A Constituição de 1988 é democrática, antifascista, fixou garantias solapadas pelo golpe militar de 1964 e aprimorou o funcionamento das instituições. O Ministério Público, por exemplo, recebeu inúmeras garantias asseguradas aos membros do Poder Judiciário, tais como vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos e autonomia administrativa. O MP adquiriu um status sem paradigma. Passou a ser o guardião do regime democrático, o defensor da ordem jurídica e o protetor do patrimônio público. O constituinte não fortaleceu o Parquet para alcovitar poderosos, aliados do chefe de plantão e muito menos para desmoralizar a instituição, que se fez respeitada como fiscal da lei. No Brasil o desempenho do MP nos últimos anos vem oscilando entre a perseguição, omissão ou acoitamento.
Para eleger Bolsonaro perseguiu Lula, para mantê-lo se omite ainda hoje. Na prática o MP “chapa branca” vem erodindo a maior imagem da Justiça: a estátua dos olhos vendados que não distingue amigos de inimigos e determina que a lei é para todos. A imparcialidade é indispensável para manter a ordem social e preservar os direitos de terceiros. O MP no Brasil vem sendo privatizado por interesses políticos e, agora, tem proprietários que manuseiam a lei e deformam a instituição para atingir seus objetivos pessoais.
Símbolo maior da instituição, Augusto Aras comanda a PGR por indicação de Jair Bolsonaro, que parece tê-lo como seu empregado. Nas últimas semanas o Procurador-Geral da República passou por constrangimentos. Em um dos mais vexatórios ameaçou sair no braço com outro procurador em uma sessão do Conselho Superior do Ministério Público Federal. Comportamento típico dos cavernícolas que vivem a brandir o tacape, rugir e fazer justiça com as próprias mãos como fez a Polícia Rodoviária Federal ao assassinar Genivaldo Santos com o sadismo próprio dos nazistas.
No mundo moderno quem dirime os conflitos em prol da pacificação social é o Poder Judiciário. Aras parece ter esquecido das aulas de História do Direito. Além de resolver desavenças no braço, também foi flagrado combinando a dispensa de depoimento do ministro Paulo Guedes em um processo que corre no STF. Guedes pede dispensa do depoimento, como algo natural, ao que Aras aquiesce: “Sim. Falaremos por celular e ajustaremos”. Simples assim e Guedes foi poupado do depoimento. Aos amigos tudo, aos inimigos o rigor da lei, frase de autoria incerta e banalizada atualmente.
Esse é o governo dos mundos paralelos. O capitão tem o “seu” Exército, a sua “Abin”, o seu Ministério Público. Todos desgarrados de suas verdadeiras funções institucionais para atender a interesses particulares. Em 4 agosto de 2021, Bolsonaro divulgou, em uma transmissão ao vivo, a íntegra de um inquérito da Polícia Federal que apurava supostas invasões a sistemas e bancos de dados do TSE em 2018. O xucro golpista pretendia, de novo, deslegitimar a urna eletrônica. Para Aras, o relatório da PF não seguiu os fundamentos constitucionais que dispõem sobre o sigilo das investigações policiais. Aras disse ainda que o inquérito não estava sob segredo de Justiça e não tramitava reservadamente dentro da PF. O inquérito, certificou a própria Justiça Federal oficialmente, está sob sigilo. Bolsonaro, portanto, cometeu mais um crime.
Aras também é criticado quanto ao tratamento que dá ao relatório final da CPI do Senado sobre a Pandemia. O que Aras fez são apenas os procedimentos prévios, uma marcha ilusionista e morosa. A ele cabe arquivar, apurar ou denunciar. Recentemente, a PGR também arquivou a investigação sobre a interferência de Bolsonaro no Iphan por ter interditado lojas de outro matungo, Luciano Hang, conhecido como velho da Havan. A mesma PGR, através do vice-procurador-geral, Humberto Jacques de Medeiros, pediu ao STF o arquivamento da investigação contra 11 deputados aliados de Bolsonaro por relinchos antidemocráticos. O pedido para investigar “atos contra o regime da democracia brasileira por vários cidadãos, inclusive deputados federais, o que justifica a competência do STF” foi feito pelo procurador Augusto Aras. Curiosamente, a PGR recuou e pediu o arquivamento.
