AS CONVERSAS E OS DISCURSOS

CHARGE DE MIGUEL PAIVA

Com 50 anos de experiência no jornalismo de Economia, só vim a me aventurar, em 2019, a escrever essa coluna, que era publicada na página 2 do velho JB, às segundas-feiras, em rodízio com a “Coluna do Castelo”, magistralmente escrita por Carlos Castelo Branco até sua morte, em 1993, no governo Collor, contando os bastidores da vida política brasileira, em meio à Ditadura militar e à redemocratização. Aceitei a empreitada que escapa um pouco da moldura da Economia, no JB online, depois que o projeto de volta do JORNAL DO BRASIL às bancas, que comandei de janeiro de 2018 a abril de 2019, foi suspenso. Na ocasião, o que as antigas bancas menos vendiam eram jornais e revistas. A de frente à minha casa, em Ipanema, fica movimentada até a madrugada. Vende de tudo: de cigarros (em maços ou eletrônicos) a bebidas, bonés, sandálias e jogos. Se você perguntar por revistas, há exemplares da “Veja”, “IstoÉ”, “Piauí” e da “Forbes”, amontoadas entre outras. Nas prateleiras não há mais a busca por revistas nacionais ou estrangeiras. Estão disponíveis (pois são perenes) revistas de autoajuda, palavras cruzadas (gosto do passatempo) e adivinhações correlatas. Outro dia, peguei uma revistinha que tinha o título “Palavras Cruzadas” na capa. Ao folhear em casa, a 1ª página era de “caça-palavras”, diversão para crianças. As demais também. Aí já era tarde, tinha feito, contrariado, rabiscos na página inicial. Fica o alerta.

Ainda assim, o jornalismo resiste, mais concentrado no noticiário “online” da TV e dos sites dos grandes jornais e revistas. Entretanto, a pressa em divulgar notícias para serem lidas no celular, muitas vezes, leva a erros de interpretação. A função do editor geral e dos editores setoriais era pesar, nos jornais, revistas e sites, o que era mais relevante e hierarquizar as notícias. Com esse noticiário instantâneo, pensa-se menos e cede-se à última novidade. Com Trump, os governantes passaram a usar essa avidez do noticiário “online” para criarem “fatos alternativos”, que ficaram mais conhecidos como “fake news”. Ou seja, notícias mirabolantes que serviam só para desviar a atenção do público quando o governo ou o governante estava numa “sinuca de bico”.

O governo Bolsonaro cansou de abusar do expediente, sempre inventando algo para estar no noticiário e relegar a crise a 2º plano. Sua última grande empreitada foi tentar garantir grandes adesões populares às paradas do Bicentenário da Independência, na quarta-feira do 7 de setembro, em Brasília e na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. O presidente da República, candidato à reeleição, que já tinha sequestrado do Orçamento recursos para sua campanha, esvaziou a festa cívica dos 200 anos da Independência do Brasil do Reino de Portugal, Brasil e Algarves, e obrigou as Forças Armadas a se perfilarem em desfiles diante seu palanque eleitoral. Como Bolsonaro estava usando o Ministério da Defesa para levantar dúvidas sobre as urnas eletrônicas e o processo eleitoral, imaginava que o evento iria dominar as redes sociais e a mídia até o fim da semana. Só que, além de não ter tanto público, a rainha Elizabeth II, do Reino Unido, morreu na manhã do dia seguinte, 8 de setembro. Bolsonaro saiu das manchetes das redes sociais. Sites, TVs e jornais só falavam da morte da rainha após sete décadas de reinado. Bolsonaro tentou “sair na foto”, ao ir a Londres para desfilar diante do caixão. Antes, quebrou o luto com comício na sacada da embaixada. Depois foi a Nova Iorque mentir e renovar promessas vãs na ONU. Perdeu uma semana de campanha.

O rombo de Bolsonaro X o de Lula

Todo o arsenal de medidas que esgarçou o Orçamento deste ano (com reduções temporárias de impostos até 31 de dezembro, período em que distribuiria R$ 42,5 bilhões a eleitores no Auxílio Brasil aumentado de R$ 400 para R$ 600, além de mesadas de R$ 1 mil a caminhoneiros e taxistas, e o Vale-Gás) precisaria ser renovado em 2023, para atender sua promessa eleitoral de manter o AB em R$ 600 (a proposta do Orçamento Geral da União, enviada ao Congresso em outubro, tinha previsão de pagar apenas R$ 405) e elevar o salário mínimo a R$ 1.400.

