Ainda há muita estrada pela frente até que a comunicação se torne um instrumento de inclusão e de equiparação dos direitos. Se é que se chegará algum dia a esse objetivo.
Para entender a balbúrdia em que se meteu a comunicação no mundo globalizado, nosso Xadrez separa seis personagens centrais:
- Os grupos de mídia tradicionais, cujo modelo de negócio entra em crise terminal.
- O Departamento de Estado, como síntese dos interesses geopolíticos americanos.
- Os bilionários ligados ao Partido Democrata, que fazem as primeiras incursões políticas no âmbito das novas formas de comunicação.
- A ultradireita, que elege Donald Trump e espalha o neoconservadorismo pelo planeta.
- Os blogs políticos que surgem, à esquerda e à direita.
- As big techs
Peça 1 – o ínicio do jogo político das redes sociais
As disputas pelo uso e controle das redes sociais começaram na campanha de Barack Obama para presidente. O Partido Republicano recorreu a um movimento de Fake News tendo como epicentro a Fox News, do australiano Rupert Murdoch.
Havia má vontade generalizada da imprensa corporativa em relação a Obama. Sua salvação foram grupos de voluntários que se organizaram nas redes, abrindo caminho para sua vitória.
Esses dois movimentos – o da ultra direita em torno dos fake news e o dos voluntários de Obama – geraram dois tipos de ativismo nas redes, que se espalharam por outros países:.
- O ativismo do chamado liberalismo-progressista, bancado por bilionários umbilicalmente ligados ao Partido Democrata, financiando grupos de mídia-ativistas em diversos países.
- Na sequência, o ativismo dos algoritmos da Cambridge Analytica, que ajudou a eleger Donald Trump e se tornou a peça chave na expansão da ultradireita mundial.
De certo modo, refletem a polarização entre o que passou a ser denominado de neoliberalismo-progressista e neoliberalismo-reacionário, ambos defendendo os princípios econômicos do ultraliberalismo, mas o primeiro procurando edulcorar-se com o politicamente correto.
Peça 2 – os bilionários do Partido Democrata
São curiosos os caminhos de aprendizado da comunicação nas redes sociais. Desde o fator Cambridge Analytica, o foco se concentrou na ultra-direita, na máquina montada pelo Partido Republicado trumpista, através de Steve Bannon.
Mas o jogo dos bilionários é mais antigo. O impeachment foi possível com a mobilização estimulada por ONGs e associações diretamente financiadas pelos bilionários do Partido Democrata.
No início da década de 2010, os governos Lula-Dilma entraram na mira do Partido Democrata – cuja política externa era dominada por Hillary Clinton – devido à autonomia da diplomacia brasileira e à descoberta do pré-sal. Vários episódios ocorreram no período, como a espionagem de Dilma pela NSA, a denúncia de roubos de computadores da Petrobras, antes disso o papelão de Barack Obama pedindo o envolvimento de Lula em um acordo com o Irã, depois, desmentindo.
A década de 1990 havia marcado o início da multiplicação de blogs por todos os países, fazendo o contraponto à mídia tradicional. Ao mesmo tempo, ficava cada vez mais nítido o poder gradativo de mobilização das bolhas de Internet.
O primeiro movimento dos bilionários foi apoiar a construção de uma rede de sites e portais que pudessem não apenas denunciar os fake news da ultradireita, como fazer o contraponto aos sites mais alinhados com a esquerda.
É nessa quadra que surgem os bilionários financiadores dessas iniciativas, entre os quais se destacaram George Soros, Pierre Omidyar (fundador do EBay, que banca o The Intercept), outros, através da Transparência Internacional. Eles financiam e influenciam um conjunto de novos personagens, focando nos jovens, mais suscetíveis à influência das redes sociais, e voltados para projetos de cunho social legítimo, a maioria bem intencionada, mas ignorante em relação aos movimentos da geopolítica americana.
São esses grupos que se tornam os principais estimuladores das campanhas de 2013 e das manifestações do impeachment. A ultradireita só entra em cena na fase final da Lava Jato e na campanha de Jair Bolsonaro.
Peça 3 – a rede de aliados
A estratégia dos chamados neoliberais progressistas é relativamente simples. Há que se combater os fake news da direita mas, também, tirar da esquerda as grandes bandeiras humanistas, criando uma nova geração de “empreendedores sociais”, capazes de mobilizar as sociedades emergentes contra as grandes injustiças, mas afastando da discussão qualquer tema de ordem econômica.
Outra característica do modelo é o repertório de temas politicamente aceitos pela esquerda, embora nunca questionando o modelo econômico e, no meio, temas de interesse direto do Departamento de Estado e dos patrocinadores.
E o caso The Intercept, apoiando a guerra contra a Síria e tratando os White Helmets, ou Capacetes Brancos, como heróis. As imagens abaixo foram tiradas do levantamento da @Gringa Brazilien, um perfil do Twitter que fez um levantamento precioso desse jogo.
