A idiotia generalizada nacional, o curtoprazismo, a financeirização abriu o caminho para uma crise contratada, que afetará todo o país
Para quem só olha o mercado, o grande problema para o governo Lula será o setor energético. Ontem, o grupo de trabalho da transição estimou um passivo herdado de R$ 500 bilhões para Lula, decorrente dos erros cometidos nos últimos anos. Parte expressiva do passivo decorre do acordo entre governo e Congresso para a privatização da Eletrobras.
Numa ponta, um negócio: a própria privatização, que permitirá à Eletrobrás um poder de mercado ilimitado, com uma supervalorização das ações, já controladas pelo grupo 3G, de Jorge Paulo Lemann, e Jabbur.
Na outra ponta, um super jabuti, a inclusão de termelétricas no projeto, obrigando a construção de gasodutos para os locais mais ermos do país. A conta foi jogada no colo da energia contratada – aquela que é vendida pelas distribuidoras e acessível a consumidores residenciais e pequenas e médias empresas. O mercado livre – onde se darão os grandes negócios – foi isento dessa taxa.
Seria conveniente que o governo eleito assistisse o programa “O governo Lula e o desafio no mercado de energia”, passado ontem no programa Nova Economia, da TV GGN. Dele participaram os especialistas Clarice Ferraz e Ronaldo Bicalho, mais os economistas Leda Paulani e João Furtado.
Nele, Ferraz e Bicalho mostram a lógica do sistema elétrico brasileiro, o desmonte perpetrado nos últimos anos e o risco de uma grande crise sistêmica para os próximos anos, o “subprime brasileiro”, como descreve Bicalho, referindo-se ao grande estouro do mercado imobiliário norte-americano.
Durante décadas, o Brasil montou o mais completo sistema de energia elétrica do planeta, capaz de dar conta das cinco estações do ano que convivem simultaneamente no país. Foi um feito dos especialistas em energia e das empreiteiras, tendo como ponto central a Eletrobras.
A lógica do setor consistiu em integrar todas as geradoras e consumidores em uma grande rede nacional, através de linhas de transmissão que ligavam todo o país. O modelo permitiu a integração de centrais elétricas estaduais e administrar os problemas climáticos. Se havia seca em uma região, a redução da geração era compensada pela produção em outra. E tudo isso garantido pelos grandes reservatórios nacionais ligados por linhas de transmissão.
Agora, tem-se o problema da transição energética.
De um lado, devido a problemas ambientais e sociais, esgotou-se a possibilidade de produção de energia hidráulica e de construção de novos reservatórios. De outro lado, a transição energética pulveriza ainda mais a geração, em torno de energia eólica e solar.
Tudo isso ocorre em uma quadra da economia mundial na qual a inflação (causada fundamentalmente pela crise de energia e alimentos) encarece a captação de investimentos.
A guerra da Ucrânia expôs brutalmente a vulnerabilidade energética dos países, exigindo investimentos maiores na geração interna. Por outro lado, o aumento da inflação mundial – decorrente basicamente da explosão dos preços da energia e dos alimentos – encareceu agudamente o custo do dinheiro.
A saída encontrada pela França foi completar o processo de estatização da EDP para conseguir um rating mais favorável e captar dinheiro barato, além de direcionar sua ação para questões estratégicas. A Alemanha montou um super-programa de investimentos, para assegurar energia barata para suas indústrias.
Aí reside o busílis da questão. Energia não é uma commodity qualquer – como o minério da Vale do Rio Doce. Ela é fundamental para assegurar a competitividade da economia, da produção nacional e garantir acesso da população a direitos básicos.
O Brasil possui condições excepcionais para voltar a produzir energia barata. É um país tropical, com uma costa exposta a ventos fortes e a sol intenso, com uma grande produção de energia hidrelétrica, mas exposto às condições do tempo. Ainda mais porque não existem formas de armazenar a energia do vento e a solar. Dilma foi ironizada pelos idiotas da objetividade, quando falou em “estocar ventos”. Mas essa é a grande vulnerabilidade da energia eólica e solar, a impossibilidade de armazenar a produção.
Por isso mesmo, a estabilidade do sistema dependeria, mais do que nunca, de uma âncora forte, reservatórios que funcionam como as pilhas do setor, todos integrados por linhas de transmissão.
Devido ao papel fundamental desses dois instrumentos, para garantir a estabilidade do setor, países como o Canadá, por exemplo, mantiveram-nos sob controle do Estado,. inclusive para assegurar a estabilidade dos investimentos privados.
A Eletrobras responde por 55% dos reservatórios e mais de 50% da geração de energia no país. Seria a grande âncora, inclusive no fornecimento de energia contratada – aquela com contratos de longo prazo e a preços menores, para abastecer as distribuidoras.
No fim do primeiro governo FHC, houve o primeiro movimento para desmontar o sistema, com uma privatização mal feita, copiada da Inglaterra, que tem condições geofísicas e geológicas completamente distintas do país. Uma redução das chuvas implodiu o modelo antes mesmo de se completar.
Ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff conseguiu consertar o modelo, definindo dois mercados: o de energia contratada e o mercado livre. Havia um modelo engenhoso de financiamento das obras. As distribuidoras adquiriam antecipadamente cotas da nova usina a ser construída. Os recursos garantiam o financiamento e os contratos asseguravam a oferta de energia posterior a preços módicos. O mercado livre servia apenas para suprir falta de oferta em momentos de pouca chuva.
Como presidente, Dilma tentou um lance mais ousado. Na tarifa das hidrelétricas brasileiras havia uma taxa de depreciação – destinada a compensar os investimentos feitos na construção da usina. No final do primeiro governo Dilma, terminava o prazo de depreciação de diversas hidrelétricas e, consequentemente, saia de cena a taxa de depreciação. Dilma resolveu, então, transferir o benefício para os consumidores. Definiu um custo de operação para as usinas e autorizou uma tarifa que cobria o custo e garantia uma margem para o operador.
O modelo foi bem intencionado mas, segundo os críticos, jogou-se a tarifa para um patamar muito baixo, esquecendo a necessidade de recursos das empresas para novos investimentos. Esse fato, mas uma grave crise hidráulica, e a recusa de estatais controladas por governos tucanos em aderir ao projeto, destruiu o modelo e enfraqueceu a Eletrobras.
O setor elétrico passou a ser visto exclusivamente pela ótica dos grandes ganhos financeiros que proporcionou e proporcionará ao mercado. Abriu-se uma corrida ao ouro, com grandes bancos e grupos financeiros abrindo suas comercializadoras de energia.
A perspectiva de ganho fácil fez o mercado embarcar de cabeça em um setor, sem conhecer suas peculiaridades, exposto que está ao clima. Já se teve algumas experiências em anos recentes, com a redução das chuvas provocando problemas no mercado contratado, mas crises profundas no mercado livre.
Sem a Eletrobras atuando como agente moderador de tarifas, e supridor de energia no sistema integrado, há um rascunho do mapa do inferno sendo desenhado.
Se a Eletrobras estatal era a grande amortecedora dessas crises – com seus reservatórios, geração e transmissão de energia – agora esse poder todo será utilizado em benefício de seus controladores. Quanto mais estratégica ela se tornar, maior será o preço cobrado do sistema como um todo.
A idiotia generalizada nacional, o curtoprazismo, a financeirização desenfreada abriu o caminho para uma crise contratada, que afetará todo o país mas, especialmente, o próprio setor privado que se aventurou sem conhecer os meandros das curvas dos rios.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)