
A 2ª versão da novela “Pantanal”, que chegou ao fim 6ª feira pela Rede Globo, retrata bem o clima do Brasil às vésperas do 2º turno. Ela entrou no ar em 28 de março, às vésperas das definições de candidatos para a escolha dos partidos pelos quais concorreriam às eleições (que terão desfecho dia 30, no 2º turno). Por dupla coincidência, as duas versões surgiram em momentos cruciais da história do Brasil. A 1ª versão da novela escrita por Benedito Ruy Barbosa, um dos pioneiros da TV brasileira, e dirigida por Walter Avancini, foi exibida em 1990, na extinta TV Manchete, de 27 de março a 10 de dezembro de 1990. Estávamos no começo do governo Collor. Ele derrotou Lula em fins de 1989 acusando o adversário de tramar o confisco das aplicações financeiras e de fomentar invasões de propriedades rurais pelo MST se fosse eleito. Fernando Collor tomou posse em 15 de março de 1990 e, no dia seguinte, após feriado bancário de três dias decretado pelo presidente José Sarney a pedido de Collor, fez ele próprio o confisco das aplicações financeiras, incluindo a caderneta de poupança acima de 50 mil cruzados (que viraram cruzeiros).
O ritmo mais lento, a força da natureza, que era um forte personagem da história, a nudez de Juma Marruá e a temática diferente fizeram a TV Manchete superar a audiência das já esquemáticas novelas globais. Não esqueço de uma inconfidência do Dr. Nascimento Brito, em uma das reuniões do Editorial do JORNAL DO BRASIL. Era um encontro no qual estavam juntos o próprio Dr. Brito, o dono da Manchete, Adolpho Bloch, e o fundador da Rede Globo, Roberto Marinho. Na falta de assunto, Bloch teria provocado Roberto Marinho com a seguinte observação: “E o Pantanal, hein?”, ria M. F. do Nascimento Brito, sarcasticamente, imitando a contrariedade de Marinho. O tempo se encarregou de mudar o próprio ritmo das novelas da Globo. A nova versão veio bem mais atualizada, com temas introduzidos e explicitados por obra e graça do neto de Benedito, Bruno Luperi, e o recurso a novas tecnologias, como o uso de drones para tomadas de cenas da natureza vistas do alto.
Ao contrário do que diz um artigo da “Folha de S. Paulo” esta semana, Luperi não abriu caminho para ressuscitar novelas rurais e escapistas. Muito pelo contrário. Pôs na trama, 32 anos depois, boa parte das contradições atuais do Brasil. Elas já vieram à tona na campanha eleitoral de 1989, quando surgiu no campo a organização da União Democrática Ruralista, a UDR, então presidida pelo médico e fazendeiro goiano Ronaldo Caiado (recém-eleito governador de Goiás e que declarou apoio a Bolsonaro no 2º turno). Caiado tomou gosto pela política ao se lançar candidato na 1ª eleição direta para presidente da República, após 25 anos de interrupção democrática pela ditadura militar. Concorreu, entre outros, contra Leonel Brizola (PDT), Paulo Maluf (PP), Lula (PT), Ulysses Guimarães (MDB), Mário Covas (PSDB) e Fernando Collor, ex-governador de Alagoas, notabilizado pela pauta da caça aos marajás do serviço público, pelo nanico PRN. Collor venceu no 1º turno, se posicionando contra o aborto (tema que ainda mexe com o espírito conservador de boa parte da sociedade brasileira). Lula ganhou por pouco de Brizola e Covas chegou em 4º. Prevendo que Lula não seria capaz de vencer o conservadorismo, Brizola sugeriu que Lula e ele renunciassem em nome de um candidato com mais diálogo ao centro, como Mário Covas. A manobra não deu certo, mas Brizola fechou com Lula e levou junto o voto dos seus eleitores. Mas parte dos que votaram em Covas ficou com Collor. [Nesta eleição a migração nem ocorreu, pois o 2º turno foi antecipado pelo radicalismo].
Mas vale ainda revisitar o passado para entendermos um pouco o que mudou entre o Brasil de 1989 e os dias atuais, em que mais de 85% dos brasileiros vivem nas grandes cidades onde cresceu a dupla influência dos pastores evangélicos e das milícias. Após a redemocratização, que teve início em 1979, o país lamentou a derrubada no Congresso (em 1984) da Emenda das Diretas Já (do deputado Dante de Oliveira, do MDB-MT). Em seguida veio o trauma que foi a festejada eleição de Tancredo Neves (MDB) em vez de Maluf, em 1985. Mas Tancredo foi internado à véspera da posse em 15 de março de 1985. O empossado foi o vice José Sarney, ex-presidente do PDS, que rompera com o general Figueiredo, que apoiou Paulo Maluf e fundou a dissidência do PFL, com Antônio Carlos Magalhães e outros. A frustração com a posse interina de Sarney se completou com a morte de Tancredo em abril de 1985.
