Pessoas ficaram emocionadas com os relatos que compõem o livro Querido Lula: cartas a um presidente na prisão, lançado pela Boitempo
Cartas lacrimogêneas
É bastante provável que o histórico TUCA, teatro da PUC de São Paulo, tenha sido palco, na terça (31), do evento que mais levou pessoas às lágrimas, emocionadas com os relatos que compõem o livro Querido Lula: cartas a um presidente na prisão, lançado pela Boitempo
Fragmento 1 – “Ao final todos saíam, era hora dela [mãe] sentar a cabeceira que dava acesso a cozinha e comia (se tivesse sobrado). … Associo teu cárcere político a sublime ‘ausência de mãe à mesa’ porque sinto tua paciência, tua sabedoria em aceitar sem odiar os teus algozes da mesma forma que mãe renunciava o direito de se alimentar sem desespero ou revolta. Quando vejo o estupro a direitos individuais que nosso injudiciário, mídia, burguesia e parte dos pobres que graças a ti hoje se sentem burgueses, lembro de onde eu vim e sei #Lula você está eternamente condenado mais não por crimes, mais por ter dado oportunidades a mim e a tantos outro como nós, estás condenado a viveres sempre em nossas mentes e corações.” (Lucas, Natal, 8 de janeiro de 2019)
Na abertura das cortinas, via-se um amplo palco com cerca de 50 pessoas, sentadas em semicírculo, um piano à esquerda e três cadeiras vazias do lado direito. Ali estavam autores e autoras de algumas das 25 mil cartas enviadas à Lula durante os 580 dias em que esteve encarcerado. Denise Fraga, Zélia Duncan, Camila Pitanga, entre outras artistas brasileiras também estavam escaladas para ler algumas cartas. Dilma, Lula e Janja passam a ocupar as cadeiras vazias, recebidos sob o calor de um público predominantemente jovem. Tem início o espetáculo dirigido pelo brasileiro Márcio Abreu e o francês Thomas Quillardet,
Fragmento 2 – “Ler estas correspondências escritas pelas mais diversas pessoas, todas com o intuito de amparar, de acarinhar, de atenuar a solidão e o sofrimento do ex-presidente em seus dias de encarceramento, nos leva a pensar na possibilidade de cruzar política e afeto. Cuidado, apreço, respeito, mesmo nas missivas que ‘puxavam a orelha do Lula’ por enganos políticos por ele cometidos. Entretanto, o ensinamento que as cartas nos oferecem é a apreensão de uma nova imagem do poder.
O poder político que fora conferido a Luiz Inácio Lula da Silva por dois mandatos consecutivos na Presidência, pela escrita das cartas, aparece sugerindo um novo imaginário de relações entre um presidente e seu povo. A deferência, o respeito, o cuidado, o afeto, a proximidade desejada e efetuada pelas mensagens enviadas ao ex-presidente, ao comandante, ao camarada, nos colocam diante de uma nova maneira de estabelecer relações com o poder. Carta alguma vaza subserviência, puxa-saquismo, pedidos de favores… E, sim, uma consciência de vidas que se cruzam, de destinos partilhados, de experiências comuns e, por isso, de confiança mútua, compromissos políticos inaugurados na dinâmica da vida.” (Conceição Evaristo, na orelha do livro)
Minutos antes do início, um alvoroço de fotógrafos e jornalistas: “vamos, vamos logo, é nossa chance de vê-lo de perto”. Saíram das cadeiras reservadas à imprensa e se dirigiram à sala onde poderiam fotografar Lula. Voltaram com feições animadas e um deles brincou com os outros “o presidente Lula olhou para mim e não olhou para vocês”. Os celulares de alguns passaram, então, a compartilhar as preciosidades registradas. As produções deles podem ser vistas nos sites e publicações da mídia independente e empresarial desta quarta. A foto reproduzida para ilustrar essa matéria é de Ricardo Stuckert, competente fotógrafo que há anos acompanha Lula.
Fragmento 3 – “Pelo ‘andar da carruagem’, daqui a pouco tu vai sair daí e vai constatar com teus próprios olhos o horror que está esse país. Mas o jogo está começando a virar. Discretamente, mas está. Quem se achava dono da opinião pública, o super herói da sociedade, já está vendo como é bom ser escrachado pela imprensa…
Aguenta, Lulão!
