“OS PARTIDOS DE DIREITA PRODUZEM E ENDOSSAM SOCIEDADES PROFUNDAMENTE DESIGUAIS”, AVALIA DEPUTADO ITALIANO NICOLA FRATOIANNI

Nicola Fratoianni é graduado em Filosofia pela Universidade de Pisa e, desde muito jovem se engajou com questões sociais

Desde o anúncio do resultado da eleição antecipada do último 25 de setembro na Itália, seu povo acompanha com um misto de curiosidade e desalento/inconformismo (de uma parte) as notícias sobre a montagem do governo liderado por Giorgia Meloni, deputada do partido pós-fascista Fratelli d’Italia (Irmãos da Itália) que obteve a melhor votação no pleito nacional. No Parlamento, com o início da nova legislatura que expressa uma nova composição de poder, a movimentação tem sido intensa tanto na composição das bases de apoio e divisão de cargos no novo governo ostensivamente de direita, quanto na organização dos partidos de oposição.

Foi nesse contexto que estabelecemos um estimulante diálogo com o secretário e deputado do partido Sinistra Italiana (SI) Nicola Fratoianni, sobre o momento político de seu país, significados da ascensão da extrema-direita na Itália e em outros países ocidentais, sobre os desafios postos para a esquerda e sobre o momento político no Brasil.

Nicola Fratoianni é graduado em Filosofia pela Universidade de Pisa e, desde muito jovem se engajou com questões sociais mobilizando suas energias para a ação política. Já em 1992 se filiou ao Partito della Rifondazione Comunista (PRC) e, desde então, veio se firmando como uma importante liderança na esquerda italiana. Sua chegada ao Parlamento italiano como deputado eleito se deu em 2013.

Entre suas principais bandeiras estão a defesa do salário mínimo e redução da jornada de trabalho, garantia de renda de cidadania, saúde e educação públicas de qualidade, maior taxação sobre ricos e melhor distribuição da riqueza, sensibilização e investimentos estruturais para a proteção da saúde mental, aumento de salários para professores, políticas de combate ao trabalho precário, combate à violência de gênero e à homo transfobia,  justiça ambiental articulada com a justiça social inclusive implementando medidas concretas para a descarbonização da economia.

Atento ao que ocorre na política regional europeia e em outros países, nas vésperas do primeiro turno da eleição presidencial no Brasil (2022), o deputado Fratoianni postou em suas redes sociais mensagem que começava assim:

“Quando, na virada do século, os movimentos globalistas eclodiram em todo o planeta Porto Allegre, no Brasil, era um pouco como nossa capital mundial.

Os fóruns sociais que se difundiram exigiam uma globalização diferente da neoliberal e uma verdadeira democracia participativa.

Em 2003, o líder do PT, o partido dos trabalhadores brasileiros Luiz Inácio Lula da Silva tornou-se presidente e foi, para todos nós, um sinal de que algo poderia mudar. E isso mudou. No Brasil e em toda a América Latina”.

E prosseguiu assim:

“A vitória de Bolsonaro, amigo e cúmplice dos nacionalistas e soberanistas de todo o planeta, fez aquele país retroceder décadas. Um país mais pobre e desigual que hoje quer um resgate. […] Hoje o Brasil tem a oportunidade de emergir das trevas em que a direita o relegou”.

Concluindo com o seguinte chamamento:

“Esperamos que Lula retorne como presidente do Brasil para continuar o caminho interrompido.

Apelamos à comunidade italiana no Brasil: opte pelo retorno ao futuro!”

Abaixo transcrevemos em tradução livre, a entrevista realizada com o deputado italiano Nicola Fratoianni.

