Em editorial famoso de 1º de junho de 1950, em a “Tribuna da Imprensa”, jornal carioca que fundara em dezembro do ano anterior, herdando o título da coluna “Na Tribuna da Imprensa”, que escrevia no “Correio da Manhã”, descrevendo as atividades da Câmara e no Senado do então Distrito Federal, no Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, que ingressara na política, pelo partido Comunista, em 1947, depois de ser líder estudantil, já militando na frente conspiratória da UDN, escreveu um artigo inconformado com a possibilidade de o então senador pelo Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, voltar a comandar o país, se vencesse a eleição de outubro de 1950. Deposto em 1945, Vargas elegeu seu ministro da Guerra, Eurico de Gaspar Dutra, candidato do PSD, com apoio do seu PTB, contra o brigadeiro Eduardo Gomes, candidato da UDN. Em 1950, quando parecia que ele era carta fora do baralho, Vargas concorreria pelo PTB, em aliança com o PSP de Adhemar de Barros (governador de São Paulo), contra o próprio brigadeiro Eduardo Gomes, o patrono da Aeronáutica, nascido em Petrópolis (RJ), e o candidato do PSD, o mineiro Cristiano Machado. Vargas venceu com 47,73% dos votos válidos. O brigadeiro teve 29,66%, Cristiano Machado, abandonado pelos caciques do PSD, que apoiaram Vargas (daí surgir o termo “cristianização” na política brasileira – a traição partidária, sem qualquer relação com Jesus Cristo) teve 21,95%. O baiano João Mangabeira, do PSB, também concorreu e recebeu apenas 0,12% dos votos.
Mas, voltando ao famoso editorial de Carlos Lacerda, escrito quando se ensaiava a volta de Getúlio Vargas à cena política pelo voto direto (ele comandara o país ditatorialmente de 1930 a 1945, pondo fim à velha política do “café com leite” – o café estava em SP e o leite em MG, situação hoje invertida), Carlos Frederico Werneck de Lacerda escreveu com todas as letras: “O sr Getúlio Vargas senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.
Isso foi escrito quando eu ainda não tinha seis meses (nasci em 31 de janeiro de 1950). Setenta e dois anos se passaram. O país já teve desde então 22 presidentes da República (incluindo Vargas, os vices que assumiram, os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, e ainda os oito presidentes do período do golpe militar de 31 de março de 1964 – o 1º foi o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli e a contabilidade considera ainda o vice de Costa e Silva, Pedro Aleixo, logo impedido pela junta militar dos “três patetas”, segundo denomina o jornalista Elio Gaspari os ministros das três armas, de então). É inacreditável que o inconformismo da UDN, dos lacerdistas e demais golpistas tenha alegado que Getúlio Vargas não obteve maioria absoluta dos votos (50% + 1 voto).
O argumento foi novamente usado, com mais ênfase, em 1955, quando Juscelino Kubitschek teve 35,68% dos votos válidos (o menor percentual entre os presidentes eleitos entre 1945 e 1960) e superou o marechal Juarez Távora, da UDN, que teve 30,27% dos votos, Adhemar de Barros (PSP), com 25,77%, e Plínio Salgado, da Ação Integralista, que recebeu 8,28% dos votos. Como a presidência estava ocupada desde agosto de 1954 pelo vice de Getúlio, João Café Filho, de licença médica na eleição, o país estava sob a presidência interina do presidente da Câmara, Carlos Luz. Um movimento dos coronéis do Exército e de patentes inferiores na Aeronáutica e na Marinha fazia eco à cantilena da UDN, liderada por Carlos Lacerda. Assim, em 11 de novembro de 1955, após um levante militar liderado pelo ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Lott, a posse de JK e do seu vice, João Goulart, foi garantida com o chamado “golpe preventivo”. Carlos Luz foi deposto e assumiu o presidente do Senado, Nereu Ramos, que governou o país, sob “estado de sítio” até a posse de JK, em 31 de janeiro de 1956. [Sempre dizia (até 1964) que a data do meu aniversário era importante porque os presidentes tomavam posse, o que era racional, pois o Congresso eleito só tomava posse em 1º de fevereiro]. JK apaziguou o país e fez a economia dar um salto de industrialização, com a vinda das montadoras de automóveis e eletrodomésticos, mas enfrentou duas rebeliões da Aeronáutica na largada.