O ativismo político do The Intercept ficou nítido quando seu principal jornalista, Glenn Greenwald, pediu demissão depois de vetarem uma reportagem sua, mostrando as ligações da família Biden com o governo da Ucrânia.
Fenômeno semelhante ocorreu com a Pública. Ressalte-se que os temas tratados eram jornalísticos e traziam luz sobre desapropriações e maneiras de esconder a pobreza dos visitantes da Copa do Mundo.
Peça 4 – a agência do Partido Democrata
A atuação dos bilionários tornou-se mais focada quando entrou em cena a Purpose, agência de marketing político que se especializou em organizar, em países emergentes, movimentos em torno de bandeiras humanistas.
Seus proprietários, Jeremy Heimans e David Madden são também fundadores da Avaaz e GetUp. A Avaaz, site para produção de abaixo-assinados, foi bastante utilizado nas campanhas que antecederam o impeachment de Dilma.
A agência se apresenta como especializada em marketing político e tem relações estreitas com o Partido Democrata.
“Usamos a mobilização pública e a narrativa para ajudar as principais organizações, ativistas, empresas e filantropias engajadas nessa luta, e criamos laboratórios de campanha e novas iniciativas que podem mudar políticas e narrativas públicas quando mais importa”.
Em seu site há inúmeras iniciativas legítimas e, junto com elas, receitas para influenciar a política, como o projeto “Esmagar os intermediários”, que supostamente ensinaria as pessoas a montar sua própria base de eleitores.
No site, ela se vangloria de ter sido retuitada por Hillary Clinton, a personalidade do Partido Democrata que mais se vale das redes sociais.
Um levantamento sobre a agência mostra uma atuação política pesada na América Latina.
Peça 5 – as investidas do neoliberalismo-progressista
A partir de 2010, tornam-se mais frequentes as investidas dos bilionários americanos ligados ao Partido Democrata. Surgem movimentos como Meu Rio, Vem prá Rua, Anonymous e outros, bancados por personagens do mercado financeiro.
Foi a Purpose quem criou a ONG Meu Rio, elaborou a estratégia para as movimentações pelo passe-livre, início das agitações que levaram, mais tarde, ao impeachment de Dilma. As principais estrelas do Meu Rio – como a presidente Alessandra Orofino, também funcionária da Purpose – foram recebidas pelos principais think tanks do establishment de Washington, incluindo o notório Atlantic Council e a Fundação Obama.
A primeira grande experiência de mobilização foram as marchas pelo passe-livre, planejadas pela Purpose. E, confesso, até ler o dossiê da @GringaBraziliene, acreditar que a ideia partira espontaneamente de um grupo de jovens ansiosos por participar da política. De fato, a ideia era antiga. Mas quem deu substância e marketing foi a Purpose.
A esses novos movimentos veio se somar a Transparência Internacional, trazida anos antes ao país pela ONG Amarribo – cujo fundador, Josimar Verillo, se valia da imagem anticorrupção para organizar lobbies em disputas comerciais.
Leia aqui o “Xadrez da Transparência Internacional e a Indústria da Anticorrupção”
Quando começaram as manifestações no Brasil, em comício, o primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, alertou para o jogo de desestabilização no Brasil, comparando aos protestos registrados na Turquia. “O mesmo jogo está sendo jogado sobre o Brasil. Os símbolos são os mesmos, os cartazes são os mesmos, Twitter, Facebook, são os mesmos, a mídia internacional é a mesma.” Erdogan afirmou ainda que “eles estão fazendo o máximo possível para conseguir no Brasil o que não conseguiram aqui. É o mesmo jogo, a mesma armadilha, o mesmo objetivo”.
É importante não expor todos os personagens generalizadamente a julgamentos morais, especialmente os jovens ativistas. As redes sociais inauguraram novas formas de linguagem e novas formas de participação política. Muitos jovens ativistas foram influenciados pelo discurso moralista, pelas bandeiras humanistas, pelos novos modelos de participação e, em alguns casos, pelas verbas gordas dos patronos. E, alguns, entregam e entregaram trabalhos relevantes de denúncias.
Mas eram – e são – absolutamente jejunos em relação aos interesses da geopolítica americana. O caso mais emblemático tem sido a autocrítica de Felipe Neto, um dos principais influenciadores seduzidos pelo discurso social-moralista da Purpose.
Um podcast da Purpose com Orofino explica sua estratégia.
Peça 6 – a luta pelo controle da informação
Aí se entra no busílis da questão. As disputas em jogo não são pela moralização da informação, mas pelo seu controle. Entram na disputa as big techs, os oligarcas ligados ao Pentágono e a ultradireita trumpista.
A Cambridge Analítica prosperou em cima dos dados fornecidos pelo Facebook. Houve uma jogada de mestre do Atlantic Council para enquadrar Mark Zuckerberg, do Facebook, descrito no artigo “Xadrez do jogo político dos fake news”.
