Ciro e Tebet estão mais preocupados com suas carreiras políticas do que com a preservação da democracia. Mas ainda podem desistir.
NO ÚLTIMO RODA Viva da TV Cultura, Steven Levitsky, autor de “Como as democracias morrem”, obra que trata dos ataques que as democracias do mundo vêm sofrendo por autocratas, falou sobre a importância de derrotar Bolsonaro no primeiro turno. Para ele, votar em um candidato da terceira via e não no democrata com chances reais de levar no primeiro turno — leia-se Lula — é uma escolha que coloca a democracia em risco.
“Bolsonaro tentará deslegitimar os resultados das eleições. Não sabemos como, não sabemos se vai dar certo, mas ele vai tentar. (…) Bolsonaro vai tentar criar uma crise da mesma forma que Trump criou. O melhor caminho é evitar essa crise. É tirar o Bolsonaro da disputa logo no primeiro turno para que ninguém possa contestar uma derrota de lavada”, disse em resposta a uma pergunta do filósofo Joel Pinheiro.
Levitsky disse ainda que, se todos se derem ao luxo de votar no seu candidato favorito da terceira via, a derrota de Bolsonaro no primeiro turno será apertada e isso criará condições mais favoráveis às suas intenções golpistas: “Esse foi o problema nos EUA. A disputa entre Trump e Biden foi acirrada. Isso contribuiu para que Trump alegasse que houve fraude. Portanto, a melhor maneira de se evitar uma crise, é uma vitória expressiva da oposição no primeiro turno. Votar num candidato da terceira via não vai nos levar a nada.”
Não é preciso ser cientista político para saber que Bolsonaro venderá muito mais caro a derrota caso ela não ocorra no dia 2 de outubro. As ameaças do presidente são claras e diretas. Dependendo dos resultados das urnas, ele terá mais ou menos força para investir no golpismo e criar um episódio nos moldes da invasão do Capitólio nos EUA. Lá, cinco pessoas foram assassinadas.
Aqui, antes de se abrir as urnas, já temos pelo menos dois petistas assassinados por bolsonaristas e uma série de ataques a pesquisadores de institutos de pesquisa como o Datafolha. Não dá para subestimar as consequências violentas de uma turba fanatizada e armada agindo a mando do seu líder. Uma vitória retumbante no primeiro turno certamente frustraria ou enfraqueceria as intenções golpistas do grupo.
Enquanto parte da imprensa e do eleitorado reclama da polarização, Lula segue construindo uma frente ampla cada vez mais forte. Ele conseguiu juntar em torno da sua candidatura políticos e juristas de diferentes matizes, como Boulos, Henrique Meirelles, Alckmin, Marina da Silva, Luciana Genro, Cristovam Buarque, Miguel Reale Jr., Aloysio Nunes, José Gregori e por aí vai. A deputada Tábata Amaral, uma conhecida crítica dos governos petistas, tem pedido voto em Lula. Até FHC escreveu carta declarando apoio, ainda que implícito à candidatura do petista.
A presença mais inusitada talvez seja a de Miguel Reale Jr., ex-ministro da Justiça e um dos autores do pedido de impeachment contra Dilma em 2015. “Sem perspectiva de vitória da terceira via, é importante que Lula vença no primeiro turno para impedir uma ação desesperada de Bolsonaro. Decidir por Lula é consequência de saber que assim se evitará ataques à democracia, à dignidade da pessoa humana e ao meio ambiente, que, com certeza, sucederão com maior intensidade em novo mandato de Bolsonaro”, declarou o jurista.
Todos esses nomes já tiveram alguma desavença com Lula no passado, mas hoje se juntam a ele para um objetivo maior: a defesa da democracia. São oito ex-candidatos a presidente de seis partidos diferentes pedindo voto para Lula no primeiro turno. Não é pouca coisa.
A falácia da polarização entre esquerda e direita não resiste mais aos fatos. A única polarização que existe hoje é entre uma frente ampla, composta por democratas de centro, direita e esquerda, e uma extrema direita autoritária, formada por golpistas e fascistoides. Aqueles que têm se dedicado a apontar as contradições existentes entre os integrantes da frente ampla, principalmente os entusiastas da terceira via, não entenderam o momento que vive o país e subestimam o poder devastador do bolsonarismo para a democracia.
As diferenças entre eles continuam e continuarão existindo, mas todos ali entendem que uma frente ampla não se trata de um alinhamento de ideias e propostas, mas uma maneira de resgatar os princípios básicos do pacto civilizatório rejeitados por Bolsonaro.
Meirelles, ex-ministro de Lula e ex-candidato à Presidência, entrou com tudo na candidatura do petista.
