Atos radicais desta segunda mostram o flanco aberto até a posse do novo governo e o desafio de uma oposição autoritária.
O deliberado abandono do governo pelo presidente Jair Bolsonaro está fazendo a equipe de transição do PT já assumir o poder, na margem de manobra que lhe cabe até a posse em 1º de janeiro. Foi o que se viu na noite de segunda-feira, quando a baderna tomou o centro de Brasília depois de um bolsonarista ser preso por incitar violência e nenhuma autoridade atual assumiu o controle da situação. Coube ao futuro ministro da Justiça, Flávio Dino, dar explicações sobre o que estava acontecendo. A antecipação do exercício de governo coloca mais uma incumbência no colo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, às voltas com a nomeação de ministros, que deverão preencher os segundos e terceiros escalões, para então começar a azeitar a máquina pública sob nova direção. É uma tarefa hercúlea para um governo que terá pouco espaço para erro e que já vislumbra egos inflados e deslumbrados com a chegada à linha de frente em Brasília, segundo uma fonte ouvida pela coluna. “Há um salto alto temerário neste momento entre integrantes do governo que está chegando e um certo descuido sobre a ação da extrema direita”, disse o interlocutor, poucas horas antes de bolsonaristas se reunirem diante do edifício da Polícia Federal em Brasília para reclamar da prisão do cacique e pastor bolsonarista José Acácio Serere Xavante, aliado de ruralistas. Ônibus queimados e uma ação letárgica do governo Bolsonaro mostraram as brechas dessa zona cinzenta. E ainda não se sabe qual será a sua extensão até o dia da posse. Do lado de fora, os adversários do PT apontam o risco do aparelhamento do governo pelo partido, guiado pela pressa ou por princípios pouco republicanos — que levaram à manutenção de esquemas que queimaram boa parte da reputação petista no passado. E, internamente, há uma preocupação em ver quem verdadeiramente quer trabalhar pelo fortalecimento da democracia, fragilizada depois da chegada de militares ao poder com Bolsonaro. Há uma tensão natural sobre os vasos comunicantes entre funcionários públicos simpatizantes da direita radical dentro das instituições brasileiras para preservar a democracia. Não faz nem um mês que veio à tona a gravação do ministro do Tribunal de Contas da União Augusto Nardes insinuando um golpe militar em curso no país. A tônica democrática esteve fortemente presente no discurso do ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, durante a diplomação do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva na segunda-feira. “Essa diplomação atesta a vitória da democracia”, disse Moraes, enfático no alerta sobre as ameaças à Constituição e o poder da desinformação em massa. “Estabilidade democrática e respeito ao estado de direito significam observância fiel à Constituição, pleno funcionamento das instituições e integral responsabilização de todos aqueles que pretendiam subverter a ordem política, criando um regime de exceção”. Lula, em seu discurso, citou as forças antidemocráticas do mundo todo. “Na América Latina, na Europa e nos Estados Unidos, os inimigos da democracia se organizam e se movimentam”, afirmou ele, citando o uso das plataformas digitais a favor de mentiras. “A máquina de ataques à democracia não tem pátria nem fronteiras”. Quando a Alemanha prendeu 25 manifestantes radicais de extrema direita que planejavam um atentado violento ao Parlamento na semana passada, soube-se que entre eles estava Rüdiger Wilfred Hans Von Pescatore, que viveu em Santa Catarina com a família recentemente. Tem duas empresas em seu nome no sul do Brasil. É público e notório que o governo Bolsonaro teceu relações estreitas com políticos de extrema direita, inclusive com a deputada alemã Beatriz von Storch, do partido de extrema direita AfD. Neta de Lutz Graf von Krosigk, ministro de Finanças do Governo nazista de Adolph Hitler, Storch sugeria inclusive criar uma aliança conservadora com o presidente militar brasileiro. A nova realidade impõe novos desafios. E, diante de todas as cascas de banana pelo caminho, Lula volta mais uma vez à sua história de vida. “Eu quero pedir desculpas a vocês pela emoção. Quem passou pelo que eu passei nesses últimos anos, estar aqui agora é a certeza de que Deus existe”, desabafou num soluço que quebrou sua voz enquanto discursava no TSE. Quem esteve na superintendência da Polícia Federal em Curitiba em 27 de abril de 2019, quando o petista estava preso por um processo duvidoso conduzido por Sergio Moro, resgatou as nítidas memórias daquele momento. Na data, Lula concedeu sua primeira entrevista na prisão aos jornalistas Mônica Bergamo, da Folha, e Florestan Fernandes Jr. Eu estava lá também, relatando os bastidores daquela entrevista, junto com Florestan, para o El País. Ali, na sala improvisada para acomodar as equipes de jornalismo, as palavras de Lula guardavam fúria, expressa quando seu rosto se avermelhava diante de algumas perguntas. “Fico preso 100 anos. Mas não troco minha dignidade pela minha liberdade”, declarou na ocasião. Lula poderia ter fugido, ou ido para uma embaixada estrangeira enquanto se defendia da ambição embriagada da operação Lava Jato para caçá-lo desde 2016. Mas ficou ali, onde amargou a dor de não ser liberado para se despedir do irmão Vavá, que morreu em janeiro de 2019. Dois meses depois, conseguiu o direito de acompanhar por duas horas, escoltado por policiais com metralhadoras, o velório de seu neto Arthur, de 7 anos, que morreu de meningite. O que aconteceu no espaço entre esses dois eventos, a prisão de Lula e sua reeleição, é o que deve reger o Brasil de agora. Se o hoje presidente ficou preso em Curitiba mais por decisão política que por justiça, inclusive com influências das conexões com a extrema direita dentro da Lava Jato, já não é mais preocupação só do PT, mas uma boa parte do Judiciário. Nada, porém, pode ser uma desculpa para transformar o PT no poder numa vítima com carta branca para tudo. Há cada vez mais olhos atentos dentro e fora do partido para seus deslizes. |
CARLA JIMENÉZ ” THE INTERCEPT” ( BRASIL)