A verdade tem de ser dita. Após 45 horas de silêncio ensurdecedor desde que o Superior Tribunal Eleitoral declarou domingo, 30 de outubro, que o ex-presidente Lula tinha vencido o presidente Jair Bolsonaro por 60,345 milhões, a curta fala (menos de 2 minutos) de Bolsonaro (sem reconhecer explicitamente a vitória de Lula), além de tardia e desconexa, conteve, na sequência, um anúncio errado do chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira: “O presidente Jair Bolsonaro me autorizou a iniciar a transição de governo” .
A transição de governo, com equipe formal de cada ministério sendo obrigada a indicar a situação efetiva das contas e tratativas da pasta com outros entes do governo e ainda com o Legislativo e o Judiciário, foi determinado em 16 de outubro de 2022, após a eleição de Lula, pelo Decreto 4.425, assinado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e por seu chefe da Casa Civil, Pedro Parente. A Casa Civil é o representante político-administrativo do governo, uma espécie de primeiro-ministro. Daí, ser agora Ciro Nogueira o líder da transição.
Preservar o real e a paz
A grande preocupação de FHC foi garantir não apenas uma transição pacífica e democrática, mas, sobretudo, dar solidez e continuidade ao Plano Real. Na campanha, o PT pregara calote nas dívidas externa e interna e outras medidas radicais. Assim, o decreto estabeleceu que “cada Ministério deverá elaborar Livro de Transição com (…) informação sucinta sobre decisões tomadas em período recente, que possam ter repercussão de especial relevância para o sucessor do Ministério; lista das entidades com as quais o Ministério mais (…) interage, em especial órgãos da Administração Pública Federal e organismos internacionais, com menção aos temas que motivam essa interação; lista das comissões do Congresso com as quais (…) mais interage”. E fornecer “versão atualizada da Agenda 100 do Ministério, a ser fornecida pela Casa Civil”.
Pelo Decreto de Fernando Henrique Cardoso (de 16 de outubro de 2022), cada ministro de Estado teria de indicar “até 29 de outubro de 2002”, (menos de duas semanas) ao Chefe da Casa Civil da Presidência da República, o servidor que será responsável pela ligação entre a equipe atual do Ministério e a equipe do novo Presidente da República”. A regra visava garantir, pelo menos dois meses de trabalho para a transição não ser feita de atropelo e não atrapalhar as ações do governo que tomaria posse em 1º de janeiro (garantindo o real).
Bolsonaro atrasa abertura da ‘caixa preta’
Quem não se lembra da campanha de 2018? Uma das promessas de Bolsonaro era “abrir a caixa preta do BNDES”, para desvendar as operações de empréstimos do BNDES a projetos de serviços de engenharia a países africanos e na América Latina (Angola, Gana, Moçambique, Peru, Colômbia, Cuba e Venezuela). Na busca por encontrar “tesouros escondidos” demitiu o 1º presidente do BNDES, Joaquim Levy, que não “arrombou o cofre” como queria. O atual, Gustavo Montezano, revirou os arquivos e nada de bombástico surgiu. Mas o tema voltou a ser explorado pelo presidente agora em debates com Lula.
Pois, a demora de Bolsonaro em reconhecer a derrota (nos demais países democráticos o ritual da transição é desencadeado a partir deste ato político) já está atrasando os trabalhos para a abertura da “caixa preta” de seu governo.
Com o feriado de Finados e a 1ª reunião marcada para esta 5ª feira, 3 de novembro, a equipe tem menos de 45 dias (descontando o Natal) para desvendar o real estado das finanças públicas e definir planos para 2023 após o estrago pelos mais de R$ 100 bilhões distribuídos nas medidas eleitoreiras autorizadas pelo “estado de emergência” aprovado pelo Congresso Nacional..
Como a partir de 2003, quando Lula iniciou o 1º mandato de presidente da República e conseguiu a reeleição em 2006 (sobre Alkmin) e depois elegeu Dilma, reeleita em 2014, o decreto da Transição voltou a ser determinante na sucessão do governo Temer para o governo de Jair Bolsonaro (o “impeachment” de Dilma, em 2016, não deixou margem para tal).
Transição de Temer ajudou Guedes
Coube ao último ministro do Planejamento de Temer, Esteves Colnago (com a decisão do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, de deixar o governo em abril, para concorrer à presidência, houve muitas trocas nos ministérios e a Fazenda terminou com Eduardo Guardia, falecido ano passado), preparar e transferir dados à equipe econômica, que seria comandada por Paulo Guedes. Colnago, um experiente quadro que passou pelo Banco Central e vários setores ministeriais, acabou sendo absorvido por Guedes no Ministério da Economia, onde hoje é Secretário Especial do Tesouro e Orçamento (e deve ser atuante na Transição). Ele revelou amplo diagnóstico da situação fiscal do país, e os planos de algumas reformas adiadas após a divulgação das gravações de Joesley Batista com Temer, que quase derrubaram o governo.
