XADREX DA ULTRADIREITA E DE LULA, A ÚLTIMA ESPERANÇA LIBERAL

Lula é a última esperança de manutenção de uma democracia liberal, expurgada de seus vícios principais. E enfrentando toda sorte de fake news, alguns endossados pelos liberais, como o de que é um radical, que se sustenta em regimes autoritários de esquerda.

Peça 1 – a falência do liberalismo

A globalização trouxe como primando central o ultraliberalismo, a influência deletéria da financeirização em todos os poros da economia e da vida social. Desmoralizou-se pelos excessos e desmoralizou, por tabela, seu principal modelo político, a democracia ocidental, especialmente após o fim do acordo de Bretton Woods, nos anos 70.

Faliu a ideia da cooperação internacional em torno dos organismos multilaterais. Seguiu-se um período de desregulação financeira violenta, que se iniciou pelos mercados de câmbio e prosseguiu inclusive no pós-2008.

Embora aliados de ditaduras, desde os anos 80 houve uma aposta geopolítica dos Estados Unidos na democracia controlada. Em uma ditadura, o jogo político e econômico depende da cabeça do ditador. Em uma democracia, depende de um conjunto de forças historicamente suscetíveis à influência do grande capital: mídia, Judiciário e Forças Armadas.

A democracia ocidental permitia um processo lento e gradual de inclusão de grupos minoritários no jogo, sob estrito controle institucional, mas apenas como fator de relaxamento das pressões sociais. Quando um movimento dos incluídos ganhava dimensão política mais forte, acionavam-se instrumentos paralelos de toda sorte – nos EUA, regras eleitorais que dificultavam o entendimento para populações de menor renda; na Ucrânia e no Brasil, golpes de Estado na forma de impeachment.

Havia uma retórica para garantir os privilégios dos financistas: a ideia da lição de casa. Se os trabalhadores aceitassem os sacrifícios impostos, se abrissem mãos dos direitos, haveria uma onda de progresso que beneficiaria a todos.

A crise de 2008 desmistificou o discurso. Mas o período de 1970 a 2008 produziu uma legião de bilionários que passaram a articular politicamente, em franca parceria com o Departamento de Estado dos Estados Unidos – conforme ficou claro na Operação Lava Jato. A democracia ocidental acabou se confundindo com o ultraliberalismo, que desmilinguiu-se de vez, arrastando consigo a imagem da globalização. PUBLICIDADE

O jogo democrático liberal passou a ser percebido como uma esperteza, cujo objetivo único era se apropriar dos grandes negócios do Estado e financeirizar o acesso a todos os direitos. 

O capitalismo – e a democracia ocidental – sempre necessitaram de válvulas de escape, períodos de redução da superexploração do trabalho, como forma de evitar as pressões sociais sobre seus privilégios, ou o fortalecimento de modelos contrários – como ocorreu na Europa a partir dos anos 20.

No Brasil, o golpe do impeachment, a ascensão de Michel Temer, a implementação do tal Pacto Para o Futuro, abrindo espaço para os grandes negócios públicos e o desmonte de redes sociais básicas, escancararam a falência do modelo. Enquanto o Ministro Barroso bailava no salão principal do Titanic ao som de hinos iluministas, o dragão já entrava pela popa da nave Brasil.

Contudo, o poder dos bilionários, a falta de pactos civilizatórios mostrou, em praticamente todos os países ocidentais, a incapacidade de superar os nós atuais através do exercício da política. Especialmente devido ao fato do mundo estar sob o comando da mais medíocre geração política do pós-guerra.

É neste quadro que emergem conceitos variados anti-globalização e anti-democracia, que acabam jogando no mesmo caldeirão políticos anti-liberais, militares, esquerda radical e direita radical.

Peça 2 – os princípios autoritários

Os primeiros atores a emergirem são os grupos da ultradireita mundial, financiados pela indústria vizinha ao crime – fabricantes de armas, máfia dos cassinos, empresas de mineração em terras indígenas, indústria do lixo -, cujos negócios são atrapalhados por regulações.

Foram os primeiros a aprender os segredos das redes sociais, da nova digitalização, e a passar aos seus liderados, permitindo-lhes vitórias políticas expressivas. 

No Ocidente, as expressões máximas foram o norte-americano Steve Bannon e o brasileiro Olavo de Carvalho; na Rússia, o filósofo Alexandr Dugin. Os três com o discurso sobre a decadência moral do Ocidente, fruto do globalismo e das novas seitas e vendo a salvação na recuperação dos valores tradicionais nos EUA (Bannon e Olavo) ou na Rússia (Dugin).

Com nuances diversas, os três sintetizam os princípios que emergem dessa onda anti-globalismo:

Nação como organismo único – trata-se de um conceito tipicamente militar, para períodos de guerra. A Nação tem que ser vista como um projeto de todo, sem tergiversações, com objetivo único de salvação. Os fatores psicossociais (termo caro ao militarismo) não podem ser atrapalhados por demandas de grupos.

Movimentos identitários – não se aceita nenhum movimento ou reivindicação que possa comprometer o conceito de projeto único. Qualquer movimento identitário é visto como tergiversação destinada a atrapalhar a busca do destino manifesto.