AC – Em 2018, após a chegada de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos, Matteo Salvini, no centro do governo italiano, e Jair Bolsonaro disputando (e em seguida conquistando) a Presidência do Brasil, os cientistas políticos americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt publicaram o livro “Como as democracias morrem”, cujo tema central do livro se encontra expresso no seguinte resumo:

“Do fim da Guerra Fria até hoje, a morte de uma democracia quase nunca foi causada por generais e soldados, mas pelos próprios governos eleitos. Líderes eleitos subverteram instituições democráticas na Venezuela, Geórgia, Filipinas, Nicarágua, Polônia, Rússia, Sri Lanka, Turquia, Ucrânia e Hungria. Hoje o colapso de uma democracia começa nas urnas.” […] “Toda vez que uma democracia é transformada em um regime autoritário por um líder eleito. Um processo implementado de dentro das instituições e por meios legais”.

Você compartilha o ponto de vista expresso neste diagnóstico?

Você acha que o governo que está sendo formado na Itália após as eleições de 25 de setembro apresenta esse tipo de risco?

NF – A questão da democracia e sua qualidade, do meu ponto de vista, está intimamente ligada a uma “questão social” mais geral. O aumento da pobreza, o crescimento das desigualdades econômicas e sociais, a redução do espaço de direitos básicos, alimentaram nos últimos 30 anos a desconfiança nos partidos e na política. Cada vez mais, especialmente nos países ocidentais, a política é entendida como um exercício notarial de decisões tomadas em lugares diversos, que quase sempre têm consequências negativas na vida da maioria das pessoas, ou com efeitos positivos tão marginais que soam como insignificantes. A capacidade da direita no mundo tem sido a de construir uma falsa narrativa, segundo a qual eles são a barreira ao desastre econômico e social, enquanto na verdade eles produziram e endossam a construção de sociedades profundamente desiguais.

Uma parte da esquerda, por outro lado, confundiu a política com as políticas, com práticas pontuais e não teve coragem de apresentar uma proposta mais ampla e claras com as respectivas escolhas a serem feitas imediatamente, para restaurar o futuro e a dignidade de milhões de pessoas. 

E é certo que vejo o mesmo risco [do que ocorre na Hungria] na Itália: de fato, a direita propôs a abolição da renda básica na campanha eleitoral, enquanto a pobreza continua a crescer, apontando a renda como causa da desigualdade, mesmo tendo obtido votos nos segmentos mais populares da sociedade italiana.  É apenas aparentemente uma contradição. Na realidade, é a guerra perene entre os últimos e os penúltimos, enquanto nas camadas superiores, os grandes e ricos empresários dormem seu sono tranquilo e comemoram.

AC – Voltando um pouco no tempo, o sistema político na Itália já passava por uma crise de representação, com os partidos políticos tradicionais como alvo da crescente insatisfação popular e radicalização do discurso da extrema direita com bandeiras antissistema, anti-europeísta, anti-imigração e, subliminarmente, antidemocracia, o que resultou no fortalecimento de resultados eleitorais de políticos com ímpeto nacionalista e soberanista.

A própria trajetória do Movimento Cinco Estrelas (M5S), fundado em 2009 como um “partido não político”, em meio à evolução da crise financeira internacional iniciada em 2008, a eleição em 2013 do prefeito de Roma, a coalizão governista em 2016, prenunciava a situação vivida hoje. 

Como você avalia o desempenho das forças políticas da esquerda neste contexto da política nacional italiana?

NF – Sim, é preciso reconhecer, um grave erro foi cometido, que eu mesmo tentei apontar desde o início. Diante do perigo de uma direita unida, agressiva e capaz de uma narrativa tão simples quanto tóxica, uma aliança clara e estrutural teria sido necessária entre os Verdes e a Esquerda, o Partido Democrático e o M5S. Esta aliança foi rompida após a queda do governo Draghi. Um erro que toda a área progressista pagou caro, abrindo caminho para a vitória de Giorgia Meloni. 

Minha avaliação do desempenho das forças da esquerda, incluindo a nossa, só pode partir deste fato, que contém um projeto para o futuro. Já na noite da votação, a Aliança Verde e Esquerda propuseram-se com uma palavra clara: reconstruir.  É o nosso objetivo e deve ser o objetivo daqueles que acreditam que para a Itália e a Europa há um futuro urgente baseado em duas questões importantes: a questão social e a questão ambiental. Reconstruir as pontes entre as forças da área progressista, para reconstruir a Itália, território por território.

