A mídia tornou-se uma ameaça ao sistema democrático, mesmo que, agora, abrace o bom-mocismo da defesa das conquistas democráticas
Daqui a pouco estaremos em um evento em Belo Horizonte discutindo a mídia e a Lava Jato.
Confesso que, desde que me conheço como gente, sempre me assustou a besta das ruas, o sentimento de linchamento que estimula torcidas organizadas, grupos de rua, onde os mais fracos se tornam os mais agressivos e o ritual da malhação do Judas.
Historicamente, a mídia corporativa – e a partidária – sempre se curvaram ao monstro das ruas. Em sua entrevista à revista Piauí, Tutinha, da Jovem Pan, foi verdadeiro:
Não sou político, ofereço apenas o que meu público quer.
Está é a lógica que, com raras exceções – nenhuma no Brasil – tornou a mídia refém do monstro das ruas. Esse movimento passou meio impressentido no período ditatorial, por conta da censura. E se cobriu de legitimidade na primeira explosão popular, o enorme abraço das “diretas-já”.
A partir dali, endossou todos os processos de linchamento que se seguiram, embarcou em todas as ondas que se formaram, comprou a primeira versão de todos os golpes aplicados. E não foi fraqueza ou malícia de um ou outro jornalista, mas uma prática disseminada.
Quem se lembra da “CPI dos Precatórios”, em que a mídia inteira embarcou na versão de Paulo Maluf, atribuindo a responsabilidade geral a um mero intermediário de seus negócios? Ou mesmo na campanha do impeachment de Fernando Collor, no qual a mera reaplicação diária do saldo em conta corrente – prática habitual na época – foi interpretado como uma soma de novos depósitos?
Nem se diga da campanha eleitoral de 2010, na qual José Serra inaugurou a política de esgoto, criando fake news em torno de questões morais.
A campanha do impeachment de Dilma – iniciada em 2013 – superou tudo o que se conhecia de manipulação da notícia. E o endosso à Lava Jato já entrou para a história como o capítulo mais desmoralizante em toda a existência da mídia corporativa brasileira.
Como se faz? Tem-se uma mídia totalmente pró cíclica – isto é, que tende a atualizar movimentos de opinião pública em uma ou outra direção. Na maioria absoluta das vezes, a opinião pública se move com a besta das ruas, investindo contra inimigos reais ou imaginários. E, como no caso da Lava Jato, criam-se três tipos de públicos:
- Os que cavalgam as ondas de maneira oportunista.
- Os que não chegam a entrar na onda, mas evitam combatê-la. É curioso que, no caso da Escola Base, os dois movimentos contra o linchamento foi de veículos que se recusaram a aderir a cobertura, mas não tiveram coragem de combatê-la.
- Os que combatem os desvios, em geral de forma individual e sem massa crítica para impedir os linchamentos. O reconhecimento só ocorre depois do mal concretizado.
A lógica corporativa
Esses movimentos ocorrem devido ao caráter comercial dos grupos de mídia. Eles dependem dos leitores. Na maior parte das vezes são conduzidos, não conduzem. Há um medo, pânico de discutir assuntos polêmicos de maneira mais complexa, com receio de não serem compreendidos pelos leitores. Esse receio se disseminou sobre toda a cobertura, gerando um padrão de reportagem de um ângulo só. Dificilmente você lerá uma reportagem contextualizada. Todo fato tem uma causa só explicando.
Recentemente, um jovem comentarista internacional, depois de tratar Zelensky como o “heroico humorista”, constatou que pesavam contra ele inúmeras acusações, produzidas por entidades internacionais. Os dois primeiros parágrafos foram de elogios a Zelensky e de pedido de desculpas pelas críticas – para só então reportar as denúncias contra ele.
O advento das redes sociais e das práticas de “cancelamento” pioraram o quadro e contaminaram também blogs e sites que deveriam oferecer o contraditório. Agora, tem-se o “cancelamento” instantâneo, com o aparecimento de linchadores virtuais, dispostos a explorar de forma muito mais rápida esses movimentos do monstro das ruas. E a epidemia atinge todo o espectro político.
Por tudo isso, o conceito da imprensa como um dos pilares da democracia tornou-se comprometido.
Especialmente depois que a maioria do Supremo Tribunal Federal – que deveria ser o grande órgão contra-hegemônico – curvou-se ante as duas armas mais poderosas da mídia: a intimidação e a lisonja.
Em país desenvolvidos, há veículos que, em meio à atoarda da mídia sensacionalista, consegue ainda manter sua posição de mediação e de defesa dos princípios democrático.
Por aqui, como órgão máximo da mediação política, as fragilidades do STF escancararam a fraqueza dos princípios democráticos no país.
A árdua luta empreendida por todas as instituições, para impedir que o país caia nas mãos do crime organizado, comprova o risco que o país corre sem um sistema adequado de regulação da mídia.
Decididamente, a mídia tornou-se uma ameaça ao sistema democrático, mesmo que, agora, abrace o bom-mocismo da defesa das conquistas democráticas.
Há que se começar a estudar a sério a regulação, em cima de pontos bem definidos:
- Separar liberdade de opinião de ataques a pessoas e instituições.
- Tratar o mercado de opinião com as mesmas regras de combate à cartelização existente para outros mercados. De um lado, coibindo a concentração de propriedade – que caracteriza o monopólio. De outro, enfrentando a questão do cartel. Isto é, de um grupo de veículos dominantes impondo versões unilaterais de fatos ou conceitos. Há que se abrir espaço para grupos minoritários, grupos regionais, direitos de resposta.
- Usar os mesmos princípios para as redes sociais e as big techs.
- Definir uma jurisprudência para os chamados crimes de opinião, coibindo o lawfare atual, que visa inviabilizar a atuação de grupos menores.
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LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)