Enquanto isso, nas cidades, a onda conservadora defendida entre os católicos pela estridente TFP (Tradição Família e Propriedade), organização inspirada na ultradireitista espanhola “Opus Dei”, braço auxiliar da igreja católica local, saudosa dos tempos da Inquisição, apesar das divergências em termos da linha religiosa, ganhava um aliado paralelo: as igrejas evangélicas, entre as quais, ao lado da tradicional Assembleia de Deus (a mais forte agremiação até os dias de hoje, mesmo com sucessivas dissidências), surgia a Igreja Universal do Reino de Deus (cujo lucrativo sistema de franquia ganhou vários “splits”, termo do mercado de ações que significa desdobramento de ações ou “filhotes”. A TFP foi fundada no Brasil em 1960, por Plinio Corrêa de Oliveira. Nos anos 60, organizava marchas “Com Deus, pela “família e pela liberdade”. A UDR era o similar da TFP no campo, onde o agronegócio invadia o cerrado do Centro-Oeste. [aqui, mais um parêntese: em 1988, o Brasil produziu 65,9 milhões de toneladas de grãos em 48,4 milhões de hectares, e a liderança da produção estava no Paraná; agora, o IBGE prevê a colheita de 261,8 milhões de t. em 73,1 milhões de ha. Com uso de máquinas modernas, alta tecnologia e novas técnicas que preservam o meio ambiente, como o plantio direto de milho ou algodaão após a colheita da soja, a produção quase quadruplicou, sem precisar dobrar a área cultivada. Essa é a face moderna e eficiente do agronegócio].
Na novela Pantanal 2, esse empresário com visão ambiental era representado pela figura de José Leôncio que, de “rei do gado”, passou a ter várias fazendas pelo Brasil afora, com uso de alta tecnologia para o selecionamento do gado (para corte ou produção de leite) e o uso integrado da produção agrícola. No Mato Grosso, que responde por 30% da produção de grãos e é o maior produtor de carne do país, o farelo de soja, após a extração do óleo, e o farelo de milho, já usado na produção de etanol, viram ração para engorda de aves, suínos e gado bovino em regime de confinamento. É a integração da lavoura com a pecuária. Com o tempo, e a visão ecológica do filho Jove, criado no Rio de Janeiro, José Leôncio (Marcos Palmeira) fica sensível aos temas da preservação ambiental, que já cativara seu pai, o “velho do Rio”, um ser encantado (o assoreamento dos rios por onde navegava a chalana, em função dos incêndios que afetaram o bioma pantaneiro, assim como a movimentação do solo por máquinas), e também se depara com a chegada de um gay no reduto de peões machões.
De outra parte, o fazendeiro Tenório (magnificamente interpretado por Murilo Benício) encarna a face ruim de alguns donos de terras que devastam os biomas e invadem terras indígeas (tema que não entrou no enredo). Foi através da grilagem de terras públicas que Tenório fez crescer seu patrimônio, valendo-se do assassinato dos que iam contestar a venda de “posses” por pistoleiros contratados. Despreza a proteção do meio ambiente até ser atacado por uma onça. Paladino da moral e dos bons costumes, mantinha uma família paralela, subjugando as mulheres com alta dose de machismo. Mas acaba vítima da própria violência em que viveu. A novela não esclarece o fim misterioso do médico que teria estuprado e engravidado a enfermeira Zuleika, com quem Tenório teve três filhos (o 1º era fruto dessa agressão; o mais novo, morre pelas mãos de um pistoleiro contratado para aniquilar a família de José Leôncio e o peão Alcides, que fica com sua 1ª mulher, a quem trata de “Maria Bruaca”, num total desprezo pelo papel da mulher. O peão que ele estupra (na 1ª versão era castrado) o mata com uma zagaia, lança para matar onça, que estava aposentada na fazenda de José Leôncio, agora adepto da ecologia. O filho do meio quase segue os passos do pai, mas se redime a tempo. Sobrou ainda espaço para abordar os vícios das campanhas eleitorais. O filho mais velho de José Leôncio faz rápida incursão e se desencanta pelo toma lá dá cá da política partidária. Em vez da política, “José Leôncio de Nada” decide abrir uma escola para alfabetizar e emancipar as crianças da região.
Direita ou conservadorismo?
