Introdução dos organizadores ao livro recém-lançado
À sombra sulfurosa do trumpismo, Jair Bolsonaro tomou posse e abriu, em 1º de janeiro de 2019, la porte de l’enfer tropical. Um longo processo foi condensado, como se em painel escultórico de Rodin, nos acontecimentos que antecederam o pleito de 2018. Lula, o mais bem colocado nas pesquisas apesar de preso na Polícia Federal de Curitiba, tornou-se inelegível, por decisão do Tribunal Superior Eleitoral, no final de agosto. Coroava-se, assim, manobra judicial que começara quatro anos antes com a Operação Lava Jato e acabara na ameaça do general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, ao Supremo Tribunal Federal, via Twitter, em abril.
Para os militares, o ex-presidente não podia concorrer. Seis dias depois de o TSE excluir formalmente Lula, Bolsonaro, o deputado e ex-capitão do Exército que vinha em um distante segundo lugar, sofreu grave atentado a faca durante campanha em Juiz de Fora. Ficando, para sua vantagem, sob os intensos holofotes da mídia e afastado dos debates entre candidatos, começou a subir nas pesquisas. O postulante do PSDB, que vinha avançando, afundou. O resto é história.
Mas trata-se de uma história que se conecta diretamente às crises mundiais do capitalismo e da democracia. Ao perceber, com a vitória de Donald Trump, em 2016, que a insatisfação causada pelo desarranjo iniciado em 2008 poderia ser canalizada para respostas de tipo autoritário com um pé no fascismo, Bolsonaro se dedicou, com afinco e êxito, a transformar o Partido dos Trabalhadores em bode expiatório dos problemas nacionais. Corrupção, insegurança, falta de emprego e renda: tudo foi colocado nas costas do petismo e de uma inventada conspiração bolivariana. Também Trump acusava Barack Obama de ser socialista e fundador do Estado Islâmico. Embora os processos nos Estados Unidos e no Brasil tenham aspectos distintos, como veremos, podem-se divisar elementos comuns, como o uso da pós-verdade e de discurso nacionalista e a incitação contra aqueles erigidos em inimigos públicos.
Com Lula fora do páreo e o candidato da extrema-direita recolhido ao nosocômio, a propaganda bolsonarista recheou o vazio com o protocolo fascista das fake news violentas, lotadas de imagens fálicas, orações pentecostais e chamamento às armas. Nunca se viu, na pátria da conciliação, cisma igual. Famílias se separaram e amizades foram desfeitas. A avalanche de votos conservadores, embora não suficiente para dispensar o segundo turno, provou a efetividade da tática extremista. Em quatro semanas, imobilizado no Hospital Albert Einstein de São Paulo, Bolsonaro tornou-se o favorito para presidir a República. A hesitação de agrupamentos centristas, alinhados a Alckmin e Ciro Gomes, que talvez revertessem o quadro em favor de Fernando Haddad, substituto de Lula no pleito, encerrou a questão, e Bolsonaro foi confirmado na segunda volta.
Então, os males cometidos por séculos foram se erguendo, um a um, para anunciar a descida do Brasil às profundezas do Hades. Da macabra escravidão, cujos filhos, nunca integrados, sofrem com o racismo estrutural, até a recusa em rever os crimes da ditadura de 1964, passando pela desídia com a indústria, a duras penas construída entre 1930 e 1980. Os fantasmas anunciavam que a punição começaria naquela terça de janeiro, quando, sob o comando do recém-empossado, a sociedade atravessasse o umbral que ordena: lasciate ogni speranza voi ch’entrate.
Instalado no Planalto, o autocratismo de viés fascista se dedica a abalar os frágeis muros de contenção da barbárie[i] erguidos durante os trinta anos em que a Constituição de 1988, mesmo que aos trancos e barrancos, funcionou como pacto fundamental. Embora núcleos de resistência tenham surgido, dentro e fora das instituições, logo ficou claro que o mandatário, cercado de militares por todos os lados, tinha apoios para resistir ao impeachment. Na melhor das hipóteses, seria toureado em seus piores propósitos destrutivos.
Conforme argumenta Leonardo Avritzer (2021, p. 15), no primeiro ano Bolsonaro metralhou políticas de Estado longamente amadurecidas. Dois exemplos, entre muitos: o desmonte premeditado do sistema de controle de queimadas na Amazônia e o corte de recursos para a educação superior (AVRITZER, 2021, p. 14-5). Mas, na realidade, o desmanche se estendeu ao conjunto de instituições federais duramente organizadas nesta Pindorama eternamente semiconstruída. O único preservado, et pour cause, foi o estamento militar.
No segundo ano da era bolsonariana, a pandemia do coronavírus, que desembarcou, literal e oficialmente, no aeroporto de Guarulhos, na terça-feira, 25 de fevereiro de 2020, voando desde a Itália, provocou a descida para um círculo mais profundo do universo dantesco subequatorial. Funcionando, novamente, como uma espécie de alter ego selvagem de Trump, Bolsonaro transformou o Brasil em campo de provas do que poderia acontecer se todas as medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (oms) fossem boicotadas, retardadas ou simplesmente desconhecidas.
Consequentemente, quando estas linhas são escritas, em meados de outubro de 2021, tinham sido registradas 600 mil mortes por Covid-19 no Brasil — uma cifra que, considerada a vasta subnotificação, torna-se ainda mais assombrosa. Só ficamos atrás dos próprios Estados Unidos, com pouco mais de 700 mil óbitos, porém população mais de 50% maior. Os jornais registram a contínua descida infernal: 14% da População Economicamente Ativa desempregada,[ii] contingentes regredindo à situação de pobreza, a fome, outra vez, em “grandes plantações”, gente fazendo fila para receber osso em açougues…[iii] Enquanto isso, o governo sonhava em privatizar estatais e ativos de infraestrutura, entre correios, aeroportos, portos e projetos de saneamento.