Aras também engavetou as investigações contra Bolsonaro referentes à sua desastrada atuação pessoal e do governo federal durante a pandemia de Covid-19, envolvendo risco para a vida ou saúde, violação de medidas sanitárias preventivas, emprego irregular de recursos públicos e prevaricação. Em 2020, Aras livrou a cara de Bolsonaro arquivando um pedido de subprocuradores para obrigar Bolsonaro a tirar as ferraduras do obscurantismo e seguir recomendações da Organização Mundial da Saúde.
O procurador concluiu que a solicitação não tinha “cabimento” e que os integrantes do Ministério Público Federal deveriam ficar afastados “de disputas partidárias internas e externas”. Aras também foi contra a divulgação da íntegra do vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, célebre, entre outras, pelo zurro de Bolsonaro avisando que ia mexer na PF e não esperaria “foder minha família toda, de sacanagem, ou amigo meu”. Na mesma reunião o ex-ministro da Educação defendeu a prisão dos “vagabundos” do STF. Aras queria a degravação apenas dos trechos relacionados à PF. Segundo as acusações de Sérgio Moro, a partir do segundo semestre de 2019 Bolsonaro passou a usar politicamente a PF com as substituições nas superintendências: “Falei que seria uma interferência política. Ele disse que seria mesmo”, contou Moro sobre o episódio.
Em maio de 2020, o procurador-geral se manifestou contra a apreensão do celular do presidente Bolsonaro. A solicitação havia sido feita por meio de uma notícia-crime apresentada pelo PDT, PSB e PV, no âmbito da investigação que apurava a suposta interferência na PF. Naquela época, Aras afirmou que cabia à PGR instaurar diligências contra o presidente da República perante o STF, não às legendas partidárias. “Quanto às diligências requeridas pelos noticiantes, como sabido, a legislação processual não contempla a legitimação de terceiros para a postulação de medidas apuratórias sujeitas a reserva de jurisdição, relativas a supostos crimes de ação penal pública”, afirma a manifestação.
Augusto Aras criticou as conclusões do relatório “Retrospectiva 2021”, da ONG Transparência Internacional, que apontou para um “alinhamento sistemático” da PGR com Bolsonaro. Segundo o documento, há um “alinhamento sistemático da PGR com o governo Bolsonaro, com retração sem precedentes na função de controle constitucional dos atos do governo e desmobilização do enfrentamento à macrocorrupção”. Só não vê quem não quer. Os fatos são abundantes.
A blindagem extrapola a proteção penal e transborda para a institucionalidade. Enquanto Bolsonaro escoiceava a democracia e planejava uma quartelada no 7 de setembro de 2021, Aras expediu uma nota de contos de fada: “Acompanhamos ontem uma festa cívica com manifestações pacíficas, que ocorreram hegemonicamente de forma ordeira pelas vias públicas do Brasil. As manifestações do 7 de setembro foram a expressão de uma sociedade plural e aberta, características de um regime democrático”. Um grupo de 30 subprocuradores da República, perplexos, rebateu as patadas golpistas. O tom da reação foi o oposto da “festa cívica” desenhada por Aras: “Muito distante do que poderia ser considerada uma festa cívica comemorativa do Dia da Independência, tratou-se, na verdade de tristes demonstrações de desapreço aos valores fundamentais da democracia, que desonraram o sentimento patriótico de um inteiro país”, afirmaram os subprocuradores. Para o grupo, tratou-se de uma “marcha rumo ao obscurantismo, sombreada pela pregação da polarização e da intolerância”. Os integrantes da PGR cobraram “atuação firme, serena e intransigente das instâncias competentes de controle e responsabilização no sentido de refrear os atentados ao Estado Democrático de Direito”.