Foto: Yuri Murakami/TheNews2/Folhapress
A pressão pelo voto útil no primeiro turno tem crescido não só entre políticos. Há uma onda crescente a favor do voto em Lula que inclui artistas, intelectuais e políticos de todas as cores ideológicas. Caetano Veloso e Tico Santa Cruz, dois ciristas de carteirinha, entenderam o risco que corremos se houver segundo turno e estão recomendando voto em Lula. Tem circulado um vídeo em que artistas famosos, muitos dos quais também se opuseram a Lula no passado, pedem voto no candidato petista ainda no primeiro turno.
Essa onda pró-voto útil tem incomodado os candidatos que se reivindicam como terceira via, como Ciro Gomes, Simone Tebet e Soraya Thronicke. O eleitorado deles tem sido o principal alvo da campanha pelo voto útil. Segundo a última pesquisa Genial/Quaest, 26% dos eleitores aceitam mudar de voto para eleger Lula no primeiro turno. Para Ciro Gomes, pedir voto útil é uma prática autoritária dos “fascistas de esquerda”– um conceito antes existente apenas nas mentes doentias de olavistas e carluxos.
Para Tebet, Lula pregar voto útil é um “desrespeito dele com a democracia e com o povo brasileiro”. Para Thronicke, o “voto útil é mais uma forma de enganar a população”. Os três querem transformar uma prática absolutamente democrática (pedir voto) em algo antidemocrático. Esse pensamento delirante é próprio de quem não compreendeu o tamanho do buraco em que nos metemos. O fato é que estão mais preocupados com suas candidaturas, em fortalecer seus nomes para futuras eleições, do que com a preservação da democracia.Pedir voto útil no democrata com mais chances de impedir a permanência da barbárie bolsonarista no poder não é uma ação autoritária. É um voto racional, consciente, estratégico.
Ciro Gomes é o candidato que mais tem sofrido pressão para desistir da candidatura em favor de Lula. A pesquisa BTG aponta que mais da metade dos eleitores ciristas podem mudar de voto no primeiro turno; na Quaest, o índice é 33%. Enquanto Lula compõe uma frente ampla com setores de centro e direita, Ciro Gomes tem adotado um tom de ódio na campanha, se afastando do eleitorado de centro e fazendo acenos aos bolsonaristas. Hoje ele ataca ferozmente Lula e o PT e se vende como candidato antissistema. Já vimos esse filme.
A pressão para que Ciro desista da candidatura é enorme até mesmo dentro do partido. Pedetistas e brizolistas históricos como Cidinha Campos romperam com a campanha de Ciro. “Os candidatos são Bolsonaro e Lula. Eu prezo muito meu partido, estou no PDT há mais de 40 anos. Não posso deixar que aconteça alguma coisa que coloque de volta este homem (Bolsonaro) no lugar. Portanto, eu vou declarar agora meu voto para presidente: eu vou votar no Lula”, afirmou Cidinha em seu programa de rádio.
Além da pressão interna no PDT e do campo democrático, Ciro passou também a ser pressionado pela esquerda sul-americana. Nesta semana, um documento assinado por importantes artistas, políticos e intelectuais de esquerda do continente pede para que Ciro abandone o pleito. “É incompreensível para nós, na atual situação brasileira, sua insistência em apresentar sua candidatura presidencial para o primeiro turno das eleições presidenciais no Brasil, neste 2 de outubro, que sem o menor exagero pode ser considerado um ponto de virada histórico (…) A dura realidade é que, mantendo sua candidatura, caro camarada Ciro, a única coisa que você fará é dispersar forças, enfraquecer a força do bloco antifascista, com todas as suas contradições, facilitar a vitória de Bolsonaro e, eventualmente, abrir caminho para um novo golpe”, diz um trecho da carta.
Sejamos francos. Só há duas candidaturas com chances de ganhar: a de Lula, um democrata que comandou o país por oito anos, e a de Bolsonaro, um golpista defensor da ditadura. Falta uma semana para a eleição e está claro que os demais candidatos não têm a mínima chance de vitória. Essa não é uma eleição normal. É como um plebiscito em que escolheremos salvar a democracia ou permitir que seja consolidada uma autocraciaa com tendências golpistas e fascistas.
O primeiro turno já produziu cadáveres. Bolsonaristas assassinaram petistas contaminados pelo discurso de ódio propagado todos os dias pelo atual presidente. Se a disputa for para o segundo turno, teremos mais 30 dias pela frente de tiro, porrada e bomba. A tendência é que essa turma fique ainda mais abusada e agressiva em um possível segundo turno.
O voto útil, portanto, não é um voto despolitizado como se tenta pintar. Pedir voto útil no democrata com mais chances de impedir a permanência da barbárie bolsonarista no poder não é uma ação autoritária. É justamente o contrário. É um voto racional, consciente, estratégico. O voto útil é um voto de sobrevivência como assinalou Conrado Hubner.
JOÃO FILHO ” THE INTERCEPT” ( EUA / BRASIL)