A menos de 26 dias da posse, em 1º de janeiro, do governo do ex-presidente Lula, eleito com mais de 2,1 milhões de votos de vantagem sobre o presidente Jair Bolsonaro, uma parte ínfima dos brasileiros continua mobilizada, enfrentando sol e chuva, no bloqueio de estradas ou acampadas diante de quarteis, esperando um meteoro, um ET ou algo que caia dos céus e mude o resultado das urnas nas quais Lula venceu com 60,345 milhões de votos, contra 58,205 milhões de votos do atual (?) presidente. Desculpe a ironia, caro leitor, mas a interrogação é cabível diante da mudez e inação do antes tão boquirroto presidente. Em campanha, ele não governava há muito. Mas não parava de dar entrevistas e declarações à mídia amiga, nem se escusava de liderar uma motociata, uma jetskiata, uma cavalgada ou uma jegueada. Após raspar os cofres dos erários (federal e dos estados e municípios, pelo corte de mais de 50% do ICMS sobre energia elétrica, comunicações e combustíveis) com medidas eleitoreiras para derrubar artificialmente a inflação, aliviando o preço da gasolina e outros combustíveis para os abonados donos de carros e motos e distribuir R$ 42,5 bilhões no Auxílio Brasil (R$ 600 por cabeça) e mais R$ 1 mil a taxistas e caminhoneiros autônomos, ele esperava colher louros nas ruas e nas urnas. Mas o Brasil mais pobre, profundo e abandonado disse não.
Desde então, temos um quadro esdrúxulo. Lula, o novo ex-presidente, que só será diplomado no próximo sai 12 (2ª feira, com uma antecipação de uma semana) ainda não é presidente e não pode falar muito (por razões médicas, para não agravar o problema na laringe, e por prudência política, para não agravar crises no Congresso, nos quartéis-generais e ainda no mercado). O velho presidente calou-se recolhido à residência do Palácio da Alvorada. A erisipela em uma das pernas, que dificulta o uso de terno, veio a calhar como desculpa do sumiço até das redes sociais, embora não seja justificativa para a suspensão das antes tão animadas “lives” das quintas-feiras. Quem não lembra da patética apresentação, em pleno auge da pandemia da Covid, quando o Brasil estava de luto por meio milhão de mortos, e o presidente estava acompanhado pelo acordeão do então presidente da Embratur, Gilson Machado, depois nomeado ministro do Turismo? Para quem não liga o nome à pessoa. O pernambucano Gilson Machado concorreu a uma vaga no Senado pelo PL. Foi derrotado, mas o amigo presidente (o 1º a consolar quando se anunciou a vitória de Lula, na sala do Palácio do Planalto, onde esperava saborear a vitória) o renomeou presidente da Embratur por um mandato de quatro anos, a cumprir no governo Lula.
É claro que Gilson Machado será exonerado e substituído por novos quadros ligados à nova administração. Mas o episódio ilustra o que está fazendo o atual presidente nos dois meses em que ficou como “pato manco” no cargo: arrumar a própria casa (destruindo provas ou classificando novos atos de secretos para garantir 100 anos de silêncio) e garantir a sobrevivência financeira e política após voltar à planície e perder a imunidade que tinha como presidente da República e como deputado federal. Enquanto negociou com o presidente do PL, o notório Valdemar Costa Neto, o cargo (e a justa remuneração) de “presidente de honra” do partido, no qual que se inscreveu para concorrer à reeleição e lhe encheu as burras com a adesão maciça da horda bolsonarista nas eleições de outubro, e apressou, com o amigo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), a sua aposentadoria por ter exercido por mais de duas décadas a função de deputado do baixo clero, Jair Messias Bolsonaro manobrou nos bastidores para que ele e os seus mais próximos não sejam vítimas de retaliação política por parte do governo Lula. Como o futuro presidente não deseja governar com os bolsonaristas pressionando os quarteis ou seus aliados em pé de guerra no Congresso, Lula já deu o recado. Por ele, tudo bem, não haverá perseguição. Mas os inquéritos e pedidos de “impeachment” engavetados pelo PGR, Augusto Aras, e o presidente da Câmara terão outros trâmites na Justiça e tudo pode acontecer.
A crueza dos dados do IBGE
Que o Brasil de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes vivia numa realidade paralela, fica cada dia mais claro. Paulo Guedes criou um avatar do próprio país e que era seguido e admirado pelo “mercado financeiro”: a economia brasileira estava sempre “bombando” e “decolando”. Como não temos o Censo Decenal para apontar a dura realidade (o de 2020, que cumpriria a tradição de uma radiografia completa ao começo de cada década, para ajustar os problemas do passado na década seguinte, foi adiado pela pandemia da Covid, que se estendeu a 2021, quando o governo não reservou verbas e o de 2022 ainda não terminou), levamos um susto toda a vez que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas divulga uma nova radiografia social do país.