Por tudo isso, a vida real é muito mais complexa e cheia de nuances do que a ficção. A simplificação dos mapas eleitorais que colorem de vermelho as áreas do país onde Lula teve mais votos, ou de azul, naquelas em que Bolsonaro prevaleceu no 1º turno, dá uma visão errada e desproporcional de para onde pende o país. Dizer que todo eleitor de Lula é de esquerda (como aparece nos mapas em vermelho), ou que todo eleitor de Bolsonaro é de direita (como mostram as áreas em azul), é cometer um enorme equívoco simplista. Primeiro que nem um nem outro ganhou com mais de 85% dos votos em cada região. Há sempre uma minoria (expressiva ou mínima mesmo) que pensa diferente. Outro ponto a observar é que imensas áreas territoriais têm baixíssima ocupação populacional na área da Amazônia Legal, por exemplo, que compreende os sete estados da região Norte (Acre, Amazonas, Roraima, Amapá, Pará, Rondônia e Tocantins) mais o Norte de Mato Grosso e o Noroeste do Maranhão. O que vale mais é a distribuição da população nas grandes cidades. No Rio de Janeiro, há ainda os vazios demográficos das florestas ainda preservadas, como os maciços da floresta da Tijuca e da Pedra Branca (na zona Oeste).
Ignorar o conservadorismo (explorado farisaicamente por alguns pastores que apoiam a campanha de Jair Bolsonaro) é um enorme erro da campanha de Lula. Nem Ciro Gomes, nem Simone Tebet desconheceram isso. De outra parte, se o objetivo, sobretudo numa campanha que já estava com cara de 2º turno desde agosto, era conquistar o eleitor mais ao centro, conservador em certas pautas, mas sensível à questão social, ao fortalecimento da educação como forma de romper o cerco da pobreza e da exclusão social, que atinge sobretudo a maioria da população cuja face é de uma mulher (53% dos eleitorado) negra ou parda (que somam 56% do eleitorado), empunhar como bandeira agregadora os temas das minorias não é uma boa estratégia, pois pode despertar o conservadorismo. Pautas específicas têm de ser discutidas depois com o Congresso (cabe apenas ao governo colocar na ordem do dia de suas lideranças). Quem é LGBTQIA +, por exemplo, sabe perfeitamente que só terá apoio de Lula e forte restrição do outro lado. A defesa do meio ambiente, das reservas florestais dos povos indígenas, que estão aqui há séculos, também já tem lado óbvio, em função das medidas adotadas pelo governo Bolsonaro para reduzir a fiscalização dos órgãos ambientais e da Polícia Federal às agressões dos madeireiros às florestas da União ou reservas indígenas, cujas áreas e rios estão sendo devastadas pela abertura da mineração próxima a aldeias indígenas.
Há ainda um anacronismo na visão econômica do PT e de outros candidatos mais de centro esquerda que falam, com uma certa ponta de nostalgia, de saudade do tempo em que a indústria chegou a representar mais de 30% do PIB brasileiro. Isso é a fase da industrialização de Getúlio Vargas, com a CSN, e de JK, com a vinda de matrizes de 2ª mão da indústria automobilística (sobretudo europeia, que estava sendo modernizada pelo Plano Marshall). Tenho 72 anos e milito há 50 anos no jornalismo econômico. O mundo (até a China que se industrializou fortemente da década de 80 em diante) vive a época da expansão das atividades de serviços (que compreende o comércio, o turismo e o lazer, e as atividades de empreendedores individuais autônomos ou donos de pequenos negócios (manicures, cabelereiros, marceneiros, pintores, etc). São eles que carregam 70% do PIB no Brasil (no mundo não é diferente). Com a robotização, a indústria perdeu a importância como maior gerador de empregos (ainda que concentre alguns dos mais qualificados, como os da área financeira). O que puxa o PIB e os empregos é o setor de serviços.
Lula segue fazendo discursos para o “chão de fábrica”. Não se deu conta de que as fábricas de São Bernardo, onde se criou na militância sindical e no ABC, encolheram em número de produção e de pessoal? Que a região também entrou na onda dos serviços? Os pastores e Bolsonaro, há muito, investem sobre esse público. Melhor seria discutir o futuro da indústria do Brasil na transição energética que virá pelo mundo. Já Bolsonaro desdenha dos pobres e dos nordestinos, a quem culpa pelo voto majoritário em Lula, como decorrência da maior taxa de analfabetismo da região que garante a vantagem de Lula. A pobreza e o analfabetismo vigentes no Norte e no Nordeste decorrem do modelo de ocupação fundiária do Brasil Colônia e do Império. No Sul, os moradores que insinuam a vontade de separação dos demais estados brasileiros esquecem que o modelo de colonização deu acesso direto (ou indireto, via colonato) à terra, que era o meio de produção e de acumulação de riqueza da época, quando hoje metade da população brasileira era escrava. O atraso do Nordeste deve-se à atuação das elites locais que nunca valorizaram a educação. Mas a mão de obra do Nordeste ajudou a construir meio Brasil. O exemplo mais acabado é Brasília, cidade implantada com o suor dos “candangos”. Muitos operários da indústria seguiram os passos de Lula, que saiu pequeno de Garanhuns para ganhar a vida em São Paulo, onde virou torneiro mecânico. A complexidade da economia não permite hoje alguém trocar o cabo da enxada pelo trabalho em escritório, ou no setor de serviços, sem passar pelo aprendizado básico nos bancos escolares e o ensino técnico complementar, incluindo noções de computador e informática.
