Após conflitos internos, equipes de comunicação e jurídica conseguem afinar ação coordenada para rebater fake news bolsonaristas.
COM AS CACHORRAS PARIS E RESISTÊNCIA puxadas pelas coleiras, a socióloga Rosângela da Silva, a Janja, atravessou o batalhão de jornalistas amontoados no sobrado em estilo alpino que o marido, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, usa como escritório político em São Paulo. Na antessala, o encontrou ao lado de um grupo de frades franciscanos, sob a mira atenta dos cinegrafistas de TV.
Pouco depois, um segurança trouxe Scooby no colo, um vira-lata que buscou abrigo na casa logo no início da disputa eleitoral, sendo prontamente adotado pela equipe de campanha. “Cuidado com as cachorras. Ela vira uma onça”, advertiu Lula, antes de o frei Davi Raimundo dos Santos benzer os animais.
A bênção encontrava respaldo no calendário religioso. Era 3 de outubro, quando católicos comemoram o dia de São Francisco de Assis, protetor dos animais, mas também o dia seguinte ao primeiro turno da eleição presidencial — após as urnas indicarem a prorrogação do confronto entre Lula e Bolsonaro, até o dia 30 deste mês.
Enquanto o petista acompanhava a cerimônia com o trio canino, seu adversário anunciava os apoios de Rodrigo Garcia (São Paulo), Romeu Zema (Minas Gerais) e Cláudio Castro (Rio de Janeiro), governadores dos três maiores colégios eleitorais do país — sendo os dois últimos, recém-reeleitos.
Ainda que inusitada, a agenda do petista era estratégica: veio logo após a onda de fake news que o ligava ao satanismo. O encontro era, portanto, uma vacina.
O ataque coordenado, de acordo com integrantes da campanha, exemplifica como a propagação de notícias falsas pautou boa parte do segundo turno. “Toda vez que vem fake news e repercute, a gente é obrigado a responder. É claro que isso gasta energia da campanha”, disse o prefeito de Araraquara, Edinho Silva, um dos coordenadores da comunicação de Lula.
Um estudo feito pelos pesquisadores Tatiana Dourado, Rodrigo Carreiro e Maria Paula Almada, doutores em Comunicação pela Universidade Federal da Bahia, mostra que houve um pico de fake news associando Lula ao PCC, o Primeiro Comando da Capital, às vésperas do primeiro turno. Em 1º de outubro, as buscas no Google ligando o ex-presidente aos nomes de Marcola e Marcos Willians Camacho, chefe da facção, subiram de 25 para 100, pontuação máxima na escala de interesse da plataforma.Para o pessoal da comunicação, a remoção de conteúdo é ineficaz: o prazo para atuação é longo demais para a internet.
Pesquisas associando Lula ao satanismo também cresceram no período. Para responder às mentiras, a campanha decidiu deixar de lado a estratégia de pautar o debate eleitoral em temas como saúde, emprego e educação e mergulhar de vez no pântano das discussões sobre temas morais.
O grosso do trabalho fica com a equipe de comunicação, comandada por Sidônio Palmeira. Em torno de uma mesa, trabalham cerca de 12 pessoas, entre monitoramento, criação de conteúdo e impulsionamento. Por meio de ferramentas de busca nas redes abertas, os responsáveis pelo monitoramento detectam as mentiras contra Lula e selecionam as com maior potencial de dano. Elas são compartilhadas, então, nos grupos de WhatsApp Radar Lula, Radar Bolsonaro e Radar Curadoria, que usam a mesma imagem — uma bandeira do Brasil com um pequeno radar vermelho.
As fake news mais aderentes também podem ser detectadas por meio de pesquisas qualitativas nas quais entrevistados dizem, por exemplo, que não votam em Lula porque ele vai fechar as igrejas evangélicas — essa foi justamente uma das mentiras que mais causaram estragos à imagem do ex-presidente.
Na etapa seguinte, o grupo de criação discute ideias para combater as mentiras. O antídoto pode ser um meme, um vídeo curto ou um card, confeccionado imediatamente em celulares, usando as ferramentas de cada plataforma, para manter a estética das redes. Esses conteúdos podem receber ou não o selo oficial da campanha e, uma vez aprovados, são passados à equipe de impulsionamento, que direciona cada um a um público específico. Quando essas proteções falham, a campanha pode ser obrigada a usar o precioso tempo no horário eleitoral de TV para rebater as mentiras.