Quando contrariado, Aras ameaça sair no braço, surrar ou processar os críticos (jornalistas e professores) entulhando ainda mais a Justiça com peças inconsequentes e persecutórias. Além de enfrentar os adversários de Bolsonaro, a PGR trata muito bem os aliados do governo. Arthur Lira, sentado sobre mais 160 pedidos de impeachment, foi “desdenunciado”. A subprocuradora-geral Lindôra Araújo havia marcado Lira com o ferro abrasivo da corrupção em uma denúncia. Uma propina paga ao deputado, disse ela, estava provada “para muito além de meras palavras de colaboradores.” Apenas três meses depois, Lindôra mudou. Remeteu ao Supremo a “desdenúncia” e “desacusou” Lira. Apontou uma “fragilidade probatória” que não havia observado antes. O ministro Edson Fachin estranhou e argumentou que o Ministério Público não pode “desistir da ação penal”. Já para quem contraria os interesses do governo o tratamento é outro. O ex-relator da CPI da Pandemia, Renan Calheiros, teve uma denúncia “desarquivada” dois dias depois de apresentar o relatório incriminando Jair Bolsonaro por 9 delitos. A anomalia foi freada pelo pleno do STF.
O MP que protege Bolsonaro é o mesmo que delinquiu para elegê-lo. Todas as digitais das transgressões entre Sérgio Moro e MP de Curitiba foram registradas escancarando a ganância por poder e dinheiro. O ministro Bruno Dantas, do TCU, já mandou Deltan Dallagnol pagar a farra de diárias e passagens aéreas aos procuradores da Lava Jato. A ação pode tornar procuradores inelegíveis, entre eles Dallagnol. Alguns privilegiados receberam diárias e passagens para trabalhar em Curitiba. O valor da farra chegou R$ 2,6 milhões em diárias e passagens pagas entre 2014 e 2021, com direito a casa, comida e roupa lavada em Curitiba. Economicidade e impessoalidade foram ignoradas para privatizar o dinheiro público em um programa ‘vip’ de milhagens com recursos do erário. Entrou na mira do TCU a gastança dos procuradores Antônio Carlos Welter (R$ 506 mil em diárias e R$ 186 mil em passagens), Carlos Fernando dos Santos Lima (R$ 361 mil em diárias e R$ 88 mil em passagens), Diogo Castor de Mattos (R$ 387 mil em diárias), Januário Paludo (R$ 391 mil em diárias e R$ 87 mil em passagens), Orlando Martello Junior (R$ 461 mil em diárias e R$ 90 mil em passagens), Jerusa Viecili (R$ 196 mil em diárias e 64 mil em passagens).
No auge da Lava Jato, em 2018, Deltan Dallagnol, comprou um apartamento de luxo em Curitiba por R$ 1,8 milhão. Vendeu por R$ 2,7 milhões. No dia 12 de julho de 2021, Fernanda Mourão Dallagnol, esposa do “Delta”, arrematou uma segunda unidade no mesmo prédio. Pagou R$ 2,2 milhões em um leilão judicial. Dallagnol diz que comprou o segundo imóvel com a venda do primeiro. Por muito menos, a Lava Jato mandou inocentes ver o sol nascer quadrado, inclusive no rumoroso tríplex que nunca pertenceu a Lula. Mensagens rastreadas por Walter Delgatti mostraram que Dallagnol sempre quis faturar alto. Em um chat criado em 2018, Deltan e um colega discutiram a constituição de uma empresa na qual eles não apareceriam como sócios, mas as mulheres, dele e de Roberson Pozzobon: “Se fizéssemos algo sem fins lucrativos e pagássemos valores altos de palestras pra nós, escaparíamos das críticas, mas teria que ver o quanto perderíamos em termos monetários”, fabulou Deltan. Por suas atitudes extravagantes, Dallagnol coleciona condenações no CNMP e outras 2 na Justiça comum para indenizar suas vítimas. Uma hora a vaquinha para bancar as indenizações acaba.