Por sinal, o IBGE divulga a Pesquisa Mensal de Serviços de agosto dia 14. Indústria e comércio tiveram queda de 0,6% em agosto, perda de fôlego, mesmo com o bilionário pacote de benesses eleitorais, que desmente estar a economia “bombando”, segundo Paulo Guedes. Vejo mais à meia-bomba, rumo à desaceleração. Por isso, o governo está apelando para “comprar” o eleitor com falsas promessas (novo benefício de R$ 1 mil em dezembro para taxistas e caminhoneiros, 13º para as mulheres do Auxílio Brasil) e por aí vai. Tudo isso nas barbas da Justiça Eleitoral. Observo, porém, que os setores empresariais e pequenos empreendedores beneficiados com as benesses eleitorais de Bolsonaro, que reduziu impostos à larga e baixou os preços dos combustíveis (a alta recente pela recusa da Opep de ampliar a produção, quando começa o outono-inverno no Hemisfério Norte e aumenta a demanda de combustíveis para aquecimento de residências, pode brecar as canetadas do presidente), estão economizando muito dinheiro sem transferir os benefícios para nós, consumidores. Era para as tarifas do taxi caírem. Mas nada.
Os bancos estão menos otimistas
O Bradesco e o Itaú divulgaram 6ª feira projeções menos otimistas para a economia. O PIB tinha crescido 1,2% no 2º trimestre, com a antecipação do pagamento do 13º salário dos aposentados para maio e junho (nada extra virá agora para o Natal) e os saques do FGTS. Agora, o Bradesco prevê que as “quedas da produção industrial e do comércio em agosto reforçam expectativa de crescimento de 0,6% do PIB no 3º trimestre”. Depois de retração de 0,6% na indústria em agosto, frente a julho, de igual rombo nas vendas do comércio varejista ampliado (que incluem veículos e materiais de construção) – os dois segmentos representam 1/3 do PIB -, o Bradesco assinala que haverá “alguma acomodação da atividade no 3º trimestre, em linha com o crescimento de 2,7% do PIB no ano. Os dados sugerem um arrefecimento dos investimentos”, após forte alta em julho. Para o Bradesco, o aumento da taxa de juros e o cenário global mais incerto colocam desafios importantes no médio prazo. Se serve de consolo, o 2º maior banco privado considera que “a nova deflação no atacado e expectativa de safra recorde de grãos apontam na direção de menor inflação de alimentos à frente”.
O Itaú também pontua o recuo da produção industrial e das vendas no varejo em agosto, “reforçando tendência de desaceleração no 3º trimestre de 2022”. O Itaú assinala que após crescer 0,9% no 2º trimestre, a produção industrial caminha para a estabilidade no 3º trimestre. No comércio, identifica que as vendas nos segmentos sensíveis ao crédito permaneceram praticamente estáveis na margem, enquanto os setores sensíveis à renda apresentaram leve crescimento. Ou seja, ainda haveria espaço para as benesses impedirem maior freada, mas o Itaú está projetando resultado negativo nas vendas do 3º trimestre (mas aí só saberemos depois das eleições). Para o Itaú, a tendência de “arrefecimento deve se manter em 2023, diante do menor crescimento global (combinado com a redução dos preços das commodities na margem), efeitos defasados da política monetária, fim do processo de reabertura, dissipação das medidas de estímulo e aumento da taxa de desemprego”.
O Itaú refez as projeções para a economia em 2022 e 2023. O PIB deve crescer 2,5% este ano, mas crescerá só 0,5% em 2023. O banco reduziu de 6% para 5,5% a previsão da inflação deste ano (medida pelo IPCA, em função das reduções de preços administrados e da desaceleração dos preços dos alimentos. Para a inflação de setembro, que será divulgada 3ª feira pelo IBGE, projeta deflação de 0,37%, a 3ª seguida, que deverá ser explorada na campanha de Bolsonaro. Para 2023, reduziu a previsão de 5,3% para 5%, “incorporando o impacto inercial baixista sobre preços administrados e maior desinflação de bens”. O lado ruim, que puxa o freio de mão da economia, é a previsão de que o Comitê de Política Monetária do Banco Central manterá a taxa Selic (piso do mercado financeiro) no patamar atual de 13,75% ao ano. Para manter a inflação baixa (e voltar às metas de inflação), o Itaú espera que a Selic só comece a cair no 2º semestre de 2023, quando fecharia em 11% ao ano.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)