Um blog pouco conhecido, mas em um domínio bancado pelo Atlantic Council, apareceu com um pretenso trabalho acadêmico multiplicando por centenas de vezes o alcance das campanhas russas em favor de Trump. Ofereceu a vários veículos. Quase todos recusaram por ver falta de seriedade acadêmica no trabalho. A exceção foi aberta por The Washington Post, divulgando o trabalho e sendo criticado por todos os veículos sérios do país.
Mas, com base no trabalho, Zuckerberg foi convocado pelo Congresso, enquadrado. Saiu de lá e foi direto atrás da consultoria da Atlantic Council. A recomendação foi a de que o Facebook filtrasse as notícias através de agências de checagem.
Com isso, tirava-se a regulação das mãos dos governos e estados nacionais, reduzia-se o poder absoluto das grandes redes e limitava-se o alcance das vozes dissidentes – não apenas da ultra direita, mas dos blogs e portais que não se enquadrassem nas regras do neoliberalismo-progressista.
No Brasil, esse movimento ficou nítido em duas tentativas capitaneadas pela Agência Pública de calar um grupo de blogs taxados de forma genérica como progressistas – e que compunham a linha de frente contra o golpe do impeachment.
A primeira, foi ter bancado um trabalho de Pablo Ortellado. Ambos recusaram-se a indicar o patrocinador do trabalho. Mas a metodologia utilizada consistiu em uma análise dos sites extremistas criando o falso paralelismo entre blogs de direita, explicitamente geradores de fake news, e blogs progressistas, que faziam contraponto jornalístico à mídia corporativa.
É curioso esse movimento da Pública, uma organização de boa qualidade jornalística. Pouco antes do trabalho de Ortellado, a Pública me convidou para uma palestra no Rio de Janeiro. O próprio Ortellado era um colaborador constante do GGN, a pedido dele próprio.
Houve uma mudança repentina de posição de ambos, incluindo o GGN na relação de sites radicais de esquerda, com outros sites que, em nenhuma hipótese, poderiam ser considerados geradores de fake news. Em nenhum momento revelou-se quem pagou pela pesquisa.
Pouco tempo depois, o estudo foi apresentado em um seminário da revista Veja – a maior geradora de fake news da história – destinado ao mercado publicitário. Ao mesmo tempo, Ortellado foi enaltecido como grande especialista pela revista, de maneira a conferir reputação acadêmica a uma tese imprestável. Assim como as falsas teses acadêmicas da Atlantic Council, possivelmente serviram de guia para que agências de publicidade e redes sociais passassem a ver com desconfiança sites que disputavam a opinião com a mídia convencional.
O segundo passo foi a criação de uma associação de grupos de checagem, associada a uma organização internacional, possivelmente planejada pelo Atlantic Council, com o fito de assessorar as redes sociais em relação ao conteúdo. No Brasil, a associação foi montada com grupos de mídia – entre os quais o notório Gazeta do Povo, do Paraná – e sites alinhados com o sistema. E a primeira iniciativa foi uma denúncia contra a revista Fórum, acusando-a falsamente de fake news, em uma matéria em que relatava que o papa Francisco havia presenteado Lula (preso em Curitiba) com um livro. A notícia era verdadeira.
Houve uma reação pesada dos blogs progressistas. A partir daí, houve um refluxo das agências de checagem, mas há pouca transparência sobre sua influência atual sobre as redes sociais.
Peça 7 – o jogo atual
As associações de checagem não prosperaram. Limitam-se a conferir fatos objetivos, mas sempre com viés patronal. Por exemplo, foram incapazes de denunciar o fake news de que a Petrobras estava quebrada, divulgado pela mídia corporativa na mesma época em que a empresa lançava bônus perpétuos com demanda várias vezes superior à oferta.
Houve mudanças em algoritmos do Google que quase quebraram as pernas da mídia alternativa. Não se sabe se inspiradas em falsos trabalhos acadêmicos, como o de Ortellado, ou por precaução em relação aos factóides sobre a Covid-19.
Mas, hoje em dia, o jornalismo migrou decididamente para as big techs. Há muito mais jornalistas e jornalismo espalhados pelas redes do que na mídia corporativa.
Gradativamente, o Google vai ampliando suas alianças e se livrando da tentativa de enquadramento pelas agências de checagem. Fechou contratos de remuneração de conteúdo com organizações jornalísticas e passou a negociar institucionalmente com sites independentes, organizados em associações. Mas todos dependendo de seus sistemas de busca e remuneração.
Recentemente, enviou uma mensagem alertando sites que notícias pró-Rússia seriam desmonetizadas. Foi o suficiente para que sites progressistas se tornassem mais anti-Rússia que a própria Globonews.
É um processo ainda em construção. Os diversos agentes estão se organizando, discutindo, gradativamente as instituições estão se familiarizando mais com o tema. As próprias big techs se mostram mais suscetíveis aos direitos de opinião. Por outro lado, a ultradireita e seus algoritmos continuam acesos, alimentando grupos radicais por todo o planeta.
Ainda há muita estrada pela frente até que a comunicação se torne um instrumento de inclusão e de equiparação dos direitos. Se é que se chegará algum dia a esse objetivo.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)