Pedro Maciel diz que a responsabilidade pela morte de Bruno e Dom “é do Estado e de todas as pessoas que colaboram com o clima de ‘vale tudo’ no país”
“…qualquer que seja o modo como atua uma causa, ela só se transforma em violência, no sentido pregnante da palavra, quando interfere em relações éticas”
Walter Benjamin
A Terra Indígena do Vale do Javari localizada nos municípios de Atalaia do Norte e Guajará, no oeste do estado do Amazonas, demarcada por decreto do presidente Fernando Henrique Cardoso em 2 de maio de 2001, foi o palco da tragédia que envolveu o indigenista brasileiro Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips .Bem, o assassinato de Bruno e Dom não é algo inédito, a região concentra 77% das mortes por conflito no campo nos últimos dez anos (foram 313 mortes entre 2012 e 2021).
Não é o caso de procurar “culpas”, mas indicar responsabilidades e caminhos para que isso não ocorra mais.
Acredito que a responsabilidade é do Estado Brasileiro e dos governos que, de alguma forma, não levaram a sério que a Constituição de 1988; a responsabilidade é também de todas as pessoas que colaboram com o clima de “vale tudo” e de impunidade que se instalou no país.
Por que a responsabilidade é do Estado e dos governos? Porque a constituição dispõe de preceitos que asseguram o respeito à organização social, aos costumes, às línguas, crenças e tradições, e estabeleceu novos marcos para as relações entre o Estado, a sociedade brasileira e os povos indígenas; porque a população indígena no Brasil tem o direito de buscar maior integração, bem como de se manter intacta em sua cultura, aldeada, se assim entender que é a melhor forma de preservação, a decisão é das comunidades indígenas; porque o Estatuto do Índio de 1973, que previa prioritariamente que as populações deveriam ser “integradas” ao restante da sociedade, não vale mais e é uma visão atrasada, que o atual presidente da república vocaliza; porque a Constituição passou a garantir o respeito e a proteção à cultura das populações originárias; porque o povo brasileiro, através dos seus constituintes, definiu que a população indígena deve ser protegida e ter reconhecidos sua cultura, seu modo de vida, de produção, de reprodução da vida social e sua maneira de ver o mundo.
É disso que se trata, defender o contrário é afrontar a constituição, é “jogar fora das quatro linhas”.
A violência ocorre onde o Estado não se faz presente.
É sempre necessário lembrar que, paralelamente à violência que ocorre no norte do país, trabalhadores e trabalhadoras, a maioria negros e negras, são vítimas de homicídios no Brasil, só em 2017, 75,5% das pessoas assassinadas no país eram pretas, o equivalente a 49.524 vítimas. Aesmagadora maioria dessas vítimas é oriunda da classe trabalhadora, da periferia das grandes e pequenas cidades e sofre cotidianamente com a miséria e com o esquecimento e com a falta de acesso aos serviços públicos impostos pelo Estado.
Esses números da violência contra trabalhadores, predominantemente negros, só crescem em razão das poucas ações e políticas públicas para que essa realidade seja revertida.
A barbárie imposta aos nossos irmãos, sejam os mortos na Amazônia ou as dezenas de milhares que morrem nas periferias do Brasil a cada ano, fizeram que eu lembrasse de uma história esquecida que escancara como o mal está presente em nossas vidas e como ele decorre da ausência do Estado e de políticas públicas válidas.
Volto ao Rio de Janeiro dos anos 1960 e à “Operação mata-mendigos”.
Essa “operação” constituiu-se no extermínio de moradores de rua pela polícia carioca no início da década de 1960, por determinação do então governador Carlos Lacerda (um dos apoiadores de primeira hora do golpe civil-militar de 1964).
O fato: mendigos eram assassinados pela polícia – com aval do governador e da estrutura do Estado -, afogados na Lagoa Rodrigo de Freitas.
O episódio foi denunciado pelo jornal “Última Hora” e se tornou um grande fenômeno político e midiático.
Qual razão dessa barbárie batizada de “operação”? Bem, dois livros citados por Mariana Dias Antônio no seu trabalho, relatam as preparações para a visita da Rainha Elizabeth II ao Rio de Janeiro como motivo para o extermínio de pessoas em situação de rua. O governador Carlos Lacerda queria que a cidade ficasse “limpa” de moradores de rua em razão da citada visita.
A cidade estava “suja” porque não havia nenhuma política pública de viés social e inclusiva para as populações que viviam nas ruas. Ou seja, o Estado era omisso e ausente.
O governador teria ordenado também fossem tornadas invisíveis as favelas. O que gerou uma “epidemia” de outdoors, tapumes com anúncios, para encobrir a pobreza deprimente. Os governos da cidade do Rio de Janeiro, todos de direta até então, não davam nenhuma importância ao drama social vivido por tanta gente. Estado omisso e ausente.Carlos Lacerda autorizou a barbárie, o crime e a desumanidade, levada a cabo por tantos “Adolf Eichmann” que existiam na estrutura do Estado e da sociedade, sempre ciosos por privilégios a qualquer custo e dispostos a banalizar o mal.
O mal reside na ausência do Estado e a ausência do Estado transformará a Amazônia, em menos de uma década, em espaço ocupado pelo garimpo ilegal, pelos madeireiros e pelo narcotráfico.
O Norte precisa do Estado. Precisa da FUNAI, do Ministério do Meio Ambiente, do Ministério da Defesa e de compromisso genuíno do Planalto no cumprimento do que dispõe capítulo específico da constituição (Título VIII, Da Ordem Social, Capítulo VIII, Dos Índios).A Amazônia precisa de gente como Dom e Bruno, de seres encantados como Chico Mendes e de Dorothy Mae Stang, a Irmã Dorothy, apoiados e protegidos pelo Estado.
Essas são as reflexões.
PEDRO MACIEL NETO ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)