Deltan Dallagnol também foi pilhado negociando jabaculê. Mendigou passagem e hospedagem em um parque aquático para toda família: ele, a mulher e os dois filhos, como condição para dar palestra na Federação das Indústrias do Ceará, em julho de 2017. “Posso pegar a data de 20/7 e condicionar ao pagamento de hotel e de passagens para todos nós”, disse Dallagnol. Um mês depois aconselhou Moro a se refestelar na mesma farra: “Eu pedi para pagarem passagens para mim e família e estadia no Beach Park. As crianças adoraram”.“Além disso, eles pagaram um valor significativo, perto de uns 30k (R$ 30 mil). Fica para você avaliar”, assinalou. Na conversa, Dallagnol festejou ainda impunidade: “Não sei se você viu, mas as duas corregedorias – MPF e CNMP – arquivaram os questionamentos sobre minhas palestras dizendo que são plenamente regulares”, salientou. Além das diárias e dos altos cachês, o episódio envolvendo o procurador Januário Paludo é um dos mais estarrecedores envolvendo um integrante do MP privatizado.
O doleiro Dario Messer, afirmou em mensagens trocadas com sua namorada, Myra Athayde, que pagou propinas mensais ao procurador da Lava Jato. Os diálogos de Messer sobre a propina a Januário Paludo ocorreram em agosto de 2018 e foram capturados pela PF do Rio de Janeiro e não eram objetos de delações. Nas conversas, Messer atualiza a Myra sobre os processos que respondia. Ele diz que uma das testemunhas de acusação contra ele teria uma reunião com Paludo. Depois, afirma à namorada: “Sendo que esse Paludo é destinatário de pelo menos parte da propina paga pelos meninos todo mês”. A quantia seria de R$ 50 mil/mês entre 2005 e 2013, por suposta proteção. Suspeito de ter recebido propina do próprio Messer, Paludo foi chamado a prestar depoimento por um advogado do doleiro. Aceitou e inocentou Messer em juízo. A investigação contra o procurador foi arquivada pela PGR. Outro campeão da impunidade é o sumido ex-procurador da República, Marcelo Miller. Ele atuou como agente duplo e foi acusado de ter usado o cargo na PGR e a proximidade com o chefe, Rodrigo Janot, para ajudar os diretores da J&F, como mostram as conversas entre esses executivos. O procurador deixou o MPF para exercer a advocacia que defendia os interesses da J&F. Depois fez concurso para juiz buscando a toga da impunidade.
O primeiro demitido pelo CNMP foi o ex-procurador, Diogo Castor, que pagou outdoors ilegais para promover os ‘intocáveis’ da Lava Jato, que abusaram de ilícitos para acusar arbitrariamente os alvos previamente selecionados. Outros 11 procuradores da Lava Jato no Rio de Janeiro estão respondendo a um processo administrativo no Conselho Nacional do Ministério Público. Por 8 votos a 3, os conselheiros entenderam que há elementos para apurar a divulgação de informações sigilosas contra investigados, método corriqueiro da publicidade opressiva, banalizada na Lava Jato para antecipar a culpa e desaforar os processos para condenação na mídia. O relatório do caso, elaborado pelo corregedor-nacional Rinaldo Reis, sugeriu a demissão dos 11 procuradores.
Os rastros de ilegalidades e leniências deixados pelo MP são extensos. Além da vergonha, da fratura institucional e dos riscos de golpes militares ensejados por aqueles que contribuíram, com condutas ilícitas, para a degradação da imagem de uma instituição respeitada, certamente deverão enfrentar processos cíveis e criminais, além da inevitável punição ético-disciplinar. Por medo disso os capos envolvidos nas ilicitudes buscam desesperadamente o manto da imunidade parlamentar. Nem todos eles conseguirão escapar.
WEILLER DINIZ ” BLOG OS DIVERGENTES” ( BRASIL)
— Weiller Diniz é jornalista