cogitar de sua prática. “Nuda cogitans” ou “conatus remotus” não é crime. Mas podem ser criminosos os atos preparatórios, quando, em sua essência, se tipificam como tais. As arruaças, a destruição do patrimônio, o atentado contra instituições que estão no núcleo das ações do dia 12 de dezembro são individualmente preparação para esse grande desfecho rascunhado que “flopou”.
EUGÊNIO ARAGÃO” JORNAL GGN” ( BRASIL)
Eugênio Aragão – Ex-ministro da Justiça e advogado