Aguenta por nós, por ti, por tua neta que fez um apelo emocionado nas redes sociais pedindo tua liberdade, pelo teu neto que se foi pra fazer companhia pra vó dele e tá lá jogando bola com meu filho, pelos milhões de cidadãos que tem todo direito de te amar e te seguir onde tu fores.” (Adiana, Florianópolis, 11 de março de 2019)
Zélia Duncan leu a carta da professora de língua portuguesa Ana Beatriz Arena, que ressalta que os programas dos dois governos Lula e do governo Dilma “devolveram (ou desenvolveram) aos ‘meus meninos’ da periferia a vontade de estudar e se tornar ‘doutor’”. Ana Beatriz marca que o sonho de um Brasil mais igual, plural, sem fome e sem crianças fora da escola, sofreu um revés, mas não acabou.
Zélia prossegue com a música Juízo Final, de Élcio Soares e Nelson Cavaquinho, que tem como refrão:
“O Sol há de brilhar mais uma vez
A luz há de chegar aos corações
Do mal será queimada a semente
O amor será eterno novamente”
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn“
Fragmento 4 – “Sabes, Presidente, sou um homem negro consciente de meu lugar neste país racista. Entre ricos e pobres, continuo sendo negro. Entre esquerda e direita, continuo sendo negro e na minha mão um simples pacote de pipocas pode ser confundido com drogas e justificar a minha morte. …
Sou um homem negro, e como tantos homens negros, poderia estar em seu lugar. Condenado sem provas, sem direito a ampla defesa, sem direito a nada. Pra nós isso é rotina. Pra nos, a morte é rotina. …
Hoje sou bacharel, mestre e doutor, Senhor Presidente, mas muitos gostariam que eu ainda fosse apenas o filho da empregada. …
Receba este abraço, meu querido Presidente Lula, de tantos e tantas como eu, de minha mãe e minhas tias, de homens e mulheres negras que reconhecem a grandeza do teu gesto abnegado pelo bem do povo brasileiro. Tua prisão política, Presidente, é um grito que ressoa pelo mundo; não será à toa, não será em vão.” (Rodney, Mairiporã, 25 de abril de 2019)
Lula chorou, riu e abraçou todo mundo que foi até ele. Em sua fala de fechamento do evento, dois momentos chamaram a atenção. O primeiro ao dizer que vai sim conversar com os banqueiros, mas que o incomoda profundamente que eles nunca perguntaram a ele como está a vida do povo brasileiro. O segundo foi que, ao mencionar a grande frente de esquerda em torno de sua candidatura, demonstrou-se otimista com as chances de vitória, mas advertiu “ não é só ganhar, é ganhar e governar”.
Mais enfaticamente, concluiu: “A luta não é fácil. A luta não é brincadeira. Nós estamos lutando contra gente muito ruim. Nós estamos lutando contra os matadores da Marielle. Nós estamos lutando contra os milicianos. Nós estamos lutando contra pessoas que não têm medo da matar inocentes, pessoas que não têm medo de fazer com o Genivaldo o que a Polícia Rodoviária Federal fez em Sergipe. Qualquer um de nós, ser humano, tem o direito de reagir emocionalmente e cometer uma barbárie, mas o Estado não tem esse direito. O Estado não tem. O braço armado do Estado não tem o direito de chegar atirando a esmo, dizendo que é todo mundo bandido e depois você percebe que a maioria é inocente”.
Serviço:
Título: Querido Lula: cartas a um presidente na prisão
Autora: Maud Chirio (org.)
Orelha: Conceição Evaristo
Apoio: Fundação Perseu Abramo
Selo: Boitempo
Páginas:240
Ano de publicação:2022
Nota da edição brasileira: “A grafia das cartas aqui transcritas não foi padronizada como em geral ocorre durante um trabalho de edição. Eventuais desvios da norma-padrão não foram corrigidos,palavras riscadas não foram ocultadas, nenhuma letra maiúscula ou pontuação foi alterada, a não ser nos casos em que o respeito minucioso à escrita dos missivistas poderia tornar a compreensão das cartas muito difícil.”
CELSO LUCATELLI ” JORNAL GGN” ( BRASIL)