Lula recebe oração em encontro com representantes evangélicos em São Paulo. Foto:Marlene Bergamo/Folhapress
A utopia das remoções
Em outra frente, um batalhão de advogados elabora petições ao Tribunal Superior Eleitoral, o TSE, pedindo a remoção de conteúdos ou direitos de resposta. Ao longo do primeiro turno, o departamento jurídico – coordenado pelos advogados Cristiano Zanin, que defendeu Lula na Lava Jato, e Eugênio Aragão – conseguiu centenas de decisões favoráveis à remoção de conteúdos.
Ainda assim, para o pessoal da comunicação, tais medidas são ineficazes: o prazo para atuação é longo demais para o ambiente virtual. Até que um conteúdo seja removido, já foi visto e compartilhado por centenas de milhares de eleitores. Além disso, a remoção serve ao discurso bolsonarista de que o combate às mentiras é censura.As divergências para conter a crise do suposto apoio do PCC a Lula quase criaram uma nova crise interna na campanha.
O estudo dos pesquisadores da UFBA comprova a tese. Em 1º de outubro, a Jovem Pan repercutiu uma notícia d’O Antagonista sobre o suposto apoio do líder do PCC ao petista, com a manchete “Lula lidera no Datacadeia”. Apenas 21 minutos depois, o vídeo já era o primeiro em recomendações anônimas no YouTube. O TSE determinou sua remoção, o que só aconteceu 14 horas depois da publicação, quando já tinha 1,4 milhões de visualizações.
As divergências para conter essa crise específica quase criaram uma nova crise interna no comitê de campanha. A equipe de comunicação cobrava direitos de resposta e o jurídico, por sua vez, pedia ferramentas mais eficazes e monitoramento rigoroso, sobretudo nas redes fechadas, como WhatsApp e Telegram. O deputado Paulo Teixeira foi nomeado coordenador jurídico da campanha na tentativa de pacificar os ânimos. Segundo ele, não houve falha dos advogados. “Estamos lutando contra uma organização criminosa que tem muito dinheiro”, avaliou.
Até o dia 14, o TSE havia concedido apenas cinco dos 32 pedidos de resposta do PT. Três dias depois, um grupo de quase 50 pessoas, composto por dirigentes dos 10 partidos da coligação de Lula e advogados do grupo Prerrogativas, se reuniu com o presidente da corte, Alexandre de Moraes, e cobrou medidas mais eficazes no combate às fake news. Em poucos dias, o TSE concedeu 108 direitos de resposta a Lula nas inserções de TV de Bolsonaro e aprovou uma resolução que endurece a veiculação de notícias falsas.
Pela nova disposição, o tribunal pode determinar, sem manifestação do Ministério Público ou das partes envolvidas, a remoção de conteúdos já considerados falsos. Ela reduziu também o prazo de remoção de 24 horas para duas.Leia Nossa Cobertura CompletaEleições 2022
A pesquisa da UFBA mostra ainda que nem sempre as determinações do TSE são cumpridas pelas plataformas. Um exemplo é a entrevista da senadora Mara Gabrilli, do PSDB de São Paulo, à Jovem Pan, no dia do debate da TV Globo. Na ocasião, ela relacionou Lula ao assassinato do ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel, ocorrido em 2002. O TSE determinou a remoção do conteúdo no dia 7, mas até hoje é possível encontrá-lo em algumas plataformas.
O caso Celso Daniel é, ao lado das vinculações de Lula ao satanismo e ao PCC, uma das fake news com maior aderência. A mais danosa, no entanto, resgata uma mentira usada em 1989, na primeira campanha de Lula ao Planalto: a de que, se eleito, fecharia igrejas evangélicas. “Os conteúdos falsos usados em 2022 vêm desde muito antes. E é isso que dá força a eles. Aquilo já está no imaginário do público”, explicou a pesquisadora Tatiana Dourado.
A mentira fez com que a campanha do PT passasse quase todo o segundo turno tentando se explicar, o que culminou na divulgação de uma Carta aos Evangélicos no dia 17, feita a contragosto do candidato.
Do ponto de vista político eleitoral, o endurecimento das medidas pelo TSE ajudou a tirar a campanha de Lula das cordas. “Vamos ter direito de nos defender sem gastar nosso tempo de TV”, disse Edinho Silva. Para Dourado, contudo, a ideia de simplesmente exterminar as mentiras das redes não passa de utopia – e o cenário é pior do que nos pleitos anteriores. “Na eleição passada, não tínhamos redes como TikTok e Kwai. Nas próximas, terão outras”, alertou.
RICARDO GALHARDO ” THE INTERCEPT” ( EUA / BRASIL)