Desde que a 1ª crise do petróleo (em 1973) mostrou a fragilidade da economia brasileira, dependente de 85% do petróleo importado, que triplicara de preço, e abriu um rombo nas contas externas brasileiras, tirando espaço de outras importações e exigindo enorme esforço de substituição de importações por produção doméstica e diversificação das exportações, até então muito dependentes do café, do açúcar, do cacau e do minério de ferro, com o efeito colateral de acelerar a inflação que vinha em queda, a sucessão presidencial no Brasil ganhou importância estratégica com o petróleo. E a Petrobras ganhou proeminência no centro das formulações de políticas públicas – como já pensara Getúlio Vargas, em sua criação, em 1953, depois da campanha “O Petróleo é Nosso”, com a proverbial ajuda da UDN, de Afonso Arinos, que lutou para aprovar a Lei do Petróleo.
A Petrobras acabou fomentando boa parte do parque industrial brasileiro de bens de capital e garantindo o abastecimento doméstico, que passou por momentos críticos durante a 2ª Guerra Mundial. Não por acaso, o sucessor do general Médici (outubro de 1969 a março de 1974) foi o general Ernesto Geisel, um homem com experiência no setor. Por muitos anos Geisel participou do Conselho Nacional do Petróleo (criado em 1939, tão logo as tropas de Hitler invadiram a Polônia) e presidiu a Petrobras (novembro de 1969 a julho de 1973). Na Petrobras, além de ampliar as atividades na petroquímica, com a Petroquisa, criada em 1967, montando o regime tripartite (Estado, iniciativa privada e capital estrangeiro no setor), Geisel fez a estatal entrar no grande filão da distribuição dos combustíveis, com a criação da BR Distribuidora em 1971, para brigar com a Esso e a Shell (então estrangeiras – todas, junto com a Atlantic e a Texaco, já saíram do país).
Privatização à brasileira
Como se sabe, a Petroquisa começou a ser privatizada no governo Collor e a BR foi privatizada no governo Bolsonaro. Houve uma chamada de capital, na qual a Petrobras, como num jogo de pôquer, “pediu mesa”, deixando de aportar capital, o que abriu caminho para os acionistas privados assumirem o controle. É mais ou menor o esquema que o governo pretende adotar na privatização da Eletrobrás. Por sinal, o executivo que desde o governo Temer presidia a estatal da energia elétrica e defendia a sua privatização nestes termos, Wilson Ferreira Junior, deixou a estatal em 2021 para presidir a privatizada BR Distribuidora, que mudou o nome para Vibra, e manteve, por contrato, a marca Petrobras por 10 anos. Não sem antes, é claro, o Estado brasileiro, via Furnas, subsidiária da Eletrobras, que se tornou sócia (43%), junto com CEF e a estatal mineira Cemig, da Madeira Energia S.A., da empresa formada ainda pelas construtoras Andrade Gutierrez e Odebrecht das usinas hidroelétricas do rio Madeira (RO), resolver a pendência de R$ 1,53 bilhão das debêntures emitidas pela Mesa para resolver o “imbróglio” das duas empreiteiras.
Trata-se de uma história exemplar (das muitas) em que o Estado brasileiro entra para ajudar o setor privado em nome da “economia de mercado”. Em 2007, no 2º governo Lula, quando Dilma Roussef era chefe da Casa Civil, formaram-se consórcios com vários grupos para a construção de duas usinas no rio Madeira (Jirau e Santo Antônio). Santo Antônio é hoje a 4ª usina hidroelétrica do país. Otimistas e ambiciosas as duas empreiteiras, acreditando que podiam entregar a obra antes do prazo, incluíram no contrato uma cláusula de que, caso entregassem a obra antes do prazo, teriam bônus de antecipação de faturamento. Deu-se o contrário. Um século depois, inferno semelhante ao da construção da inacabada ferrovia Madeira-Mamoré ocorreu no canteiro de obras. Com excesso de chuvas e vazão do rio, as obras se arrastaram além do prazo e o que seria bônus se converteu em multa, conforme decisão de Câmara de Arbitragem. Atropeladas pela Lava-Jato, a solução intermediária da dupla de empreiteiras foi emitir debêntures para jogar a dívida para o futuro.
Crises posteriores no mercado de energia elétrica levaram o problema para dentro da Madeira Energia S.A. Sem a solução desta pendência até o dia 6 de junho, a privatização da Eletrobras, ensaiada por Temer, em 2018, e retomada por Bolsonaro, pode micar. A saída para entregar o filé da maior empresa de energia elétrica do país para o setor privado foi o Estado brasileiro assumir mais pelanca. Na 6ª feira, o Conselho de administração da Eletrobrás aprovou o aumento de capital da Mesa. Se os demais acionistas não puderem acompanhar o aumento de capital, Furnas, a subsidiária mais lucrativa e de maior patrimônio do sistema Eletrobrás (tem ainda a Eletronorte, Chesf e a Eletronuclear, que controla as usinas de Angra, que ficarão fora da privatização) integraliza todo o aumento de capital. Ou seja, faz-se o inverso do que o governo defende para privatizar a Eletrobrás. Mais dinheiro do Estado para entregar uma empresa sem dívidas-surpresa ao setor privado.
