“Como resposta à crise da hegemonia norte-americana, neoliberalismo criou uma nova linguagem para legitimar o colonialismo”, escreve Juarez Guimarães
O período do pós-guerra costuma ser identificado historicamente como uma época da descolonização: as lutas de libertação nacional na Ásia, na África, os nacionais-desenvolvimentismos na América do Sul. Era o tempo do pan-africanismo, do pan-arabismo, do movimento terceiro-mundista, o apogeu da Cepal como construção dos caminhos próprios do desenvolvimento na América Latina. Uma consciência histórica dos crimes coloniais emergiu como um paradigma incontornável de civilização.
Como se recriou, então, em pleno século XXI a legitimação de novos colonialismos, abafando e neutralizando aquela consciência do direito à auto-determinação dos povos?
Já no início dos anos cinquenta, os intelectuais formadores do neoliberalismo identificaram neste movimento de auto-determinação dos povos, com o empoderamento dos Estados nacionais e a noção de planejamento para a superação do subdesenvolvimento, um inimigo siamês dos socialismos e do keynesianismo. Tratava-se de entender à luta pela supremacia do Ocidente, agora identificado com a liderança do Estado norte-americano, como parte da luta contra a ameaça totalitária, ampliando e aprofundando a dinâmica da “guerra fria”.
Dialogando criticamente com John Toye (A contrarrevolução na economia do desenvolvimento), Dieter Plehwe em “As origens do discurso neoliberal na economia do desenvolvimento” identifica já no início dos anos cinquenta as primeiras agendas e obras neoliberais sobre o tema do desenvolvimento para os países saídos de experiências de domínio colonial, os anos sessenta e setenta como disputa de paradigmas e os anos oitenta do século passado já com um discurso neoliberal dominante nas agências internacionais de desenvolvimento e no mainstrean econômico.
Peter Bauer, elogiado e condecorado por Thatcher e parceiro de Friedrich Hayek na Sociedade Mont-Pèlerin,, se tornaria um autor referencial neoliberal nesta área com o seu The Economics of Under-developed countries (Cambridge, 1957).
Seis argumentos
A primeira linha de argumentação foi exatamente a de investir em uma revisão histórica do colonialismo, oferecendo uma alternativa à “consciência culpada” da experiência imperialista: ao contrário do discurso crítico à experiência colonial, os povos colonizados teriam se beneficiado do contato civilizatório com os países capitalistas avançados. Os povos mais atrasados do mundo seriam aqueles que não teriam se beneficiado deste contato. Hong Kong e Nova Zelândia seriam exemplos virtuosos deste contato com o progressivismo destas civilizações. A própria escravidão teria origem em práticas já estabelecidas entre os povos africanos.
O ordoliberal Alexander Rustow, em polêmica com o clássico John Hobson de Imperialismo (1902), propôs separar capitalismo de imperialismo, indicando este último à prática de Estados centralizados e de poder político expansionista.
O segundo argumento foi a crítica ao ponto 4 do famoso discurso do presidente Truman de 1949, no qual este defendia a ajuda econômica aos países subdesenvolvidos em prol de sua dinâmica de modernização, em alternativa a caminhos nacionalistas e revolucionários. Os neoliberais argumentariam cerradamente que toda ajuda financeira seria inútil, devido às elites corruptas que dirigiriam os Estados destes países e frente aos impasses estruturais a um desenvolvimento similar aos dos países capitalistas centrais. Rustow mais cinicamente, argumentaria que uma lógica de segurança do Ocidente deveria prevalecer sobre o princípio de auto-determinação e idealismos.
Na prática, o que se procurou neutralizar foi o direito de reparação histórico destes povos submetidos à colonização.
Estabeleceu-se, em terceiro lugar, uma polêmica contra as obras referenciais de Gunnar Myrdal (Economic Theory and Underveloped Regions, 1957) e de Raul Prebisch, fundador da Cepal, autor da teoria da troca desigual, a quem Celso Furtado chamava de mestre. O que se arguiu foi que a base de dados usada por Raul Prebisch era insuficiente para provar as tendências desfavoráveis historicamente aos países subdesenvolvidos na importação de produtos industrializados dos países capitalistas centrais e na exportação dos produtos primários para eles.
A tradição nacional-desenvolvimentista, hegemônica no Brasil nos anos cinquenta até 1964, seria levada nas décadas seguintes à condição de uma teoria econômica heterodoxa sobre o desenvolvimento.
O quarto campo de argumentação neoliberal foi no sentido de atacar o “mito” da industrialização periférica, no sentido de confirmar o destino agrarista destes países. A ausência de capitais internos acumulados devido à baixa propensão a poupar vigente nestes países, a ausência de um mercado de capitais configurado e sistemas bancários inadequados seriam bloqueios estruturais a um processo autônomo de industrialização. Neste sentido, autores neoliberais chegaram a levantar dúvidas sobre a economicidade e o retorno de campanhas amplas de educação pública ou de alfabetização.
Tratava-se aqui, em suma de cristalizar a divisão internacional de trabalho herdada do século XIX, obstaculizando políticas e planejamentos sistêmicos voltados à industrialização, mantendo estes mercados cativos e não competitivos.
Um quinto campo neoliberal foi o de propor o caminho da integração e do comércio internacional como futuro para os países subdesenvolvidos. As suas dinâmicas de modernização passariam a ser estritamente dependentes da aposta unilateral na integração econômica, via o acesso ao comércio internacional.
Não deixa de ser impressionante como todas estas linhas argumentativas foram como que uma base de fundamentos para as grandes opções econômicas neoliberais no Brasil, de FHC até hoje.
Por fim, uma sexta linha de argumentação dirigia-se contra a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e seus esforços de universalizar os direitos trabalhistas e a própria noção de trabalho digno. A crítica à regulação dos salários, feita por Eugenio Gudin, ia no sentido de que essa regulação levaria à destruição da mais importante vantagem comparativa destes países subdesenvolvidos, exatamente o custo menor da mão-de-obra.
Seleção competitiva das civilizações
Críticos do neoliberalismo a partir do chamado Sul Global tem questionado com razão as teorias do neoliberalismo que não colocam no centro a sua dimensão imperial. Nesta série, procurou-se integrar esta crítica ao definir o neoliberalismo com o uma resposta regressiva à crise da hegemonia norte-americana, isto é, um programa imperial de poder baseado na força e na extorsão.
Mas como esta dimensão colonialista se integra à obra de Hayek que, como vimos, parece ser uma espécie de síntese argumentativa desta tradição?
Esta relegitimação do colonialismo ou, para dizer como Aníbal Quijano, da “colonialidade do poder”, se integra à teoria geral hayekiana em sua noção de que a história procede a partir de uma seleção competitiva das civilizações. Assim, o Ocidente capitalista seria vencedor e caberia aos vencidos apenas a culpa pelo seu atraso histórico.
O americanismo, este traço forte da cultura neoliberal, seria assim mais do que a própria expressão da língua, a própria gramática de articulação do neoliberalismo.
JOSUÉ GUIMARÃES ” SITE A TERRA É REDONDA” / ” BLG BRASIL 247″ ( BRASIL)
Professor de Ciência Política na UFMG. Autor, entre outros livros, de Risco e futuro da democracia brasileira (Fundação Perseu Abramo).