O livro que você, leitora e leitor, tem em mãos procura entender a queda brasiliensis conectando-a à situação global. Como explicar a transposição de correntes que chegaram ao Potomac, em 2016 e, depois, ao Paranoá, entrando nos Palácios da Alvorada e do Planalto, em 2019? Como interpretar, desde o ângulo semiperiférico, a contracorrente produzida pela pandemia, que tirou o trumpismo de Washington e transformou Brasília em uma das mais importantes representações da nova extrema-direita mundial?[iv] Até que ponto o mergulho regressivo será contido pela vitória de Joe Biden nos Estados Unidos e seus planos trilionários? Agora que o Império talvez entre em tempos de Green New Deal, poderá o Brasil se imaginar, de novo, sob a perspectiva rooseveltiana que embalou os dez anos lulistas?
O volume, de que participam cientistas políticos e economistas reunidos, entre 2020 e 2021, em torno do Grupo de Pesquisa Pensamento e Política no Brasil, associado ao Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (FFLCH-USP), possui artigos sobre os dois polos da dualidade, do que decorre a organização em duas partes. Embora cada autora ou autor tenha pontos de vista próprios, os assuntos foram tratados em seminários conjuntos, o que construiu um temário comum. Procurou-se examinar a relação entre o externo e o interno, indagando-se, em última análise, em que ponto do interregno estamos e como avaliar a situação brasileira. Não houve, nem de longe, intenção de compor um panorama completo. Inúmeros temas significativos, como o papel do Poder Judiciário ou dos militares, embora mencionados, não foram submetidos a análises específicas, tendo em vista o enfoque principal na interseção entre política e economia. A seguir, um trailer das pistas que a coletânea oferece.
O contexto global
Diante das graves e sucessivas crises que o planeta atravessou e atravessa — começando com o colapso dos circuitos financeiros em 2008 até a pandemia — muito se discute sobre o destino da ordem neoliberal, por um lado, e dos regimes democráticos, por outro. A primeira parte desta coletânea empalma a discussão e a explora em três cenários alternativos: (1) A hipótese benigna de haver uma reconfiguração de fundo, ainda que hesitante, da dominação capitalista; (2) o pior presságio: uma continuidade dos fundamentos do neoliberalismo, mas com uma moldura abertamente autoritária; (3) a saída intermediária: o que aqui denominamos “interregno”, seguindo a acepção de Wolfgang Streeck (2016), isto é, um período de declínio sem perspectiva de superação, de capitalismo descoordenado e instabilidade política. Postas em sequência, as diferentes constelações permitem, não adivinhar o que vai ocorrer, mas pensar os processos em curso.
Essa avaliação, naturalmente, envolve variadas compreensões do que é o neoliberalismo. Nas contribuições da coletânea, cada artigo busca indicar qual é a sua e, sobre tal pano de fundo, elaborar diagnósticos e projetar futuros. Grosso modo, porém, o leitor encontrará um significado subjacente comum, sem prejuízo das diferenças de ênfase. Os autores concordam que a ordem neoliberal não é apenas um certo tipo de política que esse ou aquele Estado impõe sobre o capitalismo e a sociedade sob seu domínio, mas, também, um padrão de interações entre Estados e sociedades, uma vez que o próprio capitalismo é – desde sempre – um fenômeno com impulsos extraterritoriais.
Mesmo havendo concordância de que a ordem neoliberal e o processo de globalização andam juntos, poderíamos nos perguntar se o nexo exige uma coordenação deliberada dos atores relevantes, isto é, uma “governança” global. Como nota Fernando Rugitsky, o neoliberalismo ancorou-se em uma espécie de triângulo cujos vértices estavam, metaforicamente, em regiões específicas do planeta, desempenhando funções especializadas e complementares. À medida que as “novas oficinas do mundo” se deslocavam para o Leste Asiático, até torná-lo polo da oferta de bens manufaturados, os países ricos do Atlântico Norte (Estados Unidos e Europa Ocidental), com a notável exceção da Alemanha, acabaram por se reacomodar no papel de polo demandante das mercadorias industriais. Os antigos países “em desenvolvimento” situados na periferia do sistema – alguns na América Latina, outros na África, além da própria Rússia – foram constituindo o polo fornecedor de insumos (basicamente grãos, energia fóssil e minérios), para alimentar as oficinas da Terra.
Se é verdade, portanto, que o neoliberalismo representa a etapa em que as finanças ocupam o plano decisivo – ponto para o qual os colaboradores igualmente convergem – o esquema do tripé mostra que o domínio só se estabilizou porque esteve assentado em instituições concretas, que aceitaram dividir papéis complementares e cooperar. Mas a cooperação não foi simétrica, claro. A iniciativa e o convite partiram da região e das nações mais poderosas, destacadamente os Estados Unidos e os detentores de capital, ao mesmo tempo interessados em expandir os negócios e quebrar a capacidade de barganha das classes trabalhadoras domésticas.
Ao aceitar a condição de coadjuvantes – significando que não partiria deles a distribuição das cartas e as regras do jogo –, os convidados passaram a fazer lances na peleja, quiçá apostando que a assimetria inicial pudesse ser corrigida no percurso. Esse o chão objetivo, mas potencialmente movediço, em que se assentou a geopolítica neoliberal, e sua história pode ser compreendida como decorrência das oportunidades e contradições que se abriram no interior da partida.