Temer ainda conseguiu aprovar a reforma trabalhista. Entre as reformas arquivadas estavam a da Previdência, a 1ª que Guedes emplacou com a ajuda do ex-deputado Rogério Marinho (nomeado por Bolsonaro ministro do Desenvolvimento Regional, para concluir a Transposição do São Francisco, função que garantiu sua eleição a senador do RN pelo PL) e o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
Baseado em relatório completo sobre as estatais produtivas e as têm ajuda do Tesouro Nacional e os imóveis e bens da União, Guedes previu economia de mais de R$ 1 trilhão na Previdência, em 10 anos, e arrecadar R$ 1 trilhão na privatização e outro R$ 1 trilhão na venda de imóveis. O ganho na Previdência murchou para R$ 700 bilhões, porque Bolsonaro cedeu às pressões dos militares e do Judiciário; depois. as contas foram atropeladas pelo impacto da pandemia (de janeiro a setembro deste ano, o INSS acumulou déficit de R$ 232,7 bilhões, inferior em R$ 10 bilhões ao do mesmo período de 2020).
Já as privatizações e as vendas de imóveis nem chegaram a R$ 350 bilhões. A maior privatização, a da Eletrobras, carreou apenas R$ 67 bilhões para o Tesouro. O montante foi engordado por ganhos indiretos de vendas de patrimônio e filiais da Petrobras, Banco do Brasil, Caixa e outras estatais. Quanto aos imóveis, o resultado nem chegou a R$ 20 bilhões.
Vale dizer que, ao abrir mão, para as companhias operadoras de telefonia do patrimônio físico de imóveis e bens que pertenciam à União (e não faziam parte do leilão de privatização da concessão dos serviços (em 1998), o governo Bolsonaro entregou um patrimônio de quase R$ 100 bilhões à Oi (herdeira da antiga Telerj, que tinha dezenas de imóveis no Rio de Janeiro), à Claro (que ficou com a Embratel), à TIM e à Vivo/Telefônica de Espanha. Uma negociata.
A evolução tecnológica, com o avanço dos microchips, permitiu que as centrais telefônicas, antes abrigadas em prédios de 10 a 12 andares, pudessem ser confinadas em um ou dois andares. Só no Rio, os imóveis da Oi foram rapidamente vendidos (um deles em Botafogo está sendo transformado em hospital do plano de saúde da Prevent Senior), com receita muito superior a tudo o que a União não consegue vender.
Na campanha, Guedes chegou a dizer que a venda de uma praia a estrangeiros renderia R$ 15 bilhões (o litoral é “área de marinha”, segurança nacional, com direito pleno de ir e vir). Guedes e Bolsonaro morreram na praia.
Campos Neto aponta desafios
Único integrante do alto escalão do governo Bolsonaro com “status” de ministro e que pela Lei de Independência da instituição, aprovada em fevereiro do ano passado, tem mandato até 31 de dezembro de 2024, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, disse hoje, em conferência no “Santander Day” – evento no qual a presidente do banco espanhol, Ana Botin, “manifestou confiança no Brasil” – que “garantir credibilidade nos quadros fiscais é crucial”, e alertou que “precisamos ser cautelosos com a inflação”.
Campos Neto alertou que em 2023, “as pressões de inflação serão mais persistentes e que o caminho para a redução da inflação não é linear”, por isso defendeu que “os quadros fiscais devem ter limites”. E insistiu que as “reformas estruturais são necessárias para aumentar a produtividade” da economia. Ele defendeu ainda a manutenção da cooperação internacional entre países e os bancos centrais e o aperfeiçoamento dos mecanismos da globalização.
Com a responsabilidade de quem usará a condução da política monetária para frear a inflação, já sem as reduções artificiais e temporárias de preços ocorridas recentemente com cortes de impostos em energia elétrica, comunicações e combustíveis”, o presidente do Banco Central advertiu que “as políticas de demanda precisam reconhecer que a oferta é menos adaptável”. Vale dizer, entre os planos de governo e a realidade há limites que pedem paciência para a realização das metas.
Segundo Campos Neto, que é um estudioso dos impactos da mudança climática e da transição da a economia verde (de menor uso de gás carbônico) os impactos da pandemia e da Guerra da Rússia contra a Ucrânia, tornaram as mudanças climáticas, que já estavam em curso, mais aceleradas e mais desafiantes para as medidas econômicas e fiscal visando a transição climática. Tudo isso em meio à distribuição desigual de benefícios da globalização, que ficou aparente, além do descompasso no quadro de vantagens comparativas entre os países, depois do fim da “idade do ouro das cadeias produtivas”.
Brasil lidera juros no mundo
No evento, Campos Neto apresentou um quadro de países emergentes com títulos regularmente negociados no mercado (Argentina, Turquia e Venezuela foram excluídas), no qual o Brasil ostenta a maior taxa de juros desde os primeiros movimentos, em fevereiro de 2021, para o relaxamento das medidas de estímulo monetário e fiscal desde a pandemia (em fevereiro de 2021). Mas Campos Neto se justifica dizendo ter se antecipado aos fatos (ou à eleição).
Nesta 4ª feira, 2 de novembro, o Federal Reserve Bank, o banco central dos Estados Unidos fez nova alta das taxas de juros de curto prazo em 0,75 ponto percentual, que agora flutuam na faixa de 3,75% a 4% ao ano. Na semana passada, o Banco Central Europeu aumentou o juro básico em 0,75%. Só a Selic ficou estável em 13,75% desde agosto de 2022.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)