O RETORNO DO FASCISMO

CHARGE DE SIMANCA

Assim como nos anos de 1930, um liberalismo falido, desigualdade social grotesca e padrões de vida decadentes estão empoderando movimentos fascistas

As contas de energia e alimentos estão subindo. Sob ataque violento da inflação e da prolongada estagnação dos salários, os salários estão em queda livre. Bilhões de dólares estão sendo desviados pelas nações ocidentais para financiar uma guerra por procuração na Ucrânia, numa época de crise econômica e assombrosa desigualdade de renda. A classe liberal, aterrorizada pela emergência do neofascismo e de demagogos como Donald Trump, fez a sua escolha com políticos desacreditados e insultados do ‘establishment’ que servilmente trabalham para a indústria da guerra, os oligarcas e as corporações.

A falência da classe liberal significa que aqueles que desacreditam da loucura da guerra permanente e da expansão da OTAN, dos acordos mercenários de comércio, da exploração dos trabalhadores através da globalização, da austeridade e do neoliberalismo vêm cada vez mais da extrema direita. Esta fúria contra a extrema direita, travestida nos EUA como o fascismo cristão, já obteve enormes ganhos na Hungria, na Polônia, na Suécia, na Itália, na Bulgária e na França e pode tomar o poder na República Tcheca, onde a inflação e os crescentes custos de energia têm dobrado o número de tchecos abaixo da linha de pobreza.

Até a próxima primavera, após um devastador inverno de apagões intermitentes e de meses nos quais as famílias lutam para pagar por alimentos e aquecimento, o que resta da nossa anêmica democracia ocidental poderia ser extinta na sua maior parte.

O extremismo é o custo político da pronunciada desigualdade social e da estagnação política. Os demagogos, que prometem a renovação moral e econômica, a vingança contra inimigos-fantasma e um retorno à glória perdida, emergem do atoleiro. O ódio e violência, que já estão no ponto de ebulição, são legitimados. Uma classe dominante insultada e a suposta civilidade e as normas democráticas que esta esposa é ridicularizada.

Como assinala o filósofo Gabriel Rockhill, não é como se o fascismo tivesse jamais ido embora. “Os EUA não derrotaram o fascismo na Segunda Guerra Mundial”, escreve ele, “eles o internacionalizaram discretamente”. Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA, o Reino Unido e outros governos ocidentais colaboraram com centenas de antigos nazistas e com criminosos de guerra japoneses – os quais eles integraram aos serviços de inteligência ocidentais, bem como os regimes fascistas da Espanha e de Portugal. Eles apoiaram forças de direita e anticomunistas na Grécia durante a sua guerra civil entre 1946 e 1949, e apoiaram um golpe militar de direita em 1967. A OTAN também tinha uma política secreta de operar com grupos terroristas fascistas. A Operação Gladio – como detalhou a BBC em uma agora-esquecida série investigativa – criou “exércitos secretos”, redes de soldados ilegais que permaneciam ocultos atrás das linhas inimigas caso a União Soviética fizesse um movimento militar na Europa. Na verdade, os “exércitos secretos” executavam assassinatos, bombardeios, massacres e ataques terroristas de bandeira falsa [false flag] contra esquerdistas, sindicalistas e outros em toda a Europa.

Assistam aqui a minha entrevista com Stephen Kinzer sobre as atividades pós-guerra da CIA – incluindo o seu recrutamento de criminosos de guerra nazistas e japoneses, e a sua criação de bases ocultas [black sites] nas quais os antigos nazistas eram contratados para interrogar, torturar e assassinar esquerdistas suspeitos, líderes sindicais e comunistas – como está detalhado no seu livro ‘Poisoner in Chief: Sidney Gottlieb and the CIA Search for Mind Control‘.

O fascismo, que sempre esteve conosco, está novamente em ascensão. É previsto que a política da extrema direita Giorgia Meloni se tornará a primeira primeira-ministra mulher da Itália após as eleições de domingo, 25/09/22. Se prevê que Meloni, em coalizão com outros dois partidos de extrema direita, vença as eleições com mais de 60% dos assentos no parlamento italiano, apesar que o movimento 5-Estrelas, que tende à esquerda, possa colocar uma cunha nestas expectativas.