A estratégia da política pública pode dosar o favorecimento geral da indústria e a ampliação do uso dos derivados de petróleo, a preços acessíveis, pela população, assim como pode, por distorções, beneficiar este ou aquele grupo empresarial. No governo Collor, o primeiro presidente da estatal, Luiz Octávio da Motta Veiga, saiu com menos de seis meses no cargo, por não concordar com o jogo de cartas marcadas para beneficiar o empresário Wagner Canhedo, dono de empresas de ônibus no Planalto Central, que assumira o controle da Vasp (privatizada pelo governo paulista). Além de altos subsídios em diesel e querosene de aviação, Canhedo, aliado de Collor, teria prazos dilatados para pagar os combustíveis. Motta Veiga denunciou a trama e se demitiu.
Hoje, troca-se de presidentes da estatal com menos de dois meses (três em apenas dois anos e meio, com o 4º indicado, Paes de Andrade, que não tem experiência na área, dependente de ser aprovado pelo Comitê de Pessoas da Petrobras, o que demoraria pelo menos 45 dias – sem chances de mudar a disposição do eleitorado de não renovar o seu mandato). O fato é que, além de privilegiar este ou aquele setor, a posição estratégica da Petrobras na formação de preços no Brasil leva os governos, sobretudo em anos eleitorais, à tentação de controlar (ou congelar preços) para aumentar a popularidade. Lula fez isso com o GLP e a gasolina e o diesel para se reeleger em 2006 (quando concorria com Geraldo Alckmin, então do PSDB). A mesma estratégia assegurou a eleição de Dilma Roussef (o “poste” ou “mãe do PAC”), em 2010, e a sua reeleição em 2014, com grande sacrifício para o caixa da própria Petrobras, quando o câmbio, que vinha sendo contido desde 2012, sofreu forte desvalorização em 2015 (junto com o reajuste dos combustíveis e da energia elétrica, num verdadeiro estelionato eleitoral novamente em gestação).
Vários projetos que foram abarcados pela estatal, na euforia da descoberta do pré-sal em 2005-06 (como as refinarias do Nordeste, o Comperj e as três fábricas de fertilizantes – cuja venda à russa Acron, anunciada com pompa, por Bolsonaro na 1ª quinzena de fevereiro, melou após a invasão da Ucrânia pela Rússia de Vladimir Putin) entraram no módulo amarelo quando a crise financeira mundial de 2008 derrubou as cotações do barril (antes estimados em mais de US$ 200 a partir de 2010) para a faixa de US$ 50. O Comperj, que seria um complexo petroquímico (e a construção do hoje semi-abandonado Arco Metropolitano atrairia às suas margens indústrias de transformação petroquímica na Baixada Fluminense, virou apenas uma central de transformação de gás natural (poderia produzir fertilizantes e uma pequena refinaria). Tudo somado gerou bilhões de dólares em prejuízos para a estatal.
Mas a tentação de manipular a Petrobras e os preços dos combustíveis para mascarar a inflação continua irresistível. Jair Bolsonaro sonha com isso e algumas operações de “conta de padeiro” para reverter os números negativos nas pesquisas eleitorais e tentar de ganhar nas urnas ou “na marra” do ex-presidente Lula, em outubro de 2022. Até aqui, Datafolha e Ipespe dizem não.
Olhando o passado recente
Vale revisitar o passado recente, quando a Petrobras foi usada ao extremo para garantir (com alianças políticas e empresariais de cartas marcadas, vinculadas à formação de caixa dois para financiamento de campanhas partidárias) a roda da fortuna nas urnas e nos negócios.
Em 2014, ouvido na CPI Mista do Congresso, composta por senadores e deputados, sobre a estatal (um jogo de cartas marcadas visando a enterrar as acusações de fraudes e superfaturamento em obras da estatal para garantir a reeleição da presidente Dilma, em 2014, o então diretor de Refino e Abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto Costa, depois de proclamar solenemente “senhores, a Petrobras é uma empresa séria”, admitiu que a estimativa de que a refinaria do Nordeste (Abreu e Lima, em Pernambuco) custaria US$ 2,5 bilhões era resultado de “uma conta de padeiro”. Como se sabe, depois da reeleição, apertado pelas investigações da Lava-Jato conduzidas pelo juiz Sérgio Moro e de ter a filha e o genro, que cuidavam de lavar parte das comissões que recebia, detidos por mandado da força-tarefa, o diretor abriu o bico, confessou todo o esquema de corrupção e ganhou o apelido de “Paulo Rouberto”. E a refinaria custou mais de US$ 8 bilhões (até a Petrobras desistiu de vendê-la e decidiu tocar a 2ª fase). O estouro na “conta de padeiro” – que seduzira o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, a colocar a estatal PDVESA de sócia com 40% (US$ 1 bilhão) do empreendimento, que refinaria o também pesado petróleo venezuelano – fez Chávez, que de bobo não tinha nada, sair de fininho (aqui dizia-se que a Venezuela dera “calote” no Brasil), mas a cota real da PDVESA já subira a US$ 2,4 bilhões. Entretanto, na “conta de padeiro”, havia méritos aparentes.