O arranjo, contudo, começou a se desfazer em 2008, na esteira de uma gigantesca especulação com hipotecas nos Estados Unidos, a qual contaminou as finanças, um dos pilares da acumulação em escala planetária. Uma improvisada articulação envolvendo o Federal Reserve (FED), o Banco Central dos Estados Unidos e a China foi capaz de evitar queda similar à que se seguiu ao crack da bolsa, em 1929, mas não a desmoralização. Na iminência do doomsday, bancos e especuladores foram resgatados, num caso típico de socialização das perdas, enquanto milhões de pessoas perdiam empregos e/ou casas.
Passado um biênio, a crise, cuja virulência havia sido atenuada pela conversão da dívida do sistema bancário em dívida pública, acabou por atingir em cheio os Estados europeus mais endividados. Desta vez, contudo, em lugar de jogar o bote salva-vidas – como havia feito antes com empresas e especuladores – a União Europeia, sob pressão da Alemanha, resolveu agir com máximo rigor, impondo medidas severas de austeridade, vale dizer, contra o conjunto das populações. Ao mesmo tempo, a paralisia das linhas de crédito levava à queda generalizada da demanda pelos manufaturados do Leste Asiático, desacelerando a economia chinesa: um acontecimento prenhe de consequências para o polo fornecedor de grãos e outros insumos primários. Em suma, o Grande Tripé se enfraquecia e a hegemonia neoliberal trincava, ainda que as políticas neoliberais prosseguissem (FRASER e JAEGGI, 2018).
Deixemos de lado, por um momento, o Brexit, Trump e outros extremismos planeta afora, e passemos diretamente ao advento da pandemia. A forma de os Estados reagirem a ela, e as diferentes capacidades que demostraram para enfrentá-la, dão esteio à hipótese de Fernando Rugitsky, para quem o mundo está pouco a pouco se afastando da ordem neoliberal. Não só os ativos financeiros foram salvos numa escala maior do que em 2008, mas a maioria dos Executivos foi obrigada a providenciar colchões amortecedores contra os efeitos da queda da atividade e, mesmo a contragosto, relançar serviços públicos (especialmente os de saúde) antes mal dotados ou em vias de obsolescência. Em outras palavras, os cofres estatais, antes guardados a sete chaves, abriram-se repentinamente, como num passe de mágica.
Aos olhos do público mais atento, os eventos desnudaram que a disciplina fiscal, mantra das condutas ortodoxas e tida como medida inelutável em vista das “leis econômicas”, nada mais era do que um modo arbitrário e odioso de disciplinar, isso sim, as populações, em especial as mais carentes de apoio do Estado, nada tendo a ver com algum limite da própria realidade. Com o desenrolar da pandemia, foi se evidenciando que justamente os países menos guiados pelo receituário neoliberal foram os mais eficazes no combate à doença. Se este “rei nu” da ordem dominante ficar impresso na memória coletiva, é plausível que venha, de agora em diante, um empuxo para fora do campo de gravidade do neoliberalismo.
Por enquanto, todavia, os sinais são ambíguos. Convém não subestimar o enorme estrago que as práticas neoliberais produziram não só na legitimidade das instituições democráticas – e, portanto, na sua habilidade de gerir os conflitos por dentro delas mesmas –, mas também na consciência coletiva. O crescimento das correntes autoritárias sinaliza algo mais grave do que um simples mal-estar passageiro? E se, em vez de uma rebelião contra a ordem neoliberal, ele prenunciar uma inflexão autoritária do próprio neoliberalismo? É essa a hipótese do artigo de Alison J. Ayers e Alfredo Saad-Filho.
A virtualidade surpreende, uma vez que nos acostumamos a alinhar a ordem neoliberal com partidos e lideranças que, mesmo contribuindo para esvaziá-la, não punham a institucionalidade democrática em questão. Contudo, justamente esse alinhamento turvou a percepção do ímpeto frio e inclemente com que o capitalismo pós-1980 lograva, no mesmo compasso, submeter o conjunto da sociedade a seus parâmetros, sacrificando as conquistas civilizatórias do período anterior.
Como isso requeria a mediação da política, foi preciso, também, romper o elo que unia a consciência das classes subalternas aos valores da democracia. Ao passo que os sindicatos eram aviltados, erodia-se o jogo institucional, retirando o gume das eleições. À medida que o discurso democrático soava crescentemente vazio, os partidos e lideranças do mainstream foram se tornando obsoletos. A pá de cal autoritária foi um simples desdobramento da lógica financista que, provocando situações econômicas desestabilizadoras e acúmulo de tensões sociais, gerou, de baixo para cima, uma onda questionadora da democracia.
Seria de esperar que o sofrimento trazido pela ordem neoliberal ampliasse o horizonte de alternativas. Mas tal ampliação tem sido a exceção, não a regra. O incentivo à competição e o aumento da insegurança, junto com a degradação institucional, fragmentaram a sociedade e alienaram da vida pública as camadas potencialmente críticas. Em consequência, o caminho da imposição e da coerção, pondo fim ao “blá-blá-blá” democrático, parece a muitos o único meio de acabar com as aflições. A presença aumentada de correntes de extrema-direita expressaria essa exaustão.
Na hipótese pessimista, o neoliberalismo teria dentro de si “gatilhos” coercitivos (configurando uma espécie de estado de exceção latente) amplamente empregados no campo econômico, mas extensíveis à esfera política. Daí que a extrema-direita ascendente, a despeito da retórica “antissistema”, ao invés de se afastar da perspectiva neoliberal, tem buscado radicalizá-la.
