Quatro anos e muita, muita destruição depois, o Estadão chega finalmente à conclusão de que NUNCA FOI UMA ESCOLHA DIFÍCIL.
“A derrota de Jair Bolsonaro parece ter livrado o País das amarras que o modus operandi do presidente impunha ao funcionamento das instituições de Estado. Já se sabia dos efeitos do descalabro bolsonarista em políticas públicas voltadas ao meio ambiente, educação, ciência e cultura, mas o que surpreende é o quão bem-sucedido o governo foi em destruir áreas que não pareciam estar na mira presidencial, como saúde e assistência social”.
Por mais incrível que possa parecer para quem acompanhou de perto todas as artimanhas da mídia hegemônica ao longo desses últimos seis anos, este trecho acima é de um editorial do jornal Estado de São Paulo. Foi publicado no dia 30 de novembro, um mês depois do segundo turno que deu vitória a Lula.
Em 2018, às vésperas do segundo turno, disputado entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, o Estadão cunhou a pérola de editorial que ficaria como uma marca da nefasta ideia de que havia polarização entre o candidato da extrema-direita (Bolsonaro) e o candidato petista (Haddad). Acima das fotos dos dois candidatos, o título: “Uma escolha muito difícil”.
Quatro anos e muita, muita destruição depois, o Estadão chega finalmente à conclusão de que NUNCA FOI UMA ESCOLHA DIFÍCIL. Nós avisamos, e como avisamos. Nesse período, produzi a série de artigos “Uma escolha difícil” para o Jornal GGN (chegamos ao número 9), pois o Estadão insistia em fazer comparações totalmente descabidas entre Jair e os candidatos petistas. Nessa versão que encerra a série, no editorial do dia 30/11,o jornal paulista chega à conclusão de que não dá pra colocar no mesmo rol, sob o nome de “polarização”, propostas tão distintas de país – se é que podemos dizer que Bolsonaro teve alguma proposta para o Brasil que não a destruição.
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No editorial do dia 30/11, o Estadão enumera algumas das loucuras do governo e chama a atenção para a destruição provocada por Bolsonaro e pelo bolsonarismo. Cito alguns trechos:
1 “Ainda na campanha, a apresentação do Orçamento de 2023 já era um prenúncio de tempos difíceis, com tesouradas brutais em programas como o Farmácia Popular e a ausência de recursos para garantir o piso do Auxílio Brasil”
2 Com quase 700 mil mortes, uma nova onda de casos e cobertura vacinal insuficiente, o País pode ter de descartar 13 milhões de doses de imunizantes contra a covid-19 com prazo de validade prestes a expirar. O prejuízo, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), pode chegar a quase R$ 2 bilhões.
3 O jornal Valor mostrou que beneficiários do Auxílio Brasil têm tido os pagamentos bloqueados sem motivo aparente. Solucionar o problema exige meses de espera para agendar um atendimento presencial nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) – filas que devem explodir com a tardia investigação sobre o crescimento de famílias unipessoais no Cadastro Único (CadÚnico), convenientemente iniciada somente depois do segundo turno.
4 A substituição da figura agressiva, vingativa e desagregadora de Bolsonaro pelo vulto apático que o revés eleitoral evidenciou parece ter encorajado muitos servidores até então silenciados a colaborar na descrição das consequências práticas da balbúrdia a que o País foi submetido nos últimos quatro anos.
Por fim, o jornal reconhece:
“Diante dos péssimos resultados que o País colheu, cabe perguntar como Bolsonaro conquistou quase metade dos votos na disputa presidencial, bem como refletir sobre o que isso revela sobre as noções brasileiras de cidadania e coesão social.”
Acho que cabe perguntar também como e por que a mídia tradicional hegemônica embarcou na canoa do bolsonarismo em 2018. O editorial é, sem dúvida, contundente e arremata bem o que foram esses quatro anos de horror. Mas igualmente deixa em branco o papel também péssimo que a mídia hegemônica teve nestes últimos seis anos, desde o golpe contra Dilma Rousseff. Bolsonaro nunca escondeu o que ele era, nunca camuflou o machismo, o racismo, a incompetência, a misoginia, a pulsão pela destruição. Sempre se mostrou bem às claras. A imprensa brasileira, Estadão incluído, NATURALIZOU esse candidato, tornou ele alguém palatável e normal, um candidato como outro qualquer do campo democrático. Mas sabíamos, e agora isso tudo se confirma, que Bolsonaro nunca foi um candidato normal ou pertencente ao campo democrático.
Nunca foi uma escolha difícil, portanto. Desde aquele momento de 2018. E perceber isso, assumir isso, mesmo com críticas ao PT e ao candidato Haddad, teria poupado o Brasil de viver um dos piores momentos de sua história republicana. Por isso, quando ressalto nas aulas, nos cursos, nas palestras e nos seminários a importância de discutir o papel da mídia, é para de fato colocar e marcar a centralidade dessa ação, a centralidade da construção midiática para a democracia.
O editorial do Estadão faz um reconhecimento importante neste momento, não há dúvida, mas é preciso que haja um reposicionamento da mídia e é fundamental que a sociedade civil entenda o papel desse discurso, dessas construções. Para o bem de nossa tão combalida democracia. E para que não tenhamos de viver novamente esse horror todo.
ELIARA SANTANA ” JORNAL GGN” ( BRASIL)
Eliara Santana é uma jornalista brasileira e Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), com especialização em Análise do Discurso. Ela atualmente desenvolve pesquisa sobre a desinfodemia no Brasil em interlocução com diferentes grupos de pesquisa.