O rombo estava contratado com Bolsonaro ou com Lula (que prometeu os mesmos R$ 600 do AB na volta do Bolsa Família, com adicional de R$ 150 para cada filho até seis anos na escola e com carteira de vacinação em dia), além de aumento real para o salário mínimo (quase o mesmo que Bolsonaro). Se Bolsonaro fosse eleito, era certo de que caberia ao ministro da Economia, Paulo Guedes, que bolou a redução temporária de impostos em energia elétrica, comunicações e combustíveis para maquiar a inflação até as eleições, estar à frente para corrigir os desvios e vazamentos.

Mas todo o arsenal de uso desmedido da máquina pública não adiantou, e o ex-presidente Lula foi eleito. E sem anunciar quem irá comandar a área econômica do novo governo, com a provável ampliação do desmembramento do Ministério da Economia, iniciado por Bolsonaro, que recriou a pasta do Trabalho e Previdência (voltariam a Fazenda, o Planejamento e Gestão, e a pasta da Indústria, Comércio e Comércio Exterior). Lula quer conhecer a situação do Erário deixada por Guedes e Bolsonaro para desenhar melhor o figurino de suas prioridades no 1º ano de governo.

Antes, Lula está fazendo o que sabe melhor para distender o quadro político, devido à vitória apertada. Está conversando para restabelecer o mínimo de harmonia e interdependência na atuação dos três poderes da República (dialogou com os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que era escudeiro de Bolsonaro, e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), além dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Conversar vale mais que discursos para garantir recursos no Orçamento da União de 2023 para o Bolsa Família de R$ 600, a retomada do Farmácia Popular e o salário mínimo com reajuste real.

Já estão nomeados coordenadores ou grupos de trabalho da Transição para mapear 31 áreas temáticas. Há quem especule que isso gerará 31 ministérios (o número máximo de 35 pastas foi registrado no 2º governo Dilma; Temer reduziu para 27 e Bolsonaro encolheu a 22, e agora tem 23 pastas). O mais provável é que alguns destes temas virem apenas secretarias especiais

Excesso de expectativas

Por isso, e pela magnitude do rombo deixado pelas medidas eleitoreiras de Bolsonaro, cujo fôlego se esgotou na maquiagem da inflação já em outubro (embora o IBGE só tivesse divulgado o resultado 10 dias depois do 2º turno) e a desaceleração da arrecadação e da economia já batendo às portas do país neste último trimestre – situação que deve piorar em 2023 -, há muita expectativa entre os agentes econômicos sobre qual estilo (austeridade e ortodoxia) versus criatividade será usado na PEC para driblar as dificuldades fiscais postas para 2023 (gastos crescentes, refletindo demandas de reposições salariais, enquanto o crescimento do PIB cai para 0,5% a 0,7%, após os 2,5% a 2,7% previstos este ano), a visita do presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva, na manhã de quinta-feira, 10 de novembro, às instalações do Centro Cultural do Banco do Brasil, onde está sediada a equipe de transição era cercada de grande expectativa.

Muitos esperavam que Lula revelasse o ministro da Economia, o que ele disse que só fará depois de voltar da COP 27, o Forum Mundial do Clima da ONU, no Egito, onde estará como convidado e deve desenhar as linhas mestras do futuro governo na área ambiental e na transição energética, o que já será uma grande guinada diante do retrocesso do governo Bolsonaro nessa área. E pode divulgar, na viagem, alguns nomes; menos os da área econômica.

Assim, considero que houve muita especulação sobre as causas da forte subida do dólar 5ª feira, seguida da queda do Ibovespa. Comentários apressados de gente da área política, que quase nada entende de economia e é facilmente emprenhada por “vozes” do mercado, jogaram a culpa na fala do Lula, que começou um pouco depois das 11 da manhã do mesmo dia 10. Discordei, desde o início, da apontada causa e efeito, dada a cronologia dos fatos. A reversão de comportamento na 6ª feira, 11 de novembro, o dólar caiu e o Ibovespa subiu. Meus 50 anos de experiência em Economia valem algo.

Cronologia dos fatos

Os mercados de dólar, ações e juros abrem às 10h. Portanto, antes da fala emocionada de Lula, que manifestou seu compromisso com as demandas dos mais necessitados, mais facilmente satisfeitas com o crescimento da economia, que colocou acima das metas de inflação e da “tal da austeridade fiscal”, o dólar já tinha disparado e as ações que compõem o Ibovespa estavam em queda. O mote foi a divulgação, às 9 horas, do IPCA de 0,59% pelo IBGE.

Isso trouxe a percepção de que a inflação voltou a subir, depois da deflação de 1,33% de julho a setembro, maquiada por Guedes e Bolsonaro com redução de impostos em energia elétrica, comunicações e combustíveis, sobretudo a gasolina, de maior peso no IPCA. Voltou a subir porque a carestia não foi freada nos demais preços. Para o IPCA acumulado de 4,70% de janeiro a outubro, a alimentação subiu 10,32%, mais do que o dobro. O vestuário ficou 14,99% mais caro. Despesas de Saúde e Cuidados Pessoais subiram 9,65%.

