A partir da Vaza Jato, “Amigo Secreto” faz ampla contextualização da grande farsa construída no Brasil entre 2017 e 2021. Um novo Processo, agora como catarse
O lançamento de Amigo Secretofoi antecipado pela informação de que era “o filme da Vaza Jato”. Isso é apenas uma meia verdade. Maria Augusta Ramos de fato elegeu a observação dos trabalhos de quatro jornalistas como eixo ao qual sua narrativa retorna com frequência. Mas o documentário é bem mais uma contextualização do momento político brasileiro entre 2017 e 2021 do que propriamente uma abordagem in profundis da revelação dos podres da Lava Jato.
Leandro Demori, do The Intercept Brasil, e Carla Jiménez, Regiane Oliveira e Marina Rossi, da sucursal brasileira de El País (hoje extinta) são vistos analisando materiais vazados das conversas entre procuradores e o então juiz Sergio Moro no Grupo Amigo Secreto, assim como colhendo depoimentos que lhes ajudam a destrinchar a complexidade do assunto. No que diz respeito ao trabalho jornalístico, Amigo Secreto traz considerações de primeira linha. Estamos falando, claro, de jornalismo de verdade, como o dos veículos citados. Mesmo para eles, vale o exame de consciência sobre a terceirização das investigações jornalísticas que vigorou no tempo da Lava Jato, quando os jornais limitavam-se a publicar as informações recebidas do Ministério Público, sem proceder a qualquer checagem de suas fontes, métodos de obtenção e veracidade.
Ao redor dessa aproximação com os jornalistas, Maria Augusta traça um amplo painel dos acontecimentos precipitados pela Vaza Jato. Do interrogatório de Lula por Moro em 2017 à sentença do STF pela suspeição e incompetência deste último em 2021, revisitamos os principais pontos de inflexão da história. Moro é questionado no Congresso; a notícia falsa do roubo do crucifixo do Aleijadinho é desmascarada; Lula dá respostas emocionadas em sua primeira entrevista na prisão e é libertado após o julgamento pelo STF da prisão em segunda instância; Bolsonaro esbraveja na célebre reunião ministerial do “passar a boiada”; os bolsonaristas agridem o Judiciário como resposta à imposição do estado de direito.
De certa forma, a diretora faz um novo O Processo, agora com espectro mais aberto e um certo sentido de catarse. Ainda que conclua de maneira similar àquele outro filme, com as nuvens negras sobre a Amazônia e o país, o processo aqui é não de deposição, mas de reposição de uma moral jurídica e de uma ética jornalística.
Mais que pelos fatos recopilados, Amigo Secreto se eleva pelo teor das ponderações ouvidas pelos jornalistas. O advogado Cristiano Zanin fala sobre o cenário fictício construído em torno das denúncias de Deltan Dallagnol. José Maria Rangel recorda os primeiros alertas da Federação Única dos Petroleiros a respeito da destruição da Petrobras. Fábio Tofic Simantob, advogado do Grupo Prerrogativas, faz uma análise antropológica da corrupção na Petrobras e aponta a indústria de delações premiadas criada pela Lava Jato. Nesse quesito, um dos mais fortes testemunhos já vistos sobre o caso é o de Alexandrino de Alencar, ex-executivo da Odebrecht, que esteve preso e percebeu claramente nos procuradores a intenção de criminalizar Lula enquanto desconsideravam referências a figuras como Aécio Neves. Esse depoimento já ganhou destaque na imprensa antes mesmo da estreia do filme.
A Lava Jato confundiu administradores com empresas, afirma o advogado Walfrido Warde. O Judiciário usou o valor de sua imagem para fazer guerra política, garante Carol Proner. A corrupção assola no governo Bolsonaro e a democracia se degenera à margem da Constituição, diagnostica Pedro Serrano. A colaboração ilegal do FBI à Lava Jato com a cláusula de repartição de multas propiciou a criação de um mercado internacional do combate à corrupção, esclarece a jornalista Natália Vianna, que investigou o assunto.
Nenhuma dessas apreciações, porém, contribui tanto para a desconstrução da Lava Jato quanto a simples contraposição de Ricardo Lewandowski a Roberto Barroso durante o julgamento da suspeição de Moro. Lewandowski contestava os argumentos lavajatistas de Barroso com os números do prejuízo causado ao país pela operação. Era o STF abraçando as incontestáveis exposições da Vaza Jato.C
Mais uma vez, Maria Augusta reúne um dossiê perspicaz que se torna revelador não tanto por descobertas bombásticas, mas pela forma como escolhe e organiza sua coleta e sua observação. A câmera sempre sóbria, as imagens bem compostas, o som preciosamente captado – tudo sugere uma segurança que se transmite da forma para o conteúdo. Seus filmes atuam como instrumentos imperturbáveis de percepção histórica agindo no presente e formando sínteses para o futuro.
Ao fim de Amigo Secreto, ficamos não só com o incontornavelmente vergonhosopapel vivido pelo Ministério Público, o juiz Moro e a imprensa teleguiada. Levamos também a convicção de que a Lava Jato estará sempre associada a um período de horror em nosso país, no qual a pandemia e o governo atual se confundem sob a fumaça negra que emana da floresta e da consciência das cidades.
Em relação direta com a Vaza Jato, só ficou faltando mencionar o grande responsável por essa reviravolta histórica: o hacker Walter Delgatti, a quem o Brasil deve muito agradecer.
O trailer:
Neste sábado (18/6), às 11h30, vou participar de uma live sobre o filme com a diretora Maria Augusta Ramos, os jornalistas Leandro Demori e Carla Jimenez, juristas do Grupo Prerrogativas e o host Gustavo Conde.
CARLOS ALBERTO MATTOS ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)
Crítico, curador e pesquisador de cinema. Publica também no blog carmattos