O fato de o discurso preconceituoso e violento encontrar receptividade entre o povo, e não apenas nas camadas altas, revelaria afinidade entre o neoliberalismo e estilos modernizados de fascismo. Significa, igualmente, que o antigo establishment – tanto a direita moderada, liberal-conservadora, quanto a chamada “terceira via” trabalhista e socialdemocrata, responsáveis até aqui pela gestão da ordem – não consegue mais dar conta de suas tarefas, precisando ser substituído por lideranças preparadas para enfrentar tempos turbulentos. Digamos sem eufemismos: prontas para se desembaraçar dos escrúpulos e praxes constitucionais e “frescas” o bastante para conquistar a confiança das massas, sem arredar pé dos fundamentos da ordem que pretensamente querem mudar. No fundo, lideranças como Trump e Bolsonaro almejariam não o rompimento, mas a passagem de uma modalidade de neoliberalismo com fachada democrática para outra, abertamente autoritária.
Aqui deparamos com o terceiro horizonte examinado na coletânea, no artigo de André Singer e Hugo Fanton. Ele é suscitado pelo seguinte ruído de fundo: será que a avaliação que acabamos de resumir não carrega sistematicidade demais e desordem de menos? Ou seja, será que a eclosão da extrema-direita, ao lado das crises e tendências até aqui descritas, não estaria indicando algo que transcende a noção mesma de uma “ordem”, prefigurando, ao contrário, a virtual desagregação, sem que alguma alternativa seja capaz de substituí-la?
Em seus escritos, Streeck tem argumentado que, desde o início, a ordem neoliberal vive da “compra de tempo”, uma sucessão de improvisações em que o crash financeiro de 2008 representaria o ponto final. Os “truques” começam com a tolerância à inflação dos anos 1970, seguida do acúmulo de dívida pública nos anos 1980 e, por fim, a proliferação de dívida privada, a qual termina na enorme bolha financeira fadada a explodir em 2008. Então, para evitar o derretimento do sistema bancário, convertem-se em dívida pública todos os ativos “podres” acumulados.
Mas o novo endividamento, sendo impagável, não passa de uma bomba-relógio. Esgotado o repertório de “adiamentos” da crise estrutural, o “sistema” (cada vez menos organizado) entrega-se à deriva.
O capitalismo contemporâneo está se evaporando por conta própria, sucumbindo a suas contradições internas e sobretudo como resultado de ter vencido seus inimigos – os quais, como já notado, frequentemente o salvaram de si mesmo, ao forçá-lo a assumir uma nova forma. O que vem depois do capitalismo em sua crise final, agora em curso, eu sugiro, não é o socialismo ou qualquer outra ordem definida, mas um duradouro interregnum – não o equilíbrio de um novo sistema-mundo à Immanuel Wallerstein, mas um prolongado período de entropia social, ou desordem (e precisamente por esta razão um período de incerteza e indeterminação). (STREECK, 2016, p. 13)
Como se sabe, o estrangulamento de 2008 ocasionou uma baixa do consumo planetário, lembrando o período que se seguiu à crise de 1929, mas sem a maciça perda de patrimônio e empregos ocorrida no entre-guerras. A Grande Recessão, como ficou conhecida a fase deflagrada pelo estouro da mencionada bolha das hipotecas nos Estados Unidos, aprofundou a desigualdade que o neoliberalismo cavara nas décadas anteriores. A contenção do crash por maciças injeções de dinheiro público não alterou a essência da situação. A famosa conferência de Larry Summers – “o mais influente mecânico da engasgada máquina de acumulação capitalista” (STREECK, 2018, p. 26) – no Fundo Monetário Internacional (fmi), em 2013, de acordo com a qual se teria entrado numa estagnação secular, desvelava justamente a peculiaridade histórica que Streeck queria destacar.
Apesar da inundação de liquidez por meio do chamado Quantitative Easing (qe), a austeridade adotada pelo G-20 em 2011 prejudicou amplos segmentos da população planetária, inclusive as classes médias (THERBORN, 2020). Das ondas de contestação à esquerda e à direita, resultou o esgarçamento da moldura institucional. Desnorteada, a ordem neoliberal acabou por se deixar penetrar por tendências autoritárias. Nesse diapasão, Streeck reinterpretou a famosa cunhagem gramsciana do termo “interregno” (GRAMSCI, 2012 [1930], p. 187) – período marcado, como diz o marxista italiano, por “sintomas mórbidos” –, projetando por meio dele um contínuo desfazimento do tecido social, sem horizonte de conclusão. Ao contrário de uma transição (um intervalo “entre dois reinos”), uma fase entrópica, combinando capitalismo desorganizado e decrescente integração social.
Na entrevista concedida a Hugo Fanton, publicada neste volume, Streeck não parece disposto a revisar a hipótese sombria, mesmo perante prognósticos otimistas suscitados pelas iniciativas de Joe Biden e da União Europeia sob o impacto da pandemia. Em tom bastante cético, perguntado sobre os pacotes dos Estados Unidos, diz não enxergar como, a médio e longo prazos, os gigantescos déficits públicos requeridos para “estimular a decadente máquina de lucro americana” serão financiados, e cogita se, no fim das contas, trarão “mais danos do que benefícios”.