AC – É correto identificar que a disputa política hoje na Itália é entre políticos populistas e políticos tecnocráticos? Você considera o populismo uma técnica de discurso político, que pode ser usada tanto pela direita quanto pela esquerda? Ou é uma prática que degrada a política?

NF – Sempre me senti convencido de que o cerne do conflito na política se põe em termos de direita e esquerda. A teorização de que direita e esquerda estavam ultrapassadas produziu fracassos reais na cultura política dos países e das forças políticas e confundiu o discurso público, às vezes a ponto de tornar os partidos, líderes e discursos indistinguíveis. 

O problema, portanto, não é o populismo ou o estilo de discurso, mas a clareza dos objetivos e intenções que são perseguidos. A esquerda tem o dever de recuperar seu espaço narrativo e, sobretudo, a dinâmica do conflito social, que na Itália desapareceu um pouco do debate. Como se pode pensar em recuperar o consenso, por exemplo, se não se fala a língua dos mais jovens, que são os que mais pagam pela crise social e pela crise ambiental? E a linguagem dos jovens de hoje é a do conflito.

AC – Na América Latina há indícios de que o pêndulo político está mais para a esquerda, com as vitórias de Gabriel Boric no Chile, Gustavo Petro na Colômbia e uma possível vitória de Lula no Brasil.

No entanto, a chegada desses políticos de esquerda na Presidência de seus países ocorreu após negociações e concessões com elites políticas e econômicas tradicionais. Você acha que esta é a única maneira para poder lutar pela justiça social nas democracias representativas liberais?

NF – Eu não acredito que haja uma única maneira. E eu nem acho que as experiências vitoriosas sul-americanas nasceram depois de uma espécie de apaziguamento entre as forças em luta. Ou melhor, não acho que tenham sido determinantes nesse sentido. Porque há dinâmicas mais amplas na decisão do voto, que afetam até mesmo os aspectos psicológicos das classes sociais e das massas. E sem um forte impulso popular Boric, Petro e espero que também Lula, eles não poderiam ter alcançado a vitória. 

No entanto, o que eu acho mais importante é o que, efetivamente, pode ser feito depois de se chegar ao poder, dentro de uma democracia liberal.

AC – Além da representação política nos parlamentos, a democracia pode ser fortalecida por formas mais ativas de participação? A democracia participativa tem o potencial de corrigir as falhas e vícios da democracia liberal representativa?

NF – Cresci politicamente no “Movimento No Global” (antiglobalização), na época do “pensar global e agir local”, e para minha geração as experiências administrativas e políticas de Porto Alegre e de outros estados brasileiros e sul-americanos têm sido um verdadeiro ponto de referência. 

Acredito que a questão da participação é agora mais fundamental do que nunca e que pode ser uma das chaves para responder à profunda crise das democracias liberais e à percepção da inutilidade da política. 

Deixe-me dar um exemplo concreto. Em nosso programa temos uma forte proposta de mudança climática: a construção de conselhos territoriais, fora dos conselhos municipais e regionais, para orientar e harmonizar as escolhas das políticas climáticas. Vamos tentar alcançá-los hoje, da oposição, talvez em algumas realidades locais. E quando governarmos será uma das primeiras leis que queremos aprovar.

AC – Após a fragmentação da esquerda na disputa eleitoral italiana, existe alguma possibilidade de alianças dessas forças no Parlamento para conter o ímpeto da direita que chegou ao poder?

NF – Reconstruir! Já disse isso antes. Não há   outra maneira. E para isso não há apenas o Parlamento. A construção de alianças também é feita com pessoas em carne e osso, é feita nas praças, nos portões das fábricas em crise, ou call centers que pagam aos trabalhadores 2 euros por hora. Ou na porta de escolas e universidades, com jovens estudantes que não têm grandes perspectivas para o futuro. 

Alianças são construídas sobre temas, caso contrário são jogos palacianos que alienam as pessoas e contribuem para tornar a política mais incompreensível.

ARNALDO CARDOSO ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

Arnaldo Cardoso, cientista político pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pesquisador, escritor e professor universitário.

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