A HISTOGRAFIA DO TEMPO PRESENTE, UM PASSO DEPOIS DO JORNALISMO

Time concept. Sand background with clock face

O cacoete do historiador transparece nos seus textos quando ele escreve para os jornais e a contraposição fica evidente.

De uns cinquenta anos para cá, vem crescendo um ramo da historiografia chamado História do Tempo Presente. A tese de doutorado deste autor, por discutir fenômenos que pudessem ainda estar em curso, foi qualificada nesse grupo. Depois de tanto tempo passado da defesa, os fatos ali expostos, bem como os macro movimentos analisados naquele documento, distanciaram-se do presente e, provavelmente, a interpretação possa ser revista. É que o distanciamento dá elementos para que se crie um monolito de conhecimento acerca de um fenômeno.

Um exemplo disso é a própria escravidão no Brasil. Ela sempre foi relacionada aos africanos sequestrados e contrabandeados para as Américas. Isso se deve a que, por ocasião da abolição, a escravatura era quase que totalmente baseada em um só grupo étnico. Mas não foi assim durante toda a História da escravização brasileira. Em número, talvez a escravidão índia tenha sido até maior que a negra africana, só que não há elementos para quantificar, posto que não havia uma aduana a fazer essa contabilidade.

A africanização da escravatura brasileira reforçou-se pelo fato de as campanhas abolicionistas usarem os jornais e o jornalismo como veículo. Os jornais são considerados como fontes primárias para a pesquisa em História. Ora, se o noticiário registra a existência de quilombos, seus classificados anunciam escravos fujões a serem procurados, descrevendo-os como afrodescendentes, cimenta-se no entender do historiador uma correlação não necessariamente verdadeira, mas que só poderá ser contestada ao longo dos séculos vindouros, baseando-se em trabalhos arqueológicos e tirando a importância relativa do jornalismo.

O cacoete do historiador transparece nos seus textos quando ele escreve para os jornais e a contraposição fica evidente. Tomemos a invasão da Amazônia como exemplo de macro movimento. Seu papel no bolsonarismo só começa a ser entendido agora que o governo de Bolsonaro caminha para o fim e que os fatos ligados a ele migram do jornalismo para a historiografia do tempo presente.

A ocupação da Amazônia tem um conjunto de atores que, mesmo não ligados entre si numa organização explícita, formam um sistema. São eles: madeireiros, transportadores, garimpeiros e posseiros. Tornarem-se ou não um amálgama depende quase que exclusivamente da presença do Estado limitando, quando não combatendo, essa simbiose. Como disse um representante da agricultura empresarial, o Acre tem uma das melhores terras do mundo para o plantio, só que existe uma floresta em cima para atrapalhar. O madeireiro entende que está prestando um serviço a um agricultor futuro ao derrubar as árvores. Só que ela precisa ser transportada para ter valor comercial. É aí que entra a figura do transportador. Já o garimpo tem uma lógica e uma hierarquia próprias, que se contrapõe à concessão de lavra, geralmente detida por instituições internacionais. Entre a chegada do madeireiro e do garimpeiro e a ocupação pela agricultura empresarial, vem o posseiro. É ele que faz o serviço sujo de passar o correntão e queimar tudo o que o madeireiro deixou para trás. Essas pessoas podem até não se conhecer e viver em feudos próprios numa divisão macabra de tarefas que constitui um sistema econômico sui generis.

O que mantém os agentes em seus feudos é justamente a presença do Estado, ora coibindo o garimpo, ora fiscalizando as transportadoras, ora trabalhando para o aproveitamento sustentável da floresta. Essas três atividades afetam, num futuro imediato, a expansão da agricultura empresarial.

A transformação da ideia de Estado mínimo em ausência total do Estado, insistentemente advogada pelos antiglobalistas e travestida de ciência pelos anarcocapitalistas, cria um amálgama cuja separação será extremamente custosa. Pecuaristas passaram a incentivar o garimpo em suas terras, tornando-se o que, na atividade tradicional, chama-se de “empresário”, que é o dono do “barranco” em que os donos das dragas trabalham. Investidores, que antes se propunham à exploração equilibrada das florestas, confundem-se com os madeireiros, enquanto os transportadores tornam-se posseiros e, mais tarde, fazendeiros. Como os recursos obtidos são ilegais, o sistema só flui casa haja uma entidade, ou conjunto de entidades, que, legalizada, incumbe-se da tarefa de lavar dinheiro. É claro que isso é, em parte, pulverizado em restaurantes de beira de estrada, pousadas, hotéis e outras empresas que trabalham pelo regime de lucro presumido, não se obrigando à contabilidade diária, mas isso é quirera perante o movimento total desse sistema econômico. Os grandes valores, porém, precisam de atividades legalizadas que movimentam grandes quantias. Descobrir quais são elas e quem são seus atores para fechar a torneira é o grande desafio do novo governo. Não se falou aqui sobre a derrubada das porteiras legais que protegiam as terras indígenas, pois trata-se da incorporação delas a um sistema econômico já estabelecido. De qualquer forma, vale a máxima  largamente difundida pelos americanos: “Follow the Money” e ficará claro quem financia os movimentos nascidos da derrota de Bolsonaro nas urnas.

LUIZ ALBERTO MELCHERT ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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