O mesmo a respeito dos 750 bilhões de euros lançados pela Uniaõ Europeia: embora pareça uma soma impressionante, “tudo o que fará é financiar alguns projetos nacionais de prestígio, beneficiando os governos no poder”, com o agravante de preservar os fatores que levam os países mediterrâneos à ruína (França inclusive), enquanto a Alemanha enriquece. Subjaz a ideia sugerida acima: na ausência de uma força no sentido contrário, vinda dos trabalhadores, os maiores prejudicados pela lógica cega da “máquina de lucros”, é difícil imaginar uma reversão da entropia.
O curto-circuito brasileiro
Numa entrevista concedida em 2020, Bruno Latour argumentou que o “Brasil é hoje como a Espanha era em 1936, durante a Guerra Civil: […] onde tudo que vai ser importante nas próximas décadas está visível” (AMARAL, 2020). A guerra espanhola antecipou a belicosidade fascista. A experiência – lembrada pelo heroísmo trágico registrado por Orwell, Hemingway e tantos outros – ajudou, de algum modo, a organizar a luta posterior, mas a Espanha pagou um preço elevado por ter servido de escola: o franquismo sobreviveu por quatro décadas. Esperemos que a analogia espanhola não se confirme, mas não há dúvida de que a dinâmica brasileira possui uma urdidura que interessa ao mundo. Na segunda parte desta coletânea procura-se compreender aspectos da nossa navegação rumo ao mare incognitum que, até agora, conferiu aos “sintomas mórbidos” de Gramsci assustadora literalidade. Divergindo em determinados pontos, os artigos fornecem elementos para fazer tal mapa.
O tsunami aportou como “marolinha” em 2008. O impacto do crash foi menor do que se esperava e as medidas anticíclicas, em conjunto com a recuperação dos preços das commodities, permitiram que, já em 2010, a economia retomasse a trajetória anterior (BARBOSA-FILHO, 2010; PAULA, MODENESI e PIRES, 2015). Na época, a imprensa de negócios se encontrava coalhada de menções a um decoupling, o jargão da moda para se referir ao suposto descolamento das trajetórias do centro e da periferia, que explicaria o efeito restrito da parada cardíaca financeira sobre as regiões asiáticas e sul-americanas (WÄLTI, 2009).
Porém, diante da inédita articulação global, era pouco provável que impactos subterrâneos não chegassem. Como vimos, a crise, que de início abalou os Estados Unidos, gradualmente desmontaria o arranjo planetário consolidado na década anterior, desacelerando a economia chinesa e repercutindo nos quatro cantos da Terra (TOOZE, 2018; RUGITSKY, 2020). Aqui, o efeito profundo começou a ser sentido em 2011, com a queda das commodities, a desaceleração do Produto Interno Bruto e o acirramento do conflito distributivo. O pior, entretanto, começaria em 2015, quando a perda intensificada de valor das commodities, o aguçamento da disputa política e o acúmulo de contradições anteriores impuseram um grave revés ao lulismo (SINGER, 2018).
O artigo de Cicero Araujo e Leonardo Belinelli sugere que o desempenho governamental do pt deve ser visto à luz do processo que levou à estabilização da Constituição de 1988, com a adaptação de algumas de suas cláusulas mais sensíveis ao contexto internacional, em princípio avesso ao projeto socialdemocrata clássico. Os autores falam de um “pacto social-liberal”, experimentado a partir de 1995, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso na esteira de um plano bem-sucedido de combate à hiperinflação. A vitória posterior de Lula certamente inclinou a Constituição para o seu polo social, mas a moldura estava assentada desde antes. O que os dois primeiros mandatos petistas lograram, graças especialmente às raras habilidades do piloto, foi explorar até o limite as possibilidades do equilíbrio constitucional alcançado.
Depois, na fase comandada por Dilma Rousseff, certos flancos do consenso constitucional ficaram expostos. Pelo lado das instituições veio à tona o ônus do “presidencialismo de coalizão”, regra não escrita pela qual o presidente da República se vê obrigado a formar no Congresso uma supermaioria, ou seja, uma aliança bem mais ampla do que aquela necessária para se eleger. Se é verdade que essa regra “lubrificava” as relações entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo, o fazia sob a influência semiclandestina e deturpadora do dinheiro, afastando mais a sociedade de um sistema político-partidário por si só propenso a se descolar.
Com a longa permanência do PT no Executivo – quando parecia ter encontrado um modo de se tornar eleitoralmente imbatível – a oposição partidária aderiu a uma postura subversiva, isto é, disposta a implodir o pacto constitucional existente. A aliança com setores estrategicamente posicionados no Poder Judiciário terminou por favorecer a ruptura.
A fenda institucional combinou-se à que se abrira na sociedade, marcadamente entre as faixas intermediárias da pirâmide de classes. Para Araujo e Belinelli, o pacto social-liberal poupava os ricos e beneficiava os pobres, deixando grande parte do ônus sobre os trabalhadores não precarizados, profissionais assalariados e detentores de pequenos negócios. Ao menos, assim teria sido percebido por tais segmentos. À propensão subversiva de atores institucionais somou-se, assim, o sentimento radicalizado de estamentos médios, adensando o ataque à Constituição e o questionamento da democracia. Abalados a Carta e o pacto, os muros de contenção neles fincados começaram a balançar.
O artigo de Pedro Mendes Loureiro reforça o argumento de Araujo e Belinelli, trazendo dados a respeito da redução da renda relativa daqueles com grau elevado de instrução em ocupações que exigem maior qualificação, os quais representam parte numerosa da classe média tradicional. Comparando as médias dos períodos 2003 a 2005 e 2011 a 2013, o autor verifica que esses profissionais caíram, comparativamente, cerca 16% na escala de privilégios. No período inicial, ganhavam o triplo da renda per capita brasileira e, no final, passam a se apropriar de um rendimento que representava 2,5 vezes a mesma. Tal diminuição teria derivado de uma forma de combate à pobreza que poupou os capitalistas.