Meloni começou a sua carreira política como uma ativista de 15 anos de idade na ala da juventude do Movimento Social Italiano, fundado por apoiadores de Benito Mussolini após a Segunda Guerra Mundial. Ela chama os burocratas da União Europeia de “elites globais niilistas operados pelas finanças internacionais”. Ela vende a teoria da conspiração da “Grande Substituição”, segundo a qual se permite que os imigrantes não-brancos entrem nas nações ocidentais como parte de um conluio para minar, ou “substituir”, o poder político e a cultura das pessoas brancas. Ela conclamou a marinha italiana a fazer voltar à origem os barcos com imigrantes – o que o ministro do Interior da extrema direita Matteo Salvini fez em 2018. O seu partido ‘Fratelli d’Italia’ (Irmãos da Itália) é um aliado íntimo do presidente da Hungria, Viktor Orban. Uma resolução recente do Parlamento Europeu declarou que a Hungria não pode mais ser definida como uma democracia.

Meloni e Orban não estão sozinhos. Os Democratas Suecos, que conseguiram 20% dos votos na eleições gerais da Suécia na semana passada, tornando-se assim o segundo maior partido político do país. Foi formado em 1988 a partir de um grupo neonazista chamado B.S.S, ou “Mantenha a Suécia Sueca” – que tem profundas raízes racistas. Dos 30 fundadores do partido, 18 tinham afiliações nazistas – incluindo vários que serviram nas Waffen SS nazistas, segundo Tony Gustafsson, um historiador e antigo membro do partido Democratas Suecos. Na França, Marine Le Pen conquistou 41% do voto nas últimas eleições de abril contra Emmanuel Macron. Na Espanha, o partido de extrema direita Vox é o terceiro maior partido do parlamento espanhol. O partido de extrema direita alemão AfD, ou Alternativa para a Alemanha, conquistou 12% dos votos nas eleições federais de 2017, tornando-se o terceiro maior partido no parlamento, mas perdeu alguns pontos percentuais nas eleições de 2021. Os EUA têm a sua própria versão do fascismo, corporificada por um Partido Republicano que coalesce à moda de culto ao redor de Donal Trump, que assume o pensamento mágico, a misoginia, a homofobia e a supremacia branca da direita cristã e subverte ativamente o processo eleitoral.

O colapso econômico foi indispensável à ascensão nazista ao poder. Nas eleições alemãs de 1928, o Partido Nazista obteve menos de 3% dos votos. Depois, então, veio a queda financeira global de 1929. No início de 1932, 40% da força de trabalho alemã, seis milhões de pessoas, estavam desempregadas. Naquele mesmo ano, os nazistas se tornaram o maior partido político no parlamento alemão. O governo de Weimar, surdo e refém dos grandes industriais, priorizou o pagamento de empréstimos bancários e a política de austeridade, ao invés de alimentar e empregar uma população desesperada. Tolamente, o governo impôs severas restrições sobre quem tinha direito ao seguro-desemprego. Milhões de alemães passaram fome. O desespero e a fúria se espalharam pela população. Manifestações de massa, lideradas por uma coleção de bufões nazistas fantasiados em uniformes marrons – os quais se sentiriam em casa em Mar-a-Lago (residência de Donald Trump), denunciaram os judeus, os comunistas, os intelectuais, os artistas e a classe dominante como inimigos internos. O ódio era a principal moeda deles. Vendeu bem.

No entanto, a evisceração dos procedimentos e instituições democráticas precedeu a ascensão dos nazistas ao poder em 1933. O Reichstag, o parlamento alemão, era tão disfuncional quanto o atual Congresso dos EUA. O líder socialista Friedrich Ebert, presidente do país entre 1919 e 1925 e, depois dele, Heinrich Brüning, chanceler de 1930 a 1932, apoiavam-se no Artigo 48 da Constituição de Weimar para governar basicamente por decreto, para evitar o parlamento rebelde. O Artigo 48, que garantia ao presidente o direito de emitir decretos numa emergência, era “o alçapão através do qual a Alemanha podia cair numa ditadura”, segundo escreve o historiador Benjamin Carter Hett.

O Artigo 48 era o equivalente aos decretos executivos usados liberalmente por Barack Obama, Donald Trump e Joe Biden, para sobrepor-se aos nossos próprios impasses legislativos nos EUA. Assim como na Alemanha dos anos de 1930, os nossos tribunais – especialmente a Suprema Corte dos EUA – foram tomadas por extremistas. A imprensa bifurcou-se em tribos antagônicas, nas quais as mentiras e a verdade eram indistinguíveis e os lados opostos eram demonizados. Há pouco diálogo ou acordos, que são os pilares-gêmeos do sistema democrático.

Os dois partidos dominantes [nos EUA] servem obedientemente os ditames da indústria da guerra, das corporações globais e da oligarquia – a quem concederam enormes reduções de impostos. Eles estabeleceram o mais penetrante e intrusivo sistema de vigilância governamental da história humana. Eles operam o maior sistema de prisões do mundo. Eles militarizaram a polícia.

