De Lula, o construtor de pontes, confiamos a capacidade de articular essa engenharia que demandará paciência, persistência e coesão
Depois da derrota épica do fascismo à brasileira por uma coalizão progressista liderada pelo presidente-eleito Lula, grandes desafios se colocam à reconstrução da democracia e do Estado brasileiro.
De Lula, o construtor de pontes, confiamos a capacidade de articular essa engenharia que demandará paciência, persistência e coesão de todos os envolvidos na empreitada. Inclusive, nós, do campo progressista.
Cabe-nos, pois, alertar e enumerar alguns desses macrodesafios (não necessariamente nesta ordem):
1. Poder militar: pelo menos oito golpes militares marcam a história do Brasil desde a independência. Um livro recente do jornalista Fabio Victor, “Poder camuflado, os militares e a política”, fruto de exaustiva pesquisa, mostra que a casta militar brasileira sempre teve ascendência sobre o poder civil, inclusive no período pós-redemocratização. Depois que o governo Dilma Rousseff criou a Comissão da Verdade e cogitou mudanças no conteúdo de ensino das academias militares, os generais saíram das sombras para embarcar na empreitada golpista que culminou na eleição e no apoio incondicional dos militares a Jair Bolsonaro. Portanto, não foi Bolsonaro que escolheu os militares. Ao contrário, os militares escolheram Bolsonaro. Montar um governo de união nacional no qual os civis digam às Forças Armadas qual o seu papel e (que) não se submeta à tutela dos fardados é um desafio que não pode ser desconsiderado e postergado.
2. Poder religioso: está evidente que a transição religiosa no Brasil ressuscitou o integralismo dentro do catolicismo e faz de significativa parte das igrejas neopentecostais evangélicas verdadeiras máquinas de manipulação religiosa. Sabe-se que a extrema-direita global tem no fundamentalismo cristão uma das principais estratégias à assunção ao poder. Aproveitando-se dos discursos de costumes, da insegurança e do medo em relação ao futuro (em sociedades hipercompetitivas dos regimes neoliberais), de fantasmas insepultos, como o comunismo, na luta maniqueísta do “bem contra o mal”, o fundamentalismo religioso é verdadeiro “ópio do povo” a serviço de “salvadores da pátria”. Reforçar as bases do estado laico e dar mais atenção à cultura religiosa, fundamento da cultura nacional, é um desafio à governabilidade para o governo eleito.
3. Poder econômico: como aconteceu em outros governos autoritários (no Brasil e no mundo), o poder do dinheiro de empresários (da indústria, do comércio, de serviços e do agronegócio) aliado ao mercado (improdutivo) de capitais, ávidos por lucro fácil (e, no Brasil, defensores despudorados de relações de trabalho escravistas), foi um dos sustentáculos do governo Bolsonaro. São segmentos, salvo exceções, que não estão preocupados com a democracia e tampouco com o país e com o povo. Só pensam no curto prazo e nos seus interesses. Convidados a participarem da (nova) concertação nacional, precisarão dar seu quinhão para a construção de um projeto de Nação. Enfrentar a sanha privatista será uma batalha constante. Colocar a economia a serviço da vida e não do deus-mercado é fundamental. Na perspectiva social-democrata, a economia está a serviço do combate à miséria, pobreza e das múltiplas formas de exclusões. Nesse sentido, em sociedades capitalistas, a economia é o fundamento de uma ordem democrática estável. Os indicadores pornográficos de desigualdade social e étnico-racial no Brasil não podem ser tolerados se desejamos uma democracia real.
4. Frente ampla: a engenharia para a consolidação dessa frente pluripartidária, interinstitucional e multisetorial – que deve não somente dar estabilidade ao governo, mas impedir o retorno do fascismo -, é tarefa hercúlea. Achar o equilíbrio entre a sanha fiscalista e neoliberal da direita e a necessidade de ampliação do estado de bem-estar social, num país cujas políticas públicas foram esmagadas e a fome e miséria campeiam, demandará disposição de todas as partes para além de boas intenções. Do campo progressista, que venceu o pleito, espera-se coesão, sem intransigência, por um lado, e sem concessões que descaracterizem um projeto político que tem compromisso com a justiça social. Afinal, todos sabemos que o governo não será de esquerda. Na melhor das hipóteses, um governo social-democrata. Mas, não pode ser um governo de direita (mesmo tendo a direita democrática como aliada).
5. Repactuação federativa: demanda o restabelecimento da relação harmoniosa entre os poderes e entre os entes federados. Especialmente, sabemos do perfil conservador do Parlamento eleito, com muitos atores da extrema-direita. As lideranças das duas casas legislativas no Congresso serão fundamentais para a estabilidade do governo. Sabe-se que cerca de 20% da população brasileira é da extrema-direita, mas há uma sobrerrepresentação desse grupo no Parlamento. Ademais, os extensos grupos de parlamentares fisiológicos e corporativistas – que caracterizam boa parte dos congressistas -, articulados nas bancadas religiosas, das armas e do agronegócio costumam se associar aos radicais da direita na defesa de interesses privados em detrimento de interesses públicos. Para a reconstrução das políticas públicas e reposicionamento do papel do Estado na nova concertação nacional será necessária ampla articulação dos setores progressistas no enfrentamento dos extremistas.
6. Isolamento da extrema-direita: com tantos desafios a serem enfrentados, não menos importante é isolar a extrema-direita no Brasil. Para tanto, espera-se, em primeiro lugar, que o Poder Judiciário e o Ministério Público atuem firmemente na punição de todos os detratores e usurpadores da ordem democrática nos últimos tempos. Não é possível aceitar qualquer tipo de anistia e conciliação com os que atentaram contra o estado democrático de direito. Os erros cometidos com a lei da anistia, de 1979, e o pacto entre elites, na redemocratização, que não puniram os criminosos da ditadura e permitiram seu retorno ao poder, não podem ser repetidos. No caso de Bolsonaro (e muitos de seus principais auxiliares), abundam crimes a serem processados pela justiça eleitoral e pela justiça comum. Que a lei seja rigorosamente cumprida.
7. Projeto de Nação: mesmo com tantos desafios, o enfrentamento ao fascismo possibilitou a união de forças democráticas, de amplos espectros políticos, impensável há algum tempo. Portanto, abre-se uma oportunidade ímpar para a construção coletiva de um projeto inclusivo, solidário, democrático para o povo brasileiro. Pensar o Brasil para além de governos parece ser um ponto crucial para superarmos os solavancos da frágil democracia brasileira. Um robusto projeto de Nação possibilitará ao Brasil, um país com imensas potencialidades humanas e naturais, inserir-se no concerto das nações não como satélite, mas protagonista, num mundo multipolar que está a surgir.
ROBSON SÁVIO REIS ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)
Doutor em Ciências Sociais e pós-doutor em Direitos Humanos