Para Loureiro, a estratégia de combate à pobreza do lulismo combinou-se com um intento, correlato, de ampliar o acesso à saúde e à educação, estreitando a exclusão financeira. No entanto, optou-se, até certo ponto, por uma estratégia de mercantilização da reprodução social, aprofundando a combinação de subfinanciamento dos sistemas públicos com subsídios à provisão privada. Em vez de concentrar-se na expansão e no aperfeiçoamento dos serviços públicos, o lulismo teria buscado a associação privada para ampliar o acesso, não revertendo a privatização ocorrida no período tucano.
Sugerindo uma abordagem mais crítica do experimento petista, o autor avalia que os governos liderados pelo partido teriam representado uma variante que ele chama de “neoliberalismo redutor da pobreza”, exequível no contexto de bonança externa. Quando os ventos externos mudaram de direção, a tendência distributiva foi revertida. A melhora no padrão de vida dos pobres, que não deve ser subestimada, foi viabilizada materialmente graças ao bom uso dos ventos externos, que sopravam, sobretudo, da China. Quando os ventos começaram a soprar com menos força, pelos efeitos retardados de 2008, se impôs uma variante mais bruta, conhecida como “neoliberalismo predador”. Operando no terreno fertilizado pelo abalo constitucional, desenvolveu-se rapidamente.
Lena Lavinas, Lucas Bressan e Pedro Rubin, no seu artigo, investigam, em diapasão crítico semelhante, os efeitos de uma contraface da mercantilização das políticas públicas: o crescente endividamento das camadas populares. Para tanto, reconstituem a financeirização em curso no capitalismo contemporâneo, por meio da qual a força de trabalho passou a depender crescentemente das dívidas e os programas sociais tornaram-se território de caça para as finanças. Tal avanço sobre a reprodução social tem enfrentado resistências em várias partes do mundo, com destaque para os Estados Unidos, a Espanha e o Chile. No entanto, a mobilização ainda não se mostrou forte o suficiente para reverter o processo em curso, que foi, aliás, aprofundado pelas medidas emergenciais implementadas diante da pandemia.
Como ocorreu em outras plagas, o Auxílio Emergencial instituído no Brasil assumiu uma escala inédita. No entanto, ele foi implementado à margem do sistema de proteção social, fragilizado pelo crônico subfinanciamento. Sem desprezar a importância da transferência emergencial de renda, os autores argumentam que é importante não perder de vista as implicações da maneira como foi implementada. Ao sustentar a renda dos mais pobres, o auxílio permitiu tanto uma aceleração do endividamento das famílias, que já vinha crescendo desde 2017, quanto uma queda do número de inadimplentes. Dessa maneira, contribuiu para a retomada do ciclo de endividamento e foi funcional para a acumulação financeira.
Ao assumir a feição de transferências monetárias, o auxílio reforça a estratégia de combinar subfinanciamento da provisão pública com financeirização crescente da política social, piorando um quadro que era ruim. Com a redução do auxílio e a manutenção do desemprego em patamar elevado, os despossuídos veem-se diante do despejo, da fome e da miséria, com parte da renda comprometida em lidar com dívidas impagáveis.
Ao lado da mercantilização de serviços públicos e do endividamento compulsório, a terceira praga do Egito que atingiu as camadas populares foi a precarização do trabalho, consagrada pela reforma trabalhista de 2017. O artigo de Ruy Braga e Douglas Santos mostra, com base em pesquisa realizada junto a jovens entregadores de bicicleta na cidade de São Paulo, quão difíceis são as condições organizativas nestas novas modalidades de exploração. “Mesmo quando bem-sucedidas, as mobilizações evidenciam a fragilidade política inerente ao atual momento de reconfiguração das identidades coletivas e interesses classistas”, afirmam os autores.
No Brasil, a cultura fordista, baseada na divisão de tarefas típicas da fábrica, declina devido à desindustrialização. A solidariedade se enfraquece no universo da terceirização e do vínculo competitivo proposto por empresas tipo Uber. No contexto da pandemia, o grau de exposição e risco individual, sem proteção de qualquer tipo, ficou exacerbado, levando a protestos isolados, com pouca organicidade. Dada a fragmentação típica da atividade por meio de plataformas digitais, as tentativas de auto-organização pendulam “entre a confiança inspirada na ação direta e a descrença em qualquer tipo de vitória mais duradoura de suas investidas”, contam Braga e Santos. Não havendo vínculos sindicais, é como se o processo de representação coletiva tivesse voltado à estaca zero, tendo que ser reelaborado por completo. Caberá aos sindicatos constituídos, é claro, estender a mão e, quem sabe, acelerar as etapas do “refazer classista”.
Se os três últimos artigos mencionados pincelam alguns traços do inferno que se abateu sobre os trabalhadores, Marina Basso Lacerda dá conta do discurso que, misturando conservadorismo e autoritarismo, acabou por atingir uma parcela destes setores em 2018. Bolsonaro, apesar de elevado a candidato presidencial por áreas de classe média, acabou por selar uma aliança com a direita cristã, que o ajudou a angariar importantes apoios no meio popular.
