Voltei de Brasília com a certeza de que o Ministério dos Direitos Humanos tem um grande Ministro. E eu me casei com uma mulher notável
Na cerimônia de posse de Silvio Almeida, o novo Ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, foi enfatizada a resistência contra o desmonte perpetrado por Damares Alves, a relevância da Comissão de Mortos e Desaparecidos, foram saudados os funcionários do Ministério que resistiram, os ex-Ministros, os Ministros presentes, os deputados presentes, os novos Secretários.
Mas houve um lapso no evento.
Primeiro, devido ao namoro, e, depois, ao casamento, acompanhei de perto o que foi a luta e a dedicação da procuradora da República Eugênia Gonzaga, a grande esquecida do evento, à frente da Comissão dos Desaparecidos.
Por indicação de Paulo Abrahão, da Comissão de Anistia, a então Ministra Ideli Salvatti indicou Eugênia para presidia a Comissão dos Desaparecidos, há um ano sem presidente. Ela já se destacara no MPF como precursora da luta pela memória e verdade, e pela punição dos crimes da ditadura.
Eugênia foi convidada a comparecer à primeira reunião. Disse que esperaria a nomeação sair no Diário Oficial, para não ser acusada de intrometida, se a nomeação não saísse.
Não saiu. Imaginamos que pudesse ter havido veto militar. Conversei com o Ministro da Defesa Celso Amorim, que descartou a hipótese. O esclarecimento veio logo depois: a nomeação precisava da assinatura do Ministro da Justiça José Eduardo Cardoso, e ele não era muito afeito às rotinas burocráticas do Ministério.
Enfim, a nomeação saiu. E pude acompanhar, de perto, o poder de transformação de um funcionário público responsável, quando armado de ideais e sem receio de avançar nos limites do cargo.
Nem digo de Eugênia embrenhando-se nas trilhas de Foz do Iguaçu, indo aos sertões da Bahia, viajando para o Araguaia, atrás de ossadas. Nem os questionamentos que fez ao Exército, atrás de documentos ocultos.
Poderia mencionar o centro de necrópsia montado na Unifesp, seu empenho em conseguir especialistas internacionais para dissecar as ossadas, a alegria que teve quando foram identificados os restos mortais de um espanhol, morador da Venezuela, preso pela polícia política e torturado até a morte por ter sido encontrado, em sua bagagem, livros de filosofia.
Acompanhei Eugenia em uma pizzaria, para a qual foram convidados os filhos do espanhol, que tinham passado a vida julgando terem sido abandonados pelo pai.
O que me impressionou, fundamentalmente, foi o acolhimento dado às famílias, seu empenho em conseguir os certificados de óbito ou a correção dos certificados falsos, o encontro que organizou em Brasília com familiares, no qual Deborah Duprat – a então Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão -, pediu oficialmente desculpas, em nome do Estado brasileiro.
Acompanhei sua luta quando veio o terremoto Bolsonaro, providenciando um lugar seguro para as ossadas não periciadas. E, especialmente, sua reação quando Bolsonaro atacou o pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, morto pela ditadura. Eugênia deu entrevistas a vários veículos criticando duramente a grosseria de Bolsonaro.
Como a nomeação de Eugenia foi por decreto presidencial, Damares ainda não havia conseguido de Bolsonaro sua demissão. A demissão veio no dia seguinte. Demitida, convocou uma coletiva no auditório do Ministério Público Federal de São Paulo e repetiu todas as críticas contra Bolsonaro. A crítica foi repercutida até pelo Jornal Nacional.
Depois, vi seu empenho e a maneira como desmanchou a primeira tentativa de Bolsonaro de avacalhar com a Comissão: a indicação do procurador Ailton Benedito, um direitista radical, como representante do MPF. A indicação foi apresentada ao CNMP e Ailton já tinha assegurado maioria de votos, incluindo o da PGR Raquel Dodge. Para vetar, Dodge teria que apontar alguma falta funcional de Ailton. Ele foi autor de medidas desmoralizantes para o MPF, como intimar o Itamaraty a investigar suposta aliciamento de brasileiros para trabalhos digitais na Venezuela. Promoveu enorme estardalhaço até se dar conta de que se tratava da Vila Brasil, em Caracas. Mas não era suficiente para vetar seu nome.
Mas havia um argumento imbatível que não foi lembrado pelo CNMP: Eugênia havia sido indicada presidente da Comissão pela presidente da República. Logo, não era representante do MPF. O representante era Ivan Marx, que continuava no cargo. Logo, não havia a suposta vaga.
Antes que o erro se consumasse, ela conseguiu que o subprocurador Nicolao Dino pedisse vistas do processo. E providenciou, junto a familiares, para que descendentes comparecessem à audiência seguinte, para sensibilizar o Conselho. A fala de um neto de Rubens Paiva, o parlamentar assassinado pela ditadura, e principal alvo da ira de Bolsonaro, foi fundamental para que Dodge mudasse o voto e não indicasse Ailton – poupando a Comissão de uma ofensa moral.
Nos meses seguintes, veio a vingança. Damares indicou para presidente da Comissão, Marco Vinicius Pereira de Carvalho, procurador do município de Taió, em Santa Catarina, um bolsonarista de quinto escalão, tão despreparado que denunciou Eugenia ao CNMP, por fazer “advocacia administrativa” para os familiares das vítimas. A “advocacia administrativa”, no caso, consistia em obter as certidões de óbito, principal objetivo da Comissão.
Não deu em nada.
No Fórum Social de Porto Alegre fomos a um jantar. Lá estava a ex-presidente Dilma Rousseff. Ao nos ver, veio em nossa direção dizendo:
- Não vim conversar com você, Nassif. Vim cumprimentar a Eugenia e dizer do meu orgulho em tê-la nomeado para a Comissão de Mortos e Desaparecidos.
Na posse de Silvio, enquanto ele recitava um discurso histórico, todas essas lembranças passavam pela minha mente. Ao meu lado, Eugênia, emocionada com o discurso, com as promessas de volta dos princípios de memória e verdade, da justiça de transição e aliviada com a possível indicação de Nilmário Miranda, para presidir a Comissão. É a melhor saída, me dizia ela, porque ele terá o poder da caneta.
Nem se importou por ter sido barrada na porta, apesar do convite enviado, de ter sido ignorada no evento. O que valia é que as bandeiras que defende voltaram a ser empunhadas, em uma dimensão inédita. E as famílias de corpos ainda não localizados, voltarão a ter esperança de dar um enterro digno aos seus.
Voltei com a certeza de que o Ministério dos Direitos Humanos tem um grande Ministro. E eu me casei com uma mulher notável.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)