Se você, caro leitor, é mais jovem e não conheceu esse período, sugiro consultar livros de história e a Wikipedia. Vivi tudo isso [meu tio, irmão mais velho do meu pai, era o chefe da Polícia Federal, o então coronel Geraldo de Menezes Côrtes. Embora indicado pelo então general Lott, que nele confiava, os tais coronéis que tramavam contra a posse de JK eram liderados pelo coronel Bizarria Mamede, que era contemporâneo de meu tio, que fora comandante da Vila Militar de Realengo, durante a 2ª Guerra. Meu tio foi preso e confinado na fortaleza de Santa Cruz, no meio da Baía de Guanabara, em frente ao aterro do Flamengo. Do grupo de coronéis faziam parte, entre outros, Golbery do Couto e Silva e os irmãos Geisel (Orlando e Ernesto). Numa ida com meu pai a um hospital no alto da Tijuca para tratar do braço quebrado numa peripécia de Natal, lembro perfeitamente da barreira militar junto à residência da Gávea Pequena (no Alto da Boa Vista – sem túneis e o aterro, a Estrada das Canoas, era um dos acessos mais fáceis do Leblon à Tijuca].
A similaridade com o período em que vivemos me fez reavivar os tempos sombrios. No final de sua vida (Lacerda morreu em 1977), o ex-governador do Estado da Guanabara, criado em 1960 com a mudança da capital para Brasília, em 21 de abril de 1961, já se arrependera amargamente de ter liderado uma cruzada golpista no país e se reconciliara com JK. É verdade que o golpe militar que Lacerda ajudara a insuflar, contra a presidência de João Goulart, que assumiu depois da renúncia-golpe militar velado por Jânio Quadros [a definição era de meu tio, que após ter a carreira militar congelada se candidatou e foi o 3º deputado federal mais votado pelo DF, em 1958 (Lacerda foi o 1º e Chagas Freitas, o 2º) nos contou dos planos reais de Jânio. Sabia o que dizia, pois quando morreu, na queda de um jatinho Paris da FAB, em direção a Brasília, em novembro de 1962, era líder da UDN e acabara de ser reeleito como o 5º mais votado do Rio em 1962 (o 1º foi Leonel Brizola, do PTB, e o 2º Amaral Neto, da UDN)]. O regime militar acabou por sepultar as pretensões de Carlos Lacerda de ser eleito presidente da República, em 1965.
Antes de JK ser cassado, em maio de 1964, o ex-presidente liderava, com mais de 35%, as pesquisas de intenções de votos, mais de dez pontos à frente de Lacerda. Cassado JK, certo de que não teria um concorrente do porte de JK, Lacerda investiu pesado contra os ministros econômicos, sobretudo Roberto Campos, do Planejamento. A eleição de outubro de 1965 foi adiada para 1966 e finalmente arquivada (os militares só deixaram o poder em 15 de março de 1985). Quando percebeu que a democracia tinha sido banida pelo golpe militar, Carlos Lacerda mudou seus conceitos e entrou em cruzada pela redemocratização do país, estendendo a mão a antigos adversários, como JK e João Goulart, com os quais se reuniu na Frente Ampla. Em coincidência até hoje mal explicada, os três líderes políticos anteriores ao golpe militar morreram num intervalo de 10 meses entre agosto de 1976 e maio de 1977. JK morreu num acidente da rodovia Presidente Dutra, em 22 de agosto de 1976; Jango morreu no Uruguai de um ataque do coração, em 6 de dezembro daquele ano (suspeita-se da troca dos remédios para sua cardiopatia) e Lacerda faleceu em 21 de maio de 1977.
Meia volta, volver?
O incrível editorial golpista do jornalista Carlos Lacerda em 1º de junho de 1950 parece ter sido o ideário dos bolsonaristas que se insurgem até hoje contra o Supremo Tribunal Federal por ter mudado o entendimento de 2016, quando a maioria considerou passível de prisão o cidadão(ã) condenado em 2ª Instância, o que motivou o recolhimento do ex-presidente Lula à prisão na Polícia Federal de Curitiba em 7 de abril de 2018. Com a mudança posterior do entendimento, em nova composição do STF, que restabeleceu o entendimento de que qualquer réu só pode ser condenado após esgotadas todas as instâncias judiciais (4 instâncias, incluindo o Superior Tribunal de Justiça e o STF), Lula foi solto, após 580 dias de detenção em Curitiba. Mais adiante, vários dos processos conduzidos pelo ex-juiz Sérgio Moro foram anulados, por incompetência da jurisdição de Curitiba (os foros adequados seriam São Paulo ou Brasília), e o ex-presidente recuperou os direitos políticos. Desde abril de 2021 liderando as pesquisas, Luís Inácio Lula da Silva foi eleito para o 3º mandato com 60,345 milhões de votos (50,90%) contra 58,205 milhões de votos de Bolsonaro (49,10%).
Sem o argumento da maioria absoluta, que foi de Lula, os bolsonaristas, que são a moderna encarnação das “viúvas mal amadas” de Carlos Lacerda, segundo cáustica definição do cronista e compositor Antônio Maria, passaram a repetir a alegação de desconfiança contra as urnas eletrônicas e a Justiça Eleitoral feitas pelo presidente da República, já muitos meses antes da votação do 1º turno (2 de outubro) e do 2º turno (30 de outubro), quando as pesquisas mantinham as intenções de votos para Lula à frente de Bolsonaro, apesar de toda a derrama inusitada de R$ 100 bilhões de reais em recursos federais para tentar reeleger o presidente. Isso explica os mais de 45 dias de vigília de fanáticos (não se sabe se pagos ou não) diante de vários quarteis no país.
O “phisique du rôle” golpista foi o coroamento do retrocesso democrático do governo de Jair Messias Bolsonaro, que, ao longo de quatro anos, promoveu uma política de terra arrasada contra os direitos humanos e o meio ambiente, tendo como alvos principais, os pobres, os indígenas e a Amazônia. Mas o que está por trás foi a exacerbação da doutrina castrense do golpe militar, que como as cigarras, resistem a vários invernos até voltarem a sibilar na volta da primavera. A personificação do golpe tem nome e sobrenome e alto cargo no Palácio do Planalto: o ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional, da Presidência da República Federativa do Brasil, general Augusto Heleno. Vale dizer que todos os empossados em cargos do Estado brasileiro devem obrigação de servir à Pátria (que deve “estar acima de todos”) e não exclusivamente ao mandatário da República. O GSI deveria ter feito a segurança institucional de Brasília no dia 12 de dezembro de 2022, quando o Tribunal Superior Eleitoral iria diplomar o presidente eleito e seu vice, Geraldo Alkmin. O GSI destoou radicalmente dos comandos militares dos Estados Unidos da América, quando o presidente derrotado, Donald Trump, insuflou seus apoiadores à infame invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, quando o vice-presidente, Mike Pence, presidia a cerimônia de diplomação do presidente eleito, Joe Biden, e a vice, Kamala Harris. Nos EUA, as instituições militares e do governo defenderam republicanamente a Democracia.
O general Heleno, que foi instrutor de Jair Bolsonaro na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), é um quadro do Exército cuja carreira prosperou sob a regime militar e sempre teve uma queda pelos movimentos mais radicais, de direita. O episódio mais notório foi quando, como ajudante de ordens do então ministro do Exército, Sylvio Frota, participou da tentativa de golpe militar contra o presidente Ernesto Geisel. Frota, que integrava a linha dura do Exército e já se insurgira, em 1961, contra a posse de João Goulart, vice de Jânio Quadros, que renunciara, se rebelou contra o projeto de “abertura, lenta, gradual e segura” de Geisel, visando a anistia e a redemocratização. Escolado como homem de Estado-Maior e com o auxílio do chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva [sim, no regime militar, a Casa Civil era cargo de militar] e do chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI, equivalente ao atual GSI), general João Batista de Figueiredo, que o sucederia, o general Geisel contatou previamente, dia 11 de outubro de 1977, todos os comandantes do Exército para uma reunião em 12 de outubro, em Brasília, no feriado de Nossa Senhora Aparecida. Frota foi convidado para uma reunião com o presidente no Palácio da Alvorada. Mas, decidido a peitar o presidente da República, enviou convocações aos comandantes das diversas regiões do Exército a estarem em Brasília. Só que Geisel se antecipara e tinha altos oficiais na base aérea de Brasília para receber os generais. A turma de Frota era liderada por seu ajudante de ordens, que coordenava a recepção. Ao fim e ao cabo, todos os generais optaram por seguir na direção do Palácio. E um dos generais com os quais Frota contava para dar o golpe, o general Fernando Belfort Bethlem, foi convidado antes por Geisel para ser o novo ministro do Exército, arrastando a cadeia de comando. Na dura reunião a sós, Ernesto Geisel comunicou a demissão ao general Sylvio Frota, como já fizera, em 1976, com o comandante do 2º Exército (SP), general Ednardo D’Ávila Mello, após a morte, por tortura, do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho, nas instalações do DOI-CODI, que eram comandadas pelo coronel Brilhante D’Ustra, um dos “heróis” homenageados por Bolsonaro e Augusto Heleno.
Essa última derrota do general Augusto Heleno parece ser a definitiva. Ele já conseguiu ser “derrotado” ao chefiar a Foça de Paz da ONU no Haiti, quando seus comandados fizeram uma carnificina no país (em tudo semelhante aos raides da polícia fluminense nas favelas do Grande Rio. Antes, no triunfo das eleições de 2018, no embalo da ilusão da “nova política” chegou a debochar do Centrão, cantarolando uma paródia do Rap de Bezerra da Silva “Se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão”. Acabou dividindo o Ministério com expoentes do Centrão, como o chefe da Casa Civil, o senador licenciado do PP-PI, Ciro Nogueira, presidente do partido. E ainda teve de assistir à filiação de Jair Bolsonaro e do colega de farda, o ex-ministro da Defesa, general Braga Neto, ao PL do notório “mensaleiro”, condenado e preso, Valdemar Costa Neto, que agora vai manter salas para o presidente e o vice derrotados por Lula e Alkmin.
A prova de que o núcleo criado no entorno de Jair Messias Bolsonaro já reconheceu a derrota (e de que não há ambiente para um golpe, ansiado pelos bolsonaristas que rondam, como “vivandeiras”, as portas dos quarteis, é que caminhões de mudança rondam os palácios presidenciais para levar mudanças para os novos endereços do futuro ex-presidente. No meu tempo de criança, os caminhões de mudanças eram da “Gato Preto” e da “Luzitana”, com seu fabuloso “slogan”: “O Mundo gira e a Luzitana roda”. Agora, o recado é direto: “Muda Brasília”, que aportou no Palácio da Alvorada na 5ª feira, iniciando movimento que se intensificou na 6ª feira, quando até o “cercadinho” instalado no Alvorada, em 2020, começou a ser desmontado. O ministro da Economia, Paulo Guedes, que sonhava com “longa temporada” de Bolsonaro&cia no poder, para se contrapor aos 13 anos do PT, já abandonou o Ministério e a residência da Granja do Torto, que ocupava desde novembro de 2028, quando se instalou a equipe de Transição de Michel Temer para Jair Bolsonaro.
Mudança de ares e ideias
Muito mais que a troca de inquilinos nos palácios do Planalto e da Alvorada e à frente dos ministérios, o Brasil está ansioso por mudança de ares e de ideias. Foi por isso que houve uma grande união nacional, em defesa da Democracia, claramente ameaça por Bolsonaro&cia, em torno de Lula. Lula era o único nome da oposição capaz de derrotar Bolsonaro. E a união era muito maior que a própria popularidade de Lula. Que, por sua vez, sempre foi muito maior que o PT. No entanto, após vencer o 1º turno com mais de 6 milhões de votos sobre o presidente Bolsonaro, Lula só venceu no 2º turno com 2,1 milhões de votos de vantagem. E deve muito às forças que se uniram em torno de sua candidatura, em especial a candidata Simone Tebet, que ficou em 3º lugar a se empenhou duro na campanha para transferir votos, e a ex-ministra e presidenciável Marina Silva. A cúpula do PT parece não ter entendido isso e continua atuando como se fosse o único vencedor do pleito de 2022 e, por isso, teria a primazia para escolher os ministérios para repetir velhas ideias.
O Brasil mudou muito, e a prova disso foi o susto eleitoral com a ascensão de Jair Bolsonaro em 2018 (vá lá que Fernando Haddad não era competidor conhecido) e a vitória apertada deste ano comprova o avanço de ideias conservadoras, que precisam ser combatidas com o oxigênio da Democracia e pluralidade política. Mais radical é a mudança do mundo ditada pelas emergências climáticas. Tudo isso pede uma reengenharia de pessoas, ideias e ações. É salutar que na preparação para o novo mandato – mesmo sem acomodações adequadas para ele e a esposa Janja -, o presidente eleito já esteja dando lições da boa e velha negociação política. Obstáculos que pareciam intransponíveis na gestão Bolsonaro – que atravessava a rua para pisar em cascas de banana na outra calçada e comprava briga por um nada – começam a ser removidos por Lula. Já se nota um mínimo de concertação entre os três poderes da República – o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.
A negociação é a essência da política e segue velho ditado chinês sobre a verdade (num conceito de só dois polos envolvidos). “A verdade tem três lados: a minha, a sua e a certa”. Com três Poderes, a equação vale, com quatro hipóteses. Respeitado o princípio do respeito à Constituição, a Lei maior, sempre deve prevalecer o bom senso e o interesse público em 1º lugar. E a gestão do Orçamento Geral da União, que nada mais é do que a repartição de todas as receitas arrecadadas pelo Estado junto ao contribuinte ou consumidor, é a prova de fogo do exercício da coisa pública em prol do cidadão.
GILBERTO DE MENEZES CÕRTES ” JORNAL Do BRASIL” ( BRASIL)