Para a autora, o sucesso bolsonarista teve a ver com “a reedição do paleoconservadorismo no Brasil, décadas depois do seu surgimento nos Estados Unidos”, hoje liderado por Donald Trump. O paleoconservadorismo se origina do neoconservadorismo reaganista, “que combina valores da direita cristã, militarismo, neoliberalismo e anticomunismo, na vertente que, depois da queda do Muro de Berlim, se volta contra o inimigo interno”, diz Lacerda.
A defesa da família e do punitivismo judicial permitiu a Bolsonaro associar elementos que, juntos, ativam um conservadorismo popular longamente observado na bibliografia nacional. Em particular, a autora levanta a hipótese de que a “perda de protagonismo social dos homens” e a “sensação da desestabilização da masculinidade hegemônica com o avanço do movimento feminista e lgbt” tenham contribuído para fortalecer a candidatura Bolsonaro e a aversão às instituições representativas liberais.
Interregno tropical
As afinidades entre Bolsonaro e Trump podem, no entanto, deixar na sombra que a ascensão do segundo ocorreu à revelia da parte mais moderna dos estratos capitalistas (POST, 2015; RILEY, 2017). Por isso, o temor, despertado nas classes superiores, à mobilização extremista que sustentou Trump abriu a possibilidade de que Biden adotasse, ainda que parcialmente, projetos concebidos nos últimos anos pelas forças do campo da esquerda aglutinadas em torno de Bernie Sanders e Elizabeth Warren (DURAND, 2021; IBER, 2021). Conforme mencionado acima, ainda não sabemos se o impulso conseguirá ir além do neoliberalismo, mas pode-se dizer, pelo menos, que a questão está aberta.
O caso brasileiro é distinto. Se os grupos capitalistas hesitaram durante algum tempo em aderir ao projeto do golpe parlamentar, fazendo-o apenas com o processo adiantado (SINGER, 2018), não há dúvida de que foram os primeiros da fila nas adesões a Bolsonaro. Nos Estados Unidos, décadas de desagregação desembocaram em uma explosão que obrigou os donos do dinheiro a engolir um personagem capaz de mobilizar a frustração de parte significativa das camadas médias e trabalhadoras. No Brasil, um tímido e gradual processo de integração foi substituído por um projeto de extrema-direita recebido de braços abertos pelos grupos abastados. Embora os sinais pós-pandemia dos empresários em relação a Bolsonaro sejam contraditórios – ora com viés oposicionista, ora condescendente ––, a “prova do pudim” só virá mesmo no pleito de 2022 (desde que mantida a agenda eleitoral regulamentar).
Na conjuntura atual, outubro de 2021, Bolsonaro segue acrescentando ao neoliberalismo desinibido a desinibição autoritária. A resultante junto à opinião pública tem sido, na prática, tirar o foco do capitalismo neoliberal e concentrar a atenção na democracia. Abre-se espaço, assim, para o argumento “etapista” de que a prioridade deve ser a defesa da democracia e que o combate ao neoliberalismo fica para depois. Como se Bolsonaro pudesse ser considerado um parêntese discrepante, uma excrescência passageira, e pudéssemos voltar alegremente ao status quo anterior.
Visto da perspectiva global, contudo, Bolsonaro não é uma anomalia, mas a versão brasileira dos sintomas mórbidos anotados por Gramsci. A ascensão da extrema-direita, Brasil incluído, só pode ser compreendida como produto das crises simultâneas do capitalismo e da democracia, ambas provocadas pelo neoliberalismo. Uma bomba está ligada à outra, e não há como desarmá-las sem cortar o fio comum que ameaça uma explosão simultânea.
Para além das aflições imediatas postas em marcha, vale refletir se, na verdade, o quadro descrito trouxe à tona aspectos estruturais da formação nacional. Isto é, se a quebra do pacto constitucional, a mercantilização dos serviços públicos, o estrangulamento das dívidas das famílias, a desestruturação do mercado de trabalho, a partidarização das lideranças pentecostais, além de outros aspectos que a coletânea não pode abordar em detalhe, significam uma repetição, espremida num tempo curto, de uma história longa e recalcada.
Talvez, com exceção de alguns poucos, não se tenha percebido, por baixo da estabilidade e avanços que o país desfrutou desde os anos 1990, como ao mesmo tempo corroíam-se as reservas de sociabilidade democrática acumuladas desde os anos de luta contra a ditadura até a Constituição de 1988. A ocupação criminosa dos desvãos estatais, a expansão de uma religiosidade regressiva, a vigência de um agronegócio que transformava vastos rincões numa réplica atrasada do Meio-Oeste americano, a desindustrialização: bloqueados pelas mudanças na divisão internacional do trabalho, ingredientes vitais do Brasil democrático se desfaziam por baixo.
A antena artística de Chico Buarque, cujo romance de estreia mostrava um sítio familiar sendo tomado lenta e continuamente pela marginalidade (Estorvo, publicado em 1991), pegou o processo no ar. No plano da crítica, Roberto Schwarz (1999) entendeu e explicou o que se passava: “Esta disposição absurda de continuar igual em circunstâncias impossíveis é a forte metáfora que Chico Buarque inventou para o Brasil contemporâneo, cujo livro talvez tenha escrito”.[v] Cerca de dez anos mais tarde, Francisco de Oliveira (2003, p. 142) traduziria a descoberta na linguagem da economia política: “Aterrissando na periferia, o efeito desse espantoso aumento da produtividade do trabalho, desse trabalho abstrato virtual, não pode ser menos do que devastador. Aproveitando a enorme reserva criada pela própria industrialização, como “informal”, a acumulação molecular-digital não necessitou desfazer drasticamente as formas concreto-abstratas do trabalho, senão em seus reduzidos nichos fordistas. Realiza, então, o trabalho de extração da mais-valia sem nenhuma resistência, sem nenhuma das porosidades que entravavam a completa exploração”.
