CHARGE DE AROEIRA
É hora de votar, passadas as baixarias nos debates televisivos, que, em vez de servir aos eleitores para identificar as melhores propostas para o futuro do Brasil, quase se transformaram num espetáculo de MMA, como o minuto a minuto das redes sociais, onde não importa discutir ideias, mas finalizar o adversário visto como inimigo. A diferença é que o último embate, na Rede Globo, com a participação completa dos candidatos cujas legendas cumpriram o preceito da Justiça Eleitoral de ter ao mínimo seis representantes no Congresso (Lula faltou ao certame do SBT), trouxe ao centro do ringue a figura exótica do “padre” Kelmon. Este passou a representar o PTB, do ex-mensaleiro Roberto Jefferson, que estava preso quando do debate inicial na Band, em agosto, e teve a candidatura cassada pelo Tribunal Superior Eleitoral. Atuação do “candidato padre Kelmon” lembrava mais um páreo no Jóquei, quando um “stud” inscreve um 2º cavalo como “faixa” para ajudar o cavalo preferido, desgastando os adversários mais fortes ao longo do percurso. Entretanto, o desrespeito às regras mais elementares do debate e o flagrante conluio entre o representante do PTB e o presidente Jair Bolsonaro (PL) lembravam, não um MMA, mas a bagunça farsesca dos velhos espetáculos de “telecatch”, no qual surgiam figuras sinistras como “Verdugo” enfrentando o “bonzinho” Ted Boy Marino. A indumentária de Kelmon remetia a esse passado remoto.
Por coincidência, os espetáculos farsecos de “telecatch” fizeram grande sucesso na ditadura militar, da qual tanto Jair Bolsonaro quanto o “padre” Kelmon parecem sentir nostálgica saudade. Naquele tempo, que durou uma longa noite de 21 anos (quase duas gerações, de 1964 a 1985, quando veio a redemocratização), não havia partidos políticos. O Congresso chegou a ser fechado, assim como o Supremo Tribunal Federal, para que se fizessem cassações dos que não pensavam como os militares e a direita (o mundo vivia sobre a dicotomia do bloco Ocidental e seus aliados, supostamente democrático e capitalista, e o bloco comunista, antidemocrático e de economia centralizada pelo Estado). No Congresso, reaberto sob tutela, as legendas foram reduzidas a duas: a majoritária Arena, o partido oficial da Ditadura, e o MDB (a oposição sobrevivente da onda de cassações e consentida para inglês ver que havia um arremedo de democracia no Brasil. O “circo” era uma forma de entreter a patuleia e desviar a atenção das questões mais graves do país, que a imprensa, por vezes, conseguia noticiar, driblando a censura.
Nascido em 31 de janeiro de 1950 (neste dia os presidentes tomavam posse, e no dia seguinte era a vez dos deputados e senadores, com eleição para a presidência das duas casas), com um tio militar (chegou a general) que entrou para a UDN, sendo o 3º deputado federal mais votado em 1958, pelo Distrito Federal, e o 5º mais votado do Estado da Guanabara, em 1962 (ele morreu pouco depois, quando caiu o avião da FAB em que seguia para Brasília como líder da UDN), acompanhava desde jovem os passos da política discutidos pelo meu pai, advogado e procurador, e os irmãos mais velhos. Graças às escolas públicas em que estudei no ginásio (Colégio de Aplicação da UFRJ, na Lagoa, e o Colégio Estadual André Maurois, no Leblon), meu horizonte intelectual e de compreensão do mundo não ficou cerceado pela censura, que fechou o cerco sobre a cultura e os debates políticos. Foram suspensas as eleições para presidente, governador e prefeitos. Tive de me contentar a votar em deputado e senador em 1968, 1972 (ano em que entrei para a editoria de Economia do JORNAL DO BRASIL, na Avenida Rio Branco), 1976 e 1980. A reconquista do voto a governador veio em 1982. Para prefeito, em 1986. Para presidente da República, só em fins de 1989, já aos 29 anos.
Por isso valorizo muito, como boa parte da minha geração, o espetáculo democrático. O debate das ideias, cuja circulação é muito mais ampla que nos estreitos debates da TV ou das redes sociais. Como tudo o que as pessoas fazem (de bom ou de ruim), a política, no mais amplo sentido da palavra, está em quase tudo. A educação amplia nossa compreensão e empatia para com o outro (mesmo os que não nos agrada) e com o meio ambiente, do qual somos parte que não pode ficar passiva, apesar da aparente insignificância de um grão de areia no Universo.
A responsabilidade do voto
Votar exige muita responsabilidade. Somos 215 milhões de brasileiros, representados por 156,4 milhões aptos a votar. O grau de comparecimento às urnas e a escolha de um candidato vão determinar o futuro do Brasil e das novas gerações. Mas também é importante escolher bem os governadores (e os deputados estaduais) e quem vai nos representar na Câmara e no Senado, em Brasília.
A previsão é de que o acidente que levou o país para uma guinada de direita em 2018, com eleição de candidatos ultraconservadores, com apoio de pastores evangélicos e de milicianos, formando bancadas temáticas retrógradas e violentas, não será repetido. Ulysses Guimarães sempre dizia que o pior Congresso seria “o próximo”. Desta vez, espera-se mais equilíbrio entre as bancadas de direita (que tende a emagrecer) e um pequeno avanço da ala esquerda. A novidade é que a turma mais equilibrada do centro não será, necessariamente, a do “Centrão”, que está sempre em cima do muro, de olho nas oportunidades de se aliar ao dono temporário das chaves do Tesouro, e disposto a pular imediatamente nos braços do lado vencedor da eleição.
O tamanho do Brasil, como o 6º mais populoso e 5º país em extensão territorial, faz crescer sua importância estratégica no Planeta Terra, por ainda concentrar as maiores florestas do mundo. Por isso, o mundo democrático e as nações mais relevantes do planeta estão acompanhando com atenção, pelo relato indispensável e fundamental da imprensa, o resultado das eleições de 2022. A opinião pública mundial e as nações mais democráticas, a começar pelos Estados Unidos, não aceitarão que se repitam aqui episódios como a infame invasão do Capitólio engendrada pelo ex-presidente Donald Trump, em 6 de janeiro de 2020, alegando que fora derrotado por 7 milhões de votos de diferença no voto popular e por 306 a 232 do Republicano no Colégio Eleitoral, quando o Congresso, presidido pelo vice Mike Pence, ratificaria a vitória da chapa do Democrata Joe Biden e Kamala Harris.
De volta ao trilho democrático
Muita gente está frustrada, como eu, por não termos discutido questões sérias da economia e da vida social, além do nosso futuro na transição energética pela qual as maiores economias do planeta se comprometeram na COP-26 até 2050, com metas a serem cumpridas já em 2030 na redução das emissões de gás carbônico na atmosfera. Como o presidente Jair Bolsonaro não se cansou de facilitar agressões ao meio ambiente em seu governo, baixando a guarda da fiscalização e das multas, em favor de grileiros de terras da União e de reservas indígenas garantidas pelo Estado brasileiro aos povos originais, alvos dos garimpos ilegais incentivados, ele fugiu destes temas no debate.
As mudanças climáticas pedem novos padrões tecnológicos que vão mexer com o futuro das atividades econômicas (da agropecuária, mineração, cadeia industrial e estrutura urbana), alterando a relação de trabalho entre empresas e empregados de forma mais acentuada do que a prática do “home office” já ensaiou na pandemia.
Mas há uma urgência maior. Não basta fazer novas ferrovias. É preciso recolocar o trem do país nos trilhos democráticos.
Estou votando pensando nas novas gerações. Nos meus muitos sobrinhos e sobrinhos-netos e nos quatro netos (por parte da Márcia, minha mulher). E neste sentido, não vejo caminho para continuar como estamos, sem empatia para com os mais pobres do que virando a página dos governantes que fracassaram redondamente na pandemia.