Os Democratas são tão culpados quanto os Republicanos. O governo Obama interpretou a Autorização para o Uso de Forças Militares de 2002 como dando ao poder executivo o direito de apagar o procedimento legal e para agir como juiz, júri e executores no assassinato de cidadãos estadunidenses – começando com o clérigo radical Anwar al-Awlaki. Duas semanas depois, um ataque de um drone dos EUA matou Abdulrahman al-Awlaki, o filho de 16 anos de idade de Anwar – que jamais esteve ligado ao terrorismo – juntamente com outros 9 adolescentes num café no Iêmen. Foi o governo Obama que converteu em lei a Seção 1021 do Ato de Autorização da Defesa Nacional, derrubando o Ato Posse Comitatus de 1878 que proíbe o uso de forças militares como força de polícia doméstica. Foi o governo Obama que socorreu Wall Street e abandonou as vítimas de Wall Street. Foi o governo Obama que usou repetidamente o Ato de Espionagem para criminalizar aqueles – como Chelsea Manning e Edward Snowden – que expuseram as mentiras, os crimes e as fraudes do governo. E foi o governo Obama que expandiu massivamente o uso de drones militarizados.

Os nazistas responderam ao incêndio do Reichstag de fevereiro de 1933 – que provavelmente foram eles que encenaram – usando o Artigo 48 para fazer passar o Decreto para a Proteção do povo e do Estado. Os fascistas apagaram instantaneamente o fingimento da democracia de Weimar. Eles legalizaram a prisão sem julgamento para qualquer pessoa considerada como uma ameaça à segurança nacional. Eles aboliram os sindicatos independentes, a liberdade de expressão, a liberdade de associação e a liberdade de imprensa, juntamente com a privacidade das comunicações postais e telefônicas.

O passo que vai da democracia disfuncional para o fascismo completo foi, e será novamente, um pequeno passo. O ódio à classe dominante, corporificada pelo ‘establishment’ dos partidos Republicano e Democrata [nos EUA] – os quais fundiram-se em um único partido governante – é quase universal. O público, lutando contra uma inflação que é a mais alta dos últimos 40 anos e que custou ao domicílio médio estadunidense US$ 717 adicionais por mês só em julho passado, verá cada vez mais como aliado qualquer figura política ou partido político disposto a atacar as elites governantes tradicionais. Quanto mais cru, irracional ou vulgar for o ataque, mais os desprivilegiados se regozijam. Estes sentimentos são verdadeiros aqui e na Europa, onde se prevê que os custos com energia subam em até 80% neste inverno e a taxa de inflação de 10% está comendo as rendas.

A reconfiguração da sociedade sob o neoliberalismo para beneficiar exclusivamente a classe bilionária, o corte e a privatização dos serviços públicos – incluindo escolas, hospitais e serviços de utilidade pública – juntamente com a desindustrialização, o perdulário despejo de fundos e recursos estatais na indústria da guerra, à expensa das despesas de infraestrutura e dos serviços sociais da nação, e a construção do maior sistema de prisões do mundo e a militarização da polícia, tem resultados previsíveis. 

No centro do problema está uma perda de fé nas formas tradicionais de governo e nas soluções democráticas. Como Peter Drucker observou, o fascismo dos anos de 1930 teve sucesso não porque as pessoas acreditaram nas suas teorias da conspiração e nas suas mentiras, mas apesar do fato que elas viam o que estava por trás delas. O fascismo prosperou frente a “uma imprensa hostil, uma rádio hostil, um cinema hostil, uma igreja hostil e um governo hostil que assinalava incansavelmente as mentiras nazistas, a inconsistência nazista, a inatingibilidade das suas promessas e os perigos e a loucura do seu caminho.” Ele adicionou que “ninguém teria sido um nazista se a crença racional nas promessas nazistas tivesse sido um pré-requisito.”

Assim como no passado, estes novos partidos fascistas atendem a anseios emocionais. Eles dão vazão a sentimentos de abandono, inutilidade, desespero e alienação. Eles prometem milagres inatingíveis. Também eles vendem bizarras teorias da conspiração, incluindo QAnon. Porém, mais do que tudo, eles prometem vingança contra uma classe dominante que traiu a nação.

Hett define os nazistas como “um movimento de protesto nacionalista contra a globalização”. O surgimento do novo fascismo tem as suas raízes em explorações similares feitas por corporações a oligarquias globais. Mais do que qualquer outra coisa, as pessoas querem retomar o controle das suas vidas, senão por outra coisa que para punir aqueles que são culpados e bodes expiatórios pela sua miséria.

Nós já vimos este filme antes.

CHRIS HEDGE ” THE CHRIS HEDGES REPORTER” ( EUA) / BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)

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