Oliveira indicava, anos antes de o Uber ser fundado (2009), que o futuro do capitalismo estava em construção no Brasil, onde os trabalhadores passariam direto da informalidade para a plataformização, sem passar pela integração. Vale notar, como índice para futuras pesquisas, que a percepção de Oliveira propicia uma visão da semiperiferia sobre a totalidade capitalista em devir. A compra de tempo (inclusive a do qe) acompanha a destruição das relações salariais, as quais dão base social à democracia quando devidamente reconhecidas no arcabouço jurídico-constitucional. A precarização do trabalho, sabemos, é um dos principais mecanismos do período neoliberal. Desde a perspectiva semiperiférica, no entanto, a precarização tem sido a regra. Daí que a sociabilidade democrática na periferia sempre encontrou dificuldades para se enraizar.
Ainda que o neoliberalismo tenha provocado mudanças no Brasil e nos vizinhos latino-americanos – não é coincidência a sociedade chilena ter sido a cobaia número um –, por aqui sua obra consistiu antes em reconfigurar do que em produzir precariedade e esvaziamento democrático. Com esse histórico, oferecemos muitos vislumbres – em geral regressivos – sobre o futuro do capitalismo, caso a sociabilidade continue a ser solapada pela instabilidade permanente.
Mas se, mesmo no inferno tropical, a combinação extremista de neoliberalismo com autoritarismo tem dificuldade em se tornar hegemônica, apesar da vitória em 2018, no velho centro rico do capitalismo mundial, a derrota – ainda que provisória – da mobilização trumpista em 2020 pode ser interpretada como uma recusa a nos seguir até os círculos dantescos mais profundos. O anúncio, por Joe Biden, de um programa para salvar o capitalismo e a democracia representa sinal nesta direção.
Vista desde o Brasil, onde “a esmagadora maioria dos analistas continua a defender a imperiosa necessidade de equilibrar as contas públicas” (LARA RESENDE, 2021), a iniciativa de Biden parece antes uma tentativa de saída para os Estados Unidos do que um molde aplicável à semiperiferia. Aqui será preciso o duplo esforço de, ao mesmo tempo, mobilizar a sociedade ao redor da democracia e formar uma maioria capaz de inverter o processo de desintegração. Mesmo nos Estados Unidos, é difícil acreditar que uma saída para as crises venha a ser encontrada na ausência de uma ofensiva organizada da classe trabalhadora, o que até aqui não ocorreu, embora haja ensaios, como o levante do Black Lives Matter em maio de 2020.
O que não impede reconhecer a era Biden como uma janela para rearticular perspectivas contra-hegemônicas ao neoliberalismo, que por enquanto segue em sua fulgurante carreira destrutiva, quaranta anni fa. Caberá ao Brasil que, no momento, rejeita, segundo as pesquisas, a experiência autoritária de Bolsonaro, aproveitar bem essa janela no ano da graça de 2022.
*André Singer é professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo. Autor, entre outros livros, de O lulismo em crise (Companhia das Letras).
*Cicero Araujo é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Autor, entre outros livros, de A Forma da República: da Constituição Mista ao Estado (Martins Fontes).
*Fernando Rugitsky é professor de economia na University of the West of England Bristol (Reino Unido).
Referência
André Singer, Cicero Araujo e Fernando Rugitsky (orgs.). O Brasil no Inferno Global: capitalismo e democracia fora dos trilhos. São Paulo, Portal de Livros Abertos da USP, 2022. Disponível em http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/825.
O lançamento virtual do livro, com a presença dos organizadores e de alguns dos autores, será no dia 8 de junho, quarta-feira, das 18h às 20h, com transmissão pelo YouTube (https://youtu.be/05Ii3UFjlvw).
Referências bibliográficas
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Notas
[i] Ver, a respeito, a conferência de Paulo Arantes no colóquio “O pensamento de Chico de Oliveira: a criação destruidora”, novembro de 2019. Em: cenedic.fflch.usp.br. Acessado: 31/08/2021. Arantes fala em “barbárie administrada”.
[ii] Cristina Índio do Brasil. “Desemprego cai 13,7%, revela pesquisa do ipea” (27/09/2021). Em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-09/desemprego-cai-para-137-revela-pesquisa-do-ipea. Acessado: 12/10/2021.
[iii] Henrique Rodrigues. “A miséria de Bolsonaro: fila para pegar ossos no açougue é marco histórico” (19/07/2021). Em: https://revistaforum.com.br/rede/miseria-bolsonaro-fila-ossos-acougue/. Acessado: 12/10/2021.
[iv] Steve Bannon declarou, em agosto de 2021, que “a eleição [de 2022] no Brasil é a segunda mais importante do mundo (atrás dos eua). Bolsonaro vai enfrentar um criminoso, Lula, o mais perigoso esquerdista do mundo”. Thomas Traumann, “Steve Bannon vem aí” (13/08/2021) Em: https://veja.abril.com.br/blog/thomas-traumann/steve-bannon-vem-ai/. Acessado: 01/09/2021.
[v] Agradecemos a Paulo Arantes que, em comunicação oral (São Paulo, 2020), assinalou ser Estorvo a obra literária que melhor explicava Bolsonaro e a crítica de Schwarz a que melhor explicava o romance de Chico Buarque.
ANDRÉ SINGER, CÍCERO ARAÚJO E FERNANDO RUGITSKY ” SITE A TERRA É REDONDA” / BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)