Para mim, o pior de todos os fracassos é a volta da fome a um país cujo presidente se gaba ser o “celeiro do mundo”; de alimentar “um bilhão de bocas no Planeta”. Somos um gigante de pés de barro, que não consegue garantir comida à sua gente mais pobre. Num excesso de liberalismo, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAP) parece só operar em inglês. No afã de exportar tudo, teve até de importar soja em 2020 para fazer óleo. Agora, Bolsonaro festeja a baixa da gasolina. Quando devia estar mais preocupado em baratear o litro do leite ou o quilo do arroz e do feijão. Como o MAPA não cuidou do abastecimento, o Brasil voltou a ser incluído no “mapa da fome” da FAO, o organismo para Agricultura e Abastecimento da Organização das Nações Unidas, do qual tínhamos sido emancipados em 2012.
Para evitar surpresas adiante
Ao identificar que a situação econômica era o maior obstáculo à reeleição do presidente Jair Bolsonaro, cujo comportamento negacionista na gestão da pandemia da Covid-19 marcou profundamente a rejeição de parte do eleitorado (quem não teve mais de um parente ou amigo levado pela doença, pela incúria federal?), o núcleo da campanha do presidente reagrupou o Ministério em torno do ministro da Economia, Paulo Guedes, que chamou, em maio, o economista Adolfo Sachsida, que acompanhava a política econômica, em especial a inflação, para assumir o Ministério das Minas e Energia. A dupla, que passou também a controlar a Petrobras, traçou uma estratégia para derrubar a inflação, mirando a gasolina e esperando virar o ânimo dos eleitores até as eleições.
Para tal, bolou um plano de derrubar a canetadas alguns itens que pesam muito na inflação e que estão sob relativo controle do governo (energia elétrica, combustíveis e comunicações). Baixaram impostos de competência dos estados (ICMS, repartido aos municípios, e que bancam a saúde, a educação e a segurança pública). Com o conluio das bancadas do Centrão, o governo rompeu o teto de gastos e criou (em fins de junho) uma “situação de emergência”, temporária e eleitoreira (só vale até 31 de dezembro), para, ao lado da derrubada de alguns preços, distribuir R$ 41,2 bilhões direto no bolso dos eleitores, mediante o aumento do Auxílio Brasil (substituto do Bolsa Família) de R$ 400 para R$ 600, a duplicação do subsídio do vale gás e a distribuição de mesadas de R$ 1 mil mensais a caminhoneiros e taxistas.
A maior parte dos beneficiários com a redução dos preços dos combustíveis poupou dinheiro, que foi posto no bolso, junto com as benesses mensais, sem mudar o voto (ou baixar os custos proporcionais aos consumidores e usuários). Assim, a carestia da comida e de outros itens continuou a fustigar os mais pobres, justamente preocupados com o caráter transitório das medidas.
Os mais ricos economizaram na gasolina, no etanol e energia e nos orçamentos, onde a alimentação pesa menos. E aproveitaram a economia gerada pela baixa artificial da inflação para lucrar mais nas aplicações de renda fixa no mercado financeiro. O pacote “Robin Hood” às avessas deu mais ganhos aos ricos sem aliviar o suficiente aos mais pobres. Isto explica por que Bolsonaro não avançou entre os que ganham até dois salários mínimos (R$ 2.424), que são a maioria dos eleitores.
Ainda está na memória dos eleitores o estelionato eleitoral de Dilma Roussef para sua reeleição em 2014 (houve redução das tarifas de energia elétrica em 2013, congelamento dos preços dos combustíveis pela Petrobras, assim como os juros e o câmbio foram contidos pelo Banco Central em 2014), para fazer a economia crescer mais do que o seu próprio potencial, aquecendo o mercado de trabalho e baixando o desemprego.
Tão logo foi reeleita, começou a temporada de reajustes. Os combustíveis, os juros e o câmbio começaram a disparar já em novembro de 2014. A energia elétrica subiu 45% no ano seguinte, os combustíveis, 26%, o câmbio, quase 40%, e os juros dispararam. A economia capotou em 2015. O PIB caiu 3,6% e 1,5 milhão de pessoas perderam o emprego. A recessão se prolongou por 2016. O que levou ao “impeachment”.
Algo semelhante foi feito agora, numa demonstração cabal de que não havia “estado de emergência” econômica ou social. Era unicamente uma “emergência eleitoral”. Muitos temem que após a maquiagem que melhorou os números da economia até o 1º turno (já em maio e junho foi antecipado o pagamento do 13º de aposentados e pensionistas, que nada receberão no Natal, e liberado saques de até R$ 1 mil no FGTS), turbinando o PIB ainda com as benesses eleitorais temporárias, venha um capotamento no PIB e no emprego, que fechou agosto com os melhores números desde 2015.
Até o Banco Central já pôs as barbas de molho. O Ministério da Economia previu que o PIB cresça 2,7% este ano e 2,5% em 2023. No Relatório Trimestral da Inflação, distribuído na quinta-feira, 29 de setembro, o BC previu tombo de 60% frente ao PIB da equipe de Paulo Guedes, com avanço de 1% em 2023 (na média do mercado financeiro, as apostas variam de 0,50% a 0,58%). Entre outros motivos, porque o BC deve manter puxado o freio de mão dos juros básicos (a taxa Selic está em 13,75% ao ano) até junho do ano que vem. O Banco Central conquistou autonomia de atuação em relação ao Executivo desde fevereiro de 2021. Pela Lei Complementar 190, o presidente Roberto Campos Neto tem mandato até 31 de dezembro de 2024 (salvo se o Congresso, em dupla votação da Câmara e do Senado, revogar a Lei 190). Assim caberá a ele enfrentar o repique da inflação quando a redução temporária do ICMS acabar em 1º de janeiro (a menos que o Congresso aprove sua prorrogação), em quadro de deterioração fiscal e maior desemprego.
A visão dos grandes bancos
Trago para você, caro leitor, a visão dos três maiores bancos privados do país sobre o bom resultado do mercado de trabalho em agosto (quando foram criadas 278 mil vagas líquidas, descontadas as demissões, acumulando um total de 1,853 milhão de vagas desde janeiro). Apesar do bom momento, há alertas sobre a piora do cenário em 2023.
O Bradesco, 2º maior banco privado, menos crítico ao governo Bolsonaro, considera que “a taxa de desemprego [8,9% em agosto] deve seguir em queda, mas devemos ver certa acomodação no ritmo de crescimento da população ocupada, em linha com um crescimento menos acentuado do PIB a partir do 3º trimestre do ano”.
O espanhol Santander, depois de analisar o bom momento econômico (que o levou a revisar a previsão do crescimento do PIB deste ano para 2,6%, e reduzir a queda de 2023 de 0,6% para 0,2%), alerta: “Não obstante, há alguns sinais de desaceleração do emprego, impulsionados pelo setor informal. Acreditamos que essa desaceleração continuará adiante, com a taxa de desemprego atingindo 9,1% com ajuste sazonal no final do ano”.
Já o Itaú, maior banco privado brasileiro, diz que “a criação de 1,853 milhão de vagas de janeiro a agosto marca uma forte recuperação após a forte queda causada pela pandemia da Covid”. Ele diz que “a expectativa é de que a recuperação continue nos próximos meses, mas que o ritmo de melhora comece a perder ímpeto na medida em que a atividade econômica arrefeça como reflexo do aperto monetário”.
Estamos avisados: 2023 será mais ou menos difícil, como alertou Winston Churchill aos britânicos: “haverá sangue, suor e lágrimas”. Felizmente, as lágrimas derramadas nas mortes de parentes e amigos pela Covid-19 estão afastadas, em boa parte pelo avanço da vacinação. Quem sabe venham lágrimas de alegria por um tempo de solidariedade e empatia…
GILBERTO MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)