Desde os anos da hiperinflação, o Brasil só começa a sossegar depois que o novo ministro da Fazenda é revelado.
- Nesta segunda-feira, se nada sair do planejado, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva viaja à COP-27, no Egito, para firmar o novo papel do Brasil no projeto global de conservação do meio ambiente. Com um capital verde poderoso na Amazônia, devastado nos anos Bolsonaro, o país alinha-se a partir de agora às nações mais conscientes dos prejuízos reais que as mudanças climáticas já estão impondo ao planeta. Aplausos a Lula que volta triunfante ao palco mundial, ao lado da ex-ministra Marina Silva, referência na luta para manter as florestas em pé.
A consagração de Lula no exterior foi colocada à frente da ansiedade do mercado financeiro nacional, que cobra reiteradamente o nome do próximo ministro da Fazenda desde que o petista estava na dianteira nas pesquisas eleitorais. É o Brasil dos 156,4 milhões de eleitores, mas com uns 5 milhões de investidores da Bolsa de Valores brasileira, a B3, que tocam a banda para aplaudir ou vaiar o que o governante da vez está fazendo. E Lula foi vaiado na última quinta-feira, dia 10, por não atender à pressa dos investidores que querem respostas rápidas para perguntas complexas.
Lula acabava de discursar em Brasília sobre o desafio de encaixar um rombo de R$ 175 bilhões no teto de gastos deixado por Bolsonaro com a necessidade de esticar o cobertor para atender aos problemas urgentes no campo social, como os mais de 30 milhões de brasileiros passando fome e a política de vacinação abandonada. Lula semeou dúvidas ao questionar se alguns gastos para a área social não deveriam estar na rubrica de investimento, desafiando a lógica cartesiana dos livros de economia que alimenta os “mercadistas”. Foi o suficiente para acender o alerta em instituições financeiras.
As críticas vieram até mesmo de aliados, como Henrique Meirelles, que se perguntou se Lula iria “dilmar”, em alusão às gestões da ex-presidente Dilma Rousseff, quando o orçamento público foi comprometido, o que derivou para um quadro de recessão em 2015 e 2016. “É engraçado que esse mercado não ficou nervoso em quatro anos de [Jair] Bolsonaro”, ironizou Lula.
A ironia é certeira. Nos anos de Bolsonaro, o mercado não se apavorou com os seguidos rombos do teto de gastos como nesses primeiros dias de Lula por Brasília. O problema é que a irresponsabilidade do governo que está deixando o poder já era “precificada” – ou seja, já era considerada na hora de corretoras e investidores estabelecerem o balcão de compra e venda de papéis do mercado de ações. E essa entidade chamada “mercado”, que não segue nenhuma moral humana a não ser a matemática dos lucros, sabia que alguma solução mágica sairia do chapéu de Paulo Guedes, ainda que fosse espremer ainda mais as verbas de programas sociais, ou apelar a um orçamento secreto para fazer puxadinhos.
Assim, a disputa no Brasil saiu rapidamente da campanha eleitoral para a realidade. De um lado, um Lula apoiado por seu combate à fome a qualquer custo. De outro, economistas malhando o neoeleito como se tivesse anunciado a pena de morte ou um confisco da poupança.
Para baixar os ânimos, somente quando o Brasil souber o nome, sobrenome, escolas de formação, hobby e tuítes antigos de quem vai suceder Paulo Guedes. E Lula deixou essa tarefa para depois da COP-27. Viciado na lógica econômica desde os traumáticos anos da hiperinflação, o Brasil só começa a sossegar depois que o novo titular da pasta é revelado. A bolsa de apostas é grande, indo de Henrique Meirelles, passando por Pérsio Arida, até Fernando Haddad, derrotado na disputa ao governo de São Paulo. É a definição desse cargo que vai dar o norte para que o país se organize, seja para o dinheiro de curto prazo, seja para decisões empresariais de investimentos.
Por ora, há apenas deduções. Se com Bolsonaro as classes mais abastadas ganharam concessões do governo, com Lula a grande massa deve ser beneficiada, como ocorreu em seus dois governos iniciais. Mas para cada uma dessas decisões, abrem-se novas janelas. Lula austero como no primeiro mandato de 2003 a 2006, ou Lula gastador como em seu segundo mandato, quando o crédito farto ajudou o país a crescer e a eleger Dilma Rousseff na sequência.
Nos primeiros anos de Lula no poder, escolher os ministros já era uma tarefa difícil pela necessidade de negociar com as diversas correntes internas do PT. Imagine quando o partido se une aos representantes do velho PSDB, que sempre foi seu adversário natural. Não se trata de uma guerra de egos, mas de escolas de economia que sempre estiveram em lados opostos. Se mais estado ou mais privatizações, se mais endividamento ou mais austeridade. São dogmas que separam economistas que estão juntos, por agora, no governo de transição. São Pérsio Arida, Nelson Barbosa, André Lara Resende e Guilherme Mello, escolhidos para conduzir este período, que estão traçando diagnósticos para saber quanto cada escola de economia vai ceder.
Uma coisa é certa. Há ao menos um consenso político no Brasil de que é preciso tirar o país do mapa da fome, retomar os investimentos em educação e sair da miséria moral a que fomos submetidos por Bolsonaro. Foi o que fez a terceira via se unir a Lula na reta final da eleição. Seria impensável imaginar que o petista iria desperdiçar esse capital, que lhe valeu a vitória presidencial mais difícil da história recente no Brasil. “O mercado fica nervoso à toa”, sugeriu Lula. “Ninguém deveria tecer mais que uma nota de jornal sobre esse sobe e desce da bolsa”, brincou a economista Monica de Bolle.
Mas o PT precisa reconhecer que chega ao poder com milhões de votos contrariados, mais antibolsonaristas do que lulistas. De pessoas que sentem ojeriza, justa ou injustamente, ao ouvir o nome de Guido Mantega, Nelson Barbosa, Fernando Haddad potencialmente na Fazenda. Há de se respeitar o estresse pós-traumático dos anos Dilma na economia, que quebraram muitas empresas e ajudaram a eleger Bolsonaro.
Nada do que ocorreu nos últimos dias é novidade para Lula. Às vésperas da eleição do segundo turno de 2002, o então candidato à presidência vivia um quadro de dólar nas alturas pelo medo do que o seu governo poderia fazer com a economia. “Diga ao mercado que eu sou amigo dele”, disse Lula numa entrevista na ocasião. O dólar, que havia começado na casa dos R$ 2,30, beirava os R$ 4 em meados de outubro daquele ano. A eventual vitória de Lula era um risco à estabilidade da moeda conquistada a duras penas pelo Plano Real de 1994, que inaugurou a chamada âncora fiscal e deu ao Brasil a tão esperada previsibilidade: o poder público não gastaria mais do que arrecadava, para evitar endividamento. Lula enfrentou desconfianças, e o dólar só voltou a ceder em meados de 2003.
Vinte anos se passaram desde então. Há um déjà-vu de 2002. O mercado volta a assumir o papel de histeria que até pouco tempo estava personificado em Bolsonaro. E, como naquela véspera do primeiro mandato, o PT tem diante de si um desafio: Lula não pode errar na calibragem do seu governo, sob risco de ter um clima nefasto governando o país outra vez.
CARLA JIMENÉZ ” THE INTERCEPT” ( BRASIL)