A primeira refinaria construída do zero no Brasil desde as primeiras grandes descobertas na Bacia de Campos (1974) seria projetada para processar o petróleo mais pesado extraído na plataforma marítima em grande quantidade nas áreas do pré-sal da Bacia de Campos e, sobretudo, da Bacia de Santos. Todas as demais refinarias são do tempo em que o Brasil era dependente do petróleo importado (mais leve). Com o tempo, várias refinarias foram sendo adaptadas para processar cargas de petróleo pesado. Mas continuava crônico o descompasso entre o consumo elevado de diesel no Brasil e a capacidade de refino da Petrobras. As técnicas de fracionamento do petróleo bruto limitam a cota de extração do diesel a bem menos que sua fatia de consumo no país. Na 1ª crise do petróleo (1973), quando o Brasil só produzia 15% do seu petróleo, houve uma solução Tabajara que funcionou. O X da questão (não resolvido até hoje) é o consumo de diesel superior à capacidade de refino do país. Trazer mais petróleo para refinar o diesel necessário geraria sobra de gasolina (superofertada no mundo) e outros derivados. Como a maior parte do preço dos combustíveis é formada por impostos, haveria enorme grita quando a imprensa revelasse que a gasolina (livre de impostos) estava sendo exportada para o Paraguai ou à África por menos da metade do preço da bomba. Isso aconteceu nos anos 70. Daí, o diesel brasileiro virou um coquetel. Caldeiras industriais movidas a diesel (foram substituídas por elétricas – o sistema Eletrobras levantou vários empréstimos externos para aumentar a geração de energia e assim substituir o petróleo importado). Sobrando a parte superior do óleo combustível no processo de refino, ele era adicionado ao diesel. Para compensar a baixa octanagem do óleo combustível, eureca: como já se adicionava 20% de álcool anidro à gasolina (hoje é de 27% a mistura) e surgia o carro com motor movido a álcool (hidratado), a gasolina que sobrava foi adicionada ao diesel, que virou um coquetel. É o único diesel inflamável (mas também altamente poluído – nos tempos recentes criou-se o biodiesel, com óleo de soja e gordura animal principalmente).
Menos inflação = a mais votos?
O desespero de Jair Bolsonaro, que não avança nas pesquisas eleitorais, enquanto a inflação escala patamares acima de dois dígitos (passou de 12%), levou o presidente a tentar tirar o peso do descontrole da inflação das suas costas. Demitiu presidentes da Petrobras e até o ministro das Minas e Energia. O último presidente, escalado às pressas, durou 40 dias. Com o apoio ostensivo do presidente da Câmara, Arthur Lira, disposto a tudo para agradar a Bolsonaro e ter a promessa de apoio à reeleição para a presidência da Casa, se Bolsonaro superar Lula em outubro, Lira conseguiu aprovar um projeto de lei que além de baixar os preços dos combustíveis, da energia das telecomunicações e transporte público, limitando a 17% a alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que é atualmente, em média de 25% (exceto transporte público, que já paga cerca de 17%, em média). Não seria um xeque mate, mas um roque de rei para deixar claro que seriam os governadores e prefeitos (os que arrecadam direta e indiretamente as receitas do ICMS) e não ele, o presidente da República o grande responsável pela inflação de mais de dois dígitos. Quem andou fazendo os cálculos, encontrou uma possível perda de receita de R$ 53/56 bilhões para os estados e algo em torno de R$ 15 bilhões para os municípios (que têm cotas-partes no ICMS). Por isso, essa brutal queda de recursos que vai privar estados e municípios de exercer funções básicas na área de educação, saúde e segurança pública, deve depender de decisão final do Supremo Tribunal Federal, se o Senado, que é a casa revisora do Congresso e que representa o interesse dos estados, não derrubar o projeto.
O lado tentador que levou o governo a cogitar de canetadas nos preços dos combustíveis (como fez na energia elétrica) foi que a inflação do IPCA pode encolher até 1,50 pontos percentuais até o fim do ano. As projeções do IPCA para 2022 estavam em 9%. Se não passar de 0,65% em maio (o IBGE divulga os números dia 9 de junho), a taxa acumulada em 12 meses já cairia dos atuais 12,13% registrados em abril, para menos de 12%. Se ficar em 7,50%, em tempos de “fakes news”, que se multiplicam em campanhas eleitorais, seria comemorado fato consumado e “mais uma realