Lia-se neste espaço, dias atrás, que esteva em discussão, entre os íntimos palacianos, se Bolsonaro devia ou não submeter-se ao ato protocolar de transmitir a faixa presidencial a Lula. Parece agora estar decidido, como se previu, que não o fará. Repetiria o que fez o general João Figueiredo, em 1985, que não quis passá-la a José Sarney. Preferiu sair pela porta dos fundos do palácio. Último dos generais dos idos de 64, ele não apenas discordava do destino, que dera a Sarney a herança que a fatalidade armou para Tancredo Neves; Figueredo via, na presidência confiada ao veterano maranhense, um retrocesso da política. Temia a volta ao passado de velhos hábitos capazes de comprometer o processo de transição democrática, para a qual havia se batido e fechado o último capítulo da ditadura. Concordando ou não com o general, que acabou preferindo o cheiro dos cavalos, é inegável que a política brasileira prima por se arraigar nas coisas vetustas. Mas isso é outra história.
Quanto a Bolsonaro, caminhando nas três últimas semanas que lhe restam, a decisão, mais que um gesto de hostilidade a quem vai sucedê-lo, é sinal claro para dois tempos no seu calendário político: ele não tem disposição de sepultar o passado recente, em que se viu vítima do que chama de infâmia ardilosamente arquitetada pelos tribunais; e, mais ainda, num segundo tempo, não vai dar adeus ao poder, sem abrir mão de liderar o oposicionismo a tudo de insucesso que vier a acontecer no novo governo.
Não dá sinais de desejar, sinceramente, recolher-se. Quem sai sempre leva saudades. Raros os que se retiram do poder sem pensar no retorno. Derrubado em 45, Vargas armou-se para voltar, e voltou. Exatos vinte anos depois, Juscelino alimentou tal propósito, confiante no tropeço de Jânio Quadros, a quem havia confiado a famosa faixa, mas o sucessor tropeçou, ninguém esperava que caísse tão rápido. E o sonho juscelinista caiu junto.
Alíquota que incomoda
Bom será que o novo presidente aproveite o clima das festas que estão sendo programadas para marcar a posse, porque muitos problemas, alguns de difícil solução, já vão expor suas garras afiadas, tão logo terminem as comemorações. Um desses, a desafiar é a impertinência de falsos apoiadores, que vão se aproximando, não para ajudar, mas tentar corrompê-lo. Outra questão, que tende a complicar-se, vem da área dos governadores, e diz respeito à alíquota do ICMS sobre os combustíveis, cuja revisão tornou-se principal reivindicação do Conselho de Secretários da Fazenda. Quase uníssonos, aqueles altos funcionários querem derrubar a limitação da participação dos estados sobre o que vendem as bombas de gasolina e diesel, depois de o atual governo ter repartido com eles o ônus da política de contenção dos aumentos.
O que pretendem agora é questão delicada, como se fosse água fervente, capaz de espirrar e incomodar no governo Lula. O presidente já deve saber que de seu governo espera-se a garantia de preços em níveis toleráveis. Na campanha eleitoral em que saiu majoritário prometeu, de viva voz, conter a ganância dos que se tornam bilionários na Petrobras, à custa do sofrimento dos consumidores. É esperar para ver.
Nos palácios das capitais, estejam ocupados por situacionistas ou opositores, o que se reivindica é a reposição das perdas que tiveram de enfrentar, quando o governo Bolsonaro decidiu dividir com eles o ônus da redução dos preços. Isto significaria repor a alíquota de 20,5%, que hoje se mantém em 17,5%. Esses poucos pontos percentuais podem parecer quase nada na visão dos secretários queixosos, mas pesam para o consumidor; não apenas os que abastecem os veículos de sua propriedade, mas também para a população em geral, porque para ela vão carrear as consequências dos aumentos resultantes do custo operacional das frotas de transporte.
Os governadores, que se dizem asfixiados, certamente sonham em transferir seus pesadelos para o Palácio do Planalto; até porque é ao governo central que cabe ditar normas para o setor energético. Não pretendem aceitar que o problema desabe apenas em cima dos estados, porque nada conseguirão fazer sem o equilíbrio fiscal. Se isso faz bem ou mal ao presidente, a alçada é dele e de seus assessores imediatos. No caso em tela, para desconhecer o pleito que os governadores vão expor, Lula terá de manter o critério criado pelo presidente a quem sucede. Sem mudanças. Seria confirmar o que disse o ex-ministro Delfim Neto, que, aliás, o apoiou: nada mais parecido com o governo do que a oposição no governo…
A arte das escolhas
As intenções são visíveis no primeiro lance da formação do ministério, programado para assumir no primeiro dia de janeiro. Uma delas é ter confiado a pasta da Defesa a José Múcio Monteiro, que vem de uma experiência no Tribunal de Contas da União. Nada tem a ver com a caserna, mas com a fama de construtor de boas relações; e certamente chega com a missão de acalmar, nas Forças Armadas, importantes parcelas que não simpatizam com o novo presidente, e dele desconfiam. A escolha de um civil, sem farda e sem espada, vai, por outro lado, mostrar que o governo não se intimida frente a eventuais hostilidades de militares. E, optando por Múcio, o presidente não tem de se haver pessoalmente com generais, brigadeiros e almirantes. O ministro escolhido também pode contribuir para conter algumas ações de má vontade do governo que termina, pois sempre desfrutou de excelente trânsito com Bolsonaro. As preocupações nesse campo são procedentes, o que não quer dizer que seja fácil a empresa para o doutor Múcio.
Outro detalhe, ainda sob a ótica do primeiro anúncio, é a ausência de antigos companheiros do PT, como Jenuíno, José Dirceu, Benedita, Olívio Dutra, Paulo Bernardo, Dilma. Desde a campanha eleitoral eram tidos como possíveis presenças no primeiro escalão. Pode ser que venham mais tarde.
Quem se identifica com o métier não ignora que a montagem de um ministério figura entre os exercícios políticos mais delicados. Nem sempre as contingências são favoráveis; pelo contrário, contribuem para complicar o que já é complicado por natureza. No caso presente, repete-se a escalação do time, que desafia os presidentes com problemas que se amontoam de uma única vez e a acomodação das forças políticas de apoio. A começar pelo fato de que os companheiros da jornada eleitoral sempre querem as melhores fatias do bolo, e estas nunca se revelam suficientes. E, como no bolo que acaba de ser assado, para que todos se satisfaçam. os pedaços têm de ser menores. Frustram-se os mais gulosos.
Chegado o momento das contemplações, vem um outro ponto de difícil ajuste. Os pretendentes, tanto no primeiro como no segundo escalões, acham que merecem mais do que o que lhes é oferecido. Porque prevalece, entre quem oferece e quem recebe, uma diferença aritmética na avaliação dos votos. Um exemplo melindroso, entre outros, que tem sido avaliado nos gabinetes, é o peso da adesão da senadora Simone Tebet ao candidato do PT no segundo turno. Quanto dos seus 4% ela poderia ter transferido? O que esse apoio significou para afastar o MDB da candidatura de Bolsonaro?. Dúvidas, como a tal, talvez nunca estejam suficientemente esclarecidas, mas podem complicar a vida de quem governa.
WILSON CID ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)