Minha geração teve o prazer de ver Didi pegar a bola no fundo das redes, colocá-la debaixo do braço e, em passo altivo, depositá-la no centro do campo. Iniciava-se aí a conquista da Copa do Mundo de 1958, na Suécia. Didi foi o jogador que mais admirei na vida. Sua “folha seca” desafiava a lei da gravidade e seus passes precisos transformavam o futebol em corpo de baile liderado por Pelé.
Emoção parecida tive agora com o Golaço deste jovem Richarlison. Não foi um gol qualquer. No giro de atleta, com a energia de um “rabo de arraia”, nunca um chute foi tão dramático . Nunca o grito de desabafo de um povo tão unânime, como se nos libertássemos de um cativeiro escravizante. O gol de Richarlison foi o chute de milhões de brasileiros a jogar no lixo da história toda a angústia represada em quatro anos de tormentas diárias, de ódio cotidiano, de mentiras e de falácias. Uma catarse a romper os diques de uma frustração coletiva.
Não creio que se possa ideologizar este grito de alívio. Não pertence a este ou aquele grupo político. É um golaço brasileiro, essencialmente nosso, vestido finalmente do verde amarelo que nos une e não de uma camisa expropriada de sua mensagem de excelência. Hoje, todos a usamos de novo. Orgulhosamente.
Aos poucos, os brasileiros tomamos consciência de que o mal e o ódio não se identificam com nosso caráter nacional. Os despojos e destroços se acumulam diante de nosso espanto e de nossa tristeza. São tantas e tão profundas as cicatrizes ainda expostas em nosso tecido social que, entremeados com o desespero compreensível, com a indignação incontrolável, ressurgem de forma inquestionável a determinação de virar a página, de arregaçar as mangas e de reconstruir, ou talvez, construir em bases mais firmes nosso destino como povo e nação.
60 milhões de brasileiros optaram pela Democracia. Após se desvendarem os meandros de tanta insensatez e sobretudo de tanta incompetência, seremos mais de 200 milhões afinados com nosso destino de país democrático, comprometido com a paz e com a solidariedade .
Não acredito que os que não nos acompanharam na votação em favor da Frente Democrática, constituída pelas lideranças de Lula e Alckmin, sejam defensores de um Brasil tão profundamente inarticulado a parecer mais miragem do que realidade.
Não acredito que a Direita possa defender uma política social tão inequívocamente desastrada como a exposta pelo Tribunal de Contas da União em praticamente todas as áreas do desenvolvimento econômico e social do país.
Regredimos em nossos índices de desenvolvimento industrial. Sanitário. Educacional. Regredimos como gente.
Não acredito ser a Direita capaz de apoiar bloqueios de estradas, onde impera a impensável ignorância a impedir um pai de levar seu filho a uma cirurgia de emergência. A Direita não é troglodita. Certos protestos antidemocráticos e anticonstitucionais atendem pelo nome de terrorismo. E com ele compactuar, principalmente quando o apoio venha de um estamento ou de um funcionário do Estado é passo bêbado em direção à anarquia.
Não acredito que qualquer ideologia política possa aceitar o Brasil desabar tão profundamente no conceito de nações democráticas, a ponto de se tornar quase um pária nas relações internacionais. E mais grave ainda é um chanceler brasileiro declarar publicamente ser aceitável a condição de um Brasil-pária. Vivemos e amargamos a empáfia mais brutalmente ignorante, proclamada a quatro-ventos em permanente desrespeito ao Estado Democrático de Direito. Há que recompor a harmonia entre os Poderes, sem que nenhum deles, ou parte de um deles, possa instalar-se num suposto altar onipotente, em franca, direta e violenta hostilidade à letra da lei e à soberania popular.
De imediato, porém – e como tão providencialmente já nos alertam os ex-ministros da Saúde que compõem a equipe de transição apontada por Lula e Alckmin -, devemos proceder a uma rápida e completa vacinação da sociedade brasileira. O ressurgimento de casos de Covid impõe uma revisão do programa vacinal, não só nos grandes centros urbanos, mas também fora deles, onde se constatam vazios intoleráveis.
A vacinação de crianças contra o covid e outras doenças que já havíamos praticamente extirpado, como a pólio, o sarampo, dentre outras, deveria ser iniciada nos primeiros dias do governo, caso não se possa fazê-lo antes. É uma dívida social com o futuro do país.
A recuperação do SUS e a retomada de seu atendimento poderia talvez beneficiar-se de um movimento solidário, aberto a todos os que com ele possam cooperar em mutirões de médicos aposentados, estudantes de medicina, enfermagem, assistência social e psicológica, respeitadas as diretrizes de um indispensável planejamento governamental .
A importância dos médicos de família, principalmente em áreas rurais onde considerável número de patologias pode por eles ser debelada, antes de se tornarem crônicas ou debilitantes.
Há um Brasil a reconstruir. O que se terá de fazer em Educação não será muito diferente. Sem falar em saneamento básico. Retomada de nossa engenharia civil. E a reentrada de nossa Diplomacia como agente imprescindível em negociações internacionais mais justas e progressistas das que nos levaram aos impasses da globalização assimétrica e a um cenário geopolítico particularmente instável. O Brasil voltou.
A hora é de fazer golaços. Os tempos de gol “contra” acabaram.
ADHEMAR BARADIAN ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)