Tradicionalismo – especialmente em Dugin, a volta às tradições é essencial para descontaminar o país das ideias do globalismo. Por trás disso está também o projeto da recuperação dos valores ocidentais de Olavo e Bannon, o conceito do “tradicionalismo” expresso no projeto militar. “Fortalecer o espírito cívico, patriótico e os valores morais e éticos da sociedade, com vistas a recuperar a coesão nacional”, como reza o tal Projeto Nação.

Globalismo – é visto como a grande ameaça aos valores tradicionais e à autonomia das Nações. Não apenas pelo lado negativo, da financeirização e da insensibilidade para com direitos sociais, mas especialmente pelas medidas civilizatórias, em defesa do meio ambiente e dos direitos identitários. Identificam como principais agentes do globalismo a mídia e o Judiciário.

Conspiracionismo – ao lado de definições precisas sobre a influência do grande capital, há também uma tendência a considerar qualquer forma de manifestação da sociedade civil como conspiração. Para eles não existe sociedade civil, mas apenas grupos sociais sendo manipulados pelos globalistas.

Ditadura –  não há outra denominação para um modelo que não admite nenhuma forma de pluralidade no país, enxerga tudo como um projeto único, e imputa a qualquer divergência ou motivação ideológica ou influência do globalismo.

Economia – haverá espaço para a empresa nacional e multinacional, mas sob controle estrito do governo. E o aliado preferencial, o único a ser defendido, é o ruralismo, justamente porque é visto como o setor ainda não contaminado pelo globalismo.

São conceitos, muitas vezes, compartilhados pela direita e pela esquerda. Afinal, o poder do globalismo e da financeirização não é uma ficção.

Peça 3 – os novos autoritários

É a partir desses conceitos que se enxergam semelhanças amplas entre o tal plano de país dos militares, as movimentações de Aldo Rebelo, ex-deputado e ex-Ministro e os últimos movimentos de Ciro Gomes.

Recentemente, escrevi sobre pontos de coincidência entre o documento militar, o pensamento de Ciro Gomes e sua aproximação com Aldo Rebelo. Ainda no governo Dilma Rousseff, Aldo já havia se aproximado dos ruralistas e dos militares.

Ciro, como um bom camaleão, nos últimos tempos foi gradativamente adaptando seu discurso aos velhos conceitos explicitados no tal projeto militar: ataque às pautas identitárias, defesa do tradicionalismo, defesa da mineração na Amazônia.

A entrevista com a jornalista Letícia Oliveira e o cientista político Michel Gherman na TV GGN foi importante para clarear os conceitos. Letícia mapeia os movimentos de ultradireita há 10 anos, no seu portal O Coiote.

E aí emergem as diferenças principais entre Lula e este modelo. Nos projetos Ciro e militares, não há espaço para a política – e, por consequência, para a democracia. Apresentam propostas fechadas, supostamente técnicas, e não discutem viabilidade política – isto é, as negociações com os diversos grupos políticos e sociais visando viabilizá-las. Não há partidos políticos, nem movimentos sociais, nem povo. O projeto militar, aliás, pretende acabar com a saúde e a educação superior gratuita – exceto para os militares.

No projeto, há um suposto liberalismo econômico, espaço para a iniciativa privada, mas tudo submetido a um super-conselho que garantirá o cumprimento dos princípios inegociáveis, dentre os quais entram a guerra contra o globalismo, de um lado, e contra o ideologismo acadêmico de outro. O único setor a ser defendido é o rural, por ser, até agora, o menos influenciado pelo globalismo.

Ciro não chega a ser explícito assim, mas seu projeto é isso: a manifestação de vontade do seu autor, sem política e sem povo. E seu discurso anti-Lula é uma réplica perfeita das vivandeiras dos quartéis de 1964. Não é discurso para competir nas eleições.

Peça 4 – Lula e o projeto liberal

No projeto Lula, a negociação política é permanente. É o que o levou, recentemente, a dizer que a política econômica do seu governo dependerá do pacto político que conseguir montar.

Pela diferença de estilos, fica fácil a Ciro apontar as inconsistências no projeto Lula, justamente porque é um projeto em processo de construção em um regime democrático. É mais demorado e terá mais dificuldades em romper com as influências de mercado, de grupos, do tal globalismo. Aliás, há dúvidas se conseguirá romper com as principais amarras da economia, das quais o ponto central é o poder exorbitante da financeirização e o seu controle sobre o Banco Central e o orçamento.

Sua prioridade será abrir espaço para movimentos sociais, identitários, para as minorias, justamente as políticas de redução da superexploração que garantem a paz social e a sobrevida ao modelo democrátrico-liberal.

Nesse quadro, é impressionante a ignorância institucionalizada dos chamados liberais incrustados na mídia, nos “iluministas” do Supremo, procurando terceiras vias, tentando caracterizar Lula como autoritário ou aliado a ditaduras.

O que levou ao bolsonarismo foi a tentativa de avançar além dos limites do liberalismo civilizado, abrindo espaço para um desmonte brutal das políticas sociais e da própria estrutura de Estado, em nome de um “iluminismo” de araque, brandido por excelências de escassa formação intelectual.

Agora, tem-se esse paradoxo. Lula é a última esperança de manutenção de uma democracia liberal, expurgada de seus vícios principais. E enfrentando toda sorte de fake news, alguns endossados pelos liberais, como o de que é um radical, que se sustenta em regimes autoritários de esquerda.

No Brasil, o risco da liberdade é a eterna ignorância.

LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

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