No dia seguinte ao PIB do 3º trimestre (1º de dezembro), quando o ritmo de crescimento caiu para 0,4% (redução forte frente aos 1,3% do 1º trimestre e 1% do 2º, numa prova de que já não estava “bombando” nas eleições), o IBGE divulgou estatísticas sociais que foram um soco no estômago de um país que estava pleiteando o ingresso no “clube dos ricos” da OCDE. A Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, criada no pós-guerra (1948), na França, reúne hoje os 38 países mais ricos do mundo. Não apenas na pujança da economia, mas que apresentem alto desempenho no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e um perfil de distribuição de renda entre os mais ricos e os mais pobres mais equilibrado.
Paulo Guedes inaugurou o ano eleitoral de 2022 com o pleito de ingresso na ODCE (as tratativas começaram no governo Temer). Como disposição de boa vontade, Guedes se dispôs a facilitar o trânsito de recursos financeiros e de mercadorias (com redução geral das tarifas de importação de bens manufaturados), sem nenhuma contrapartida à proteção dos interesses do Brasil nas exportações de produtos básicos ou semimanufaturados. Da América Latina já são membros o Chile, o México e a Costa Rica. O Brasil está numa lista de espera por ingresso ao lado da Rússia, Argentina, Bulgária, Peru, Romênia e Croácia. A Rússia está na geladeira depois da invasão da Ucrânia. A Argentina exibe melhores índices sociais que o Brasil, mas tem contra si uma imensa instabilidade econômica. Mas os dados do IBGE indicaram forte aumento da pobreza em 2021 e nos colocam muito mal dentro das credenciais para aspirar a uma carteirinha da OCDE.
Temos 62,5 milhões de brasileiros, ou 29,4% da população daquele ano (a população atual é de 215,4 milhões) vivendo na linha da pobreza. Pelo critério do Banco Mundial, seguido pela OCDE, é pobre quem ganha menos de US$ 5,50 diários, ou R$ 486 mensais. E dentro do recorte, 17,9 milhões (ou 8,4% da população) estavam em situação ainda pior: na extrema pobreza (ganho inferior a US$ 1,90 por dia ou R$ 168 mensais de 2021). Estes foram os piores números e os maiores percentuais de ambos os grupos apurados pelo IBGE, desde o início da série, em 2012.
Como evitar desastre futuro?
Um dado mais preocupante diz respeito ao futuro. Não se trata apenas de estancar a destruição da floresta Amazônica e o avanço da fome, que são questões emergenciais. É a radiografia da situação dos jovens brasileiros (na faixa de 18 a 24 anos), a mesma métrica da OCDE, que não estudam nem trabalham. Num dos quadros publicados pelo IBGE há uma comparação da situação dos chamados Nem/Nem brasileiros com a dos principais países da OCDE e nações emergentes que almejam o ingresso (caso da Colômbia e da África do Sul). Se o futuro de uma nação em competitividade, produtividade e eficiência econômica depende da qualificação de seus jovens (18 a 24 anos), o Brasil só está um pouco melhor do que a vizinha Colômbia e a África do Sul.
O corte do IBGE mostrou que embora as mulheres estejam frequentando mais os bancos escolares que os homens, as ofertas de empregos, em condições inferiores perante os homens brancos, se acentuam entre as mulheres e as pessoas que se declaram pardas ou pretas. A média brasileira dos Nem/Nem (de 15 a 19 anos), que não frequentam a escola nem trabalham era de 25,8%. O Rio de Janeiro estava acima da média nacional, com 27,5% de Nem/Nem (em Minas, o índice era de 23,3%, e, em São Paulo, de 23%). Quase todos os estados do Brasil do Norte e Nordeste apresentam situações mais aguçadas de pobreza e desigualdade e os elevados índices dos Nem/Nem não indicam porta de saída: o Maranhão lidera o índice negativo, com 37,7%. O menor nível brasileiro foi registrado em Santa Catarina, com 12,5% de evasão escolar ou do trabalho (o estado deu a maior votação a Bolsonaro). No Paraná o índice era de 17,9% e de 18,2% no Rio Grande do Sul.
Pela manifestação maciça dos mais pobres e desassistidos em favor do voto no ex-presidente Lula, o futuro governo deu prioridade à reconstrução do Bolsa Família (Bolsonaro criou o Auxílio Brasil de R$ 600 como mote eleitoral, mas não deixou verba para 2023. Lula voltará com o BF, mantendo o valor de R$ 600. Mas pretende fazer uma clivagem no Cadastro Único, desvirtuado com o Auxílio Emergencial de 2020 e com as portas escancaradas a novas inscrições no ano eleitoral de 2020, quando houve quase 3 milhões de novos beneficiários. O objetivo do Bolsa Família é forçar as famílias carentes a colocar os filhos na escola (uma nova geração dependeria, pela qualificação educacional) de menos apoio do Estado e poderia emancipar a família. Por isso, além de separar beneficiários indevidos (como militares e empresários como o que hostilizou Gilberto Gil no Catar, acusando de usar a Lei Rouanet), quando surfava no AB de R$ 600 mesmo sendo dono de franquias de alimentação em Volta Redonda-RJ), o governo Lula quer premiar as famílias mais pobres com verba extra de R$ 150 por filho até seis anos que frequente a escola e tenha carteira de vacinação em dia. O custo pode ser alto agora, mas os ganhos ao país e na redução de custos no SUS serão inegáveis no futuro.
O pessoal do mercado, que cobra a indicação de ministros e reclama de Lula obter espaço fiscal mínimo de R$ 150 bilhões para acomodar o BF e a volta de programas sociais como o Farmácia Popular, poderia aproveitar que o IBGE revisou em +1,1% os dados do Produto Interno Bruto de 2021 e dos primeiros trimestres de 2022, para refazer cálculos de endividamento e limite do teto de gastos. Se o PIB, que é o denominador, cresceu 1,1% (a nova projeção eleva o PIB de 2022 para quase R$ 10 trilhões, mesmo considerando a possibilidade de crescimento zero neste 4º trimestre, aventada pelo Itaú e pelo Santander), haverá não apenas folga de gastos, como a redução dos indicadores do numerados (endividamento bruto do governo geral e da dívida pública líquida, que desconta os papéis na carteira do Banco Central frente ao PIB). Ou seja, sobrará mais alguns bilhões para Lula atacar as mazelas sociais do Brasil.
Fiquemos com Caetano Veloso
O título desta coluna foi extraído da primeira rima de “Desde Que o Samba É Samba”, nostálgica e poética música de Caetano Veloso, que ousei trocar para fustigar o programa social brasileiro – a pobreza e a má distribuição de renda e de oportunidades que nos assola deste que o Brasil era colônia de Portugal e que continuou pelo Império, na Independência, e nos governos republicanos. Não é por coincidência que os três estados do Sul do Brasil, cujas terras foram oferecidas pelo Império a famílias de colonos alemães, italianos e outras etnias europeias para colonizar e cultivar, estejam na escala mais rica da renda nacional, com os menores índices de pobreza e miséria. Essas famílias tiveram o privilégio do acesso a grande meio de produção do século XVII – a terra.
Enquanto isso, milhões de escravos, arrancados de suas famílias, trabalhavam de sol a sol para senhores de engenhos de açúcar, na mineração do ouro e de diamantes e na lavoura cafeeira do Rio de Janeiro (onde as famílias abastadas da Corte também tinham seus séquitos de escravos) e do Vale do Paraíba de São Paulo e Minas Gerais (a colonização posterior das ricas terras roxas do planalto paulista já foi feita com famílias de colonos europeus). Quando acabou a escravidão, nada foi dado aos negros libertos: nem terra, nem educação. Por isso são os mais pobres e desassistidos do país, assim como os nordestinos e nortistas.
Entretanto, mesmo na adversidade, resistiram com seus valores culturais e fizeram o samba. Segue a letra original de Caetano:
“A tristeza é senhora; Desde que o samba é samba, é assim; A lágrima clara sobre a pele escura; A noite, a chuva que cai lá fora”. “Solidão apavora; Tudo demorando em ser tão ruim; Mas alguma coisa acontece; No quando agora em mim; Cantando eu mando a tristeza embora”. “O samba ainda vai nascer; O samba ainda não chegou; O samba não vai morrer; Veja, o dia ainda não raiou; O samba é o pai do prazer; O samba é o filho da dor; O grande poder transformador”.
Espero que Lula melhore o Brasil
Meu grande Herói
Em meus 72 anos, conheci muitos vultos da história brasileira. O maior herói vivo que conheço é Edson Arantes do Nascimento, o fabuloso Rei Pelé. Que os deuses do futebol e dos gramados protejam o maior craque de todos os tempos. Viva Pelé.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)