Projetando os impactos da inflação adiante (há demanda represada dos governadores de estados pela volta dos impostos do ICMS sobre energia elétrica, comunicações e combustíveis, baixados temporariamente por Bolsonaro até 31 de dezembro e cuja arrecadação também irriga os cofres de prefeituras), os agentes do mercado deduziram que os juros (vale dizer, a taxa Selic) vão demorar a cair e ficarão acima do que se previa em 2023. A Selic está em 13,75% ao ano desde fins de junho, e deveria seguir nesse nível até o fim do 1º semestre de 2023, a partir de quando poderia baixar até 11,25%. Com o novo cenário, as baixas seriam adiadas para o 2º semestre e a Selic fecharia o ano acima de 12%. Os negócios futuros são muito mais volumosos e importantes que as transações à vista (que dão liquidez às posições gerais). No mercado de ações (e outros ativos), a curva projetada para os juros futuros pesa muito. Mas as direções de investimento balizadas tomam por base profundos estudos estruturais. [Aplicar em criptomoedas vai além disso, por isso não ponho fé em investimentos sem regulação, motivo de tantas fraudes.]

Quem derrubou o mercado?

Não sei se você sabe, caro leitor, mas mesmo com o rombo fiscal desenhado para 2023 para os dois candidatos, corretoras e bancos já tinham selecionado carteiras de ações e de investimentos para um futuro governo Lula (aposta que a melhoria da distribuição de renda iria favorecer algumas redes do comércio varejista e alguns bancos de varejo); ou para a reeleição de Bolsonaro (aposta na privatização da Petrobras e BB e em setores do agronegócio).

Os contratos em dólar, ações, commodities e títulos de renda fixa levavam em conta projeções anteriores à inflação de 0,59% no IPCA, que seria bem maior se os combustíveis não tivessem tido alguma queda, bem como as tarifas de telefonia celular baixado 2,05% (o telefone já subiu mais de 6,7%). Foi a senha para a reversão geral das apostas com dólar, juros, commodities e ações nos contratos futuros. E derrubou tudo a partir das 10h. Lula chegou no CCBB às 11h e discursou depois. Por isso, é preciso reconhecer que não foi a sua fala que detonou o mercado. Quem derrubou foi o fracasso prematuro das mágicas eleitoreiras de Paulo Guedes, que não garantiram a reeleição de Bolsonaro e nem seguraram a inflação. Lula, é verdade, somente pôs sal na ferida.

Bolsonaro, por sinal, acabrunhado com a derrota, segue recluso há duas semanas no Palácio do Alvorada, remoendo uma erisipela de claro fundo psicológico. Nem “live” fez para demover ou dar novo ânimo a seus fieis escudeiros que continuam de plantão às portas de quartéis, debaixo de chuva e frio, mesmo depois que o relatório do Ministério da Defesa nada encontrou de inconformidade no resultado das urnas eletrônicas.

Carlos Castelo Branco não se cansava de repetir nas suas colunas no JB, que acompanhei, de lá mesmo, na redação, de 1972 a 1993, a expressão do então presidente da República, o marechal Castelo Branco, condenando, em agosto de 1964, em discurso no auditório da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, os civis que chamavam seu governo de militarista. O marechal-presidente disse o seguinte: “Eu os identifico a todos. E são muitos deles, os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do poder militar”.

Qual os portugueses que esperaram décadas pela volta do Rei D. Sebastião, que morreu em 1578 aos 24 anos, liderando os Cruzados contra os mouros, em Alcácer Quibir, no Marrocos, os bolsonaristas repetem o comportamento das vivandeiras (não lavadeiras, como um jornalista de Brasília escreveu), a “provocar extravagâncias do poder militar”. Nos Estados Unidos, os que confiaram nas lorotas de Donald Trump, sobre fraudes nas eleições de 2020, marcharam por ele na infame invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021, e voltaram a marchar agora a seu lado na derrota no pleito para renovação da Câmara e do Senado e alguns governos estaduais. Um novo líder republicano despontou na Flórida, com a reeleição do governador Ron DeSantis, que pode renovar o Partido Republicano em 2026.

Voltando ao Brasil, a questão é que há muito comentarista de política que nada entende de economia, e muito menos de mercado, e liga mal uma coisa à outra. Por isso, caro leitor, peço já, de antemão, minhas desculpas se cometo deslizes na análise da política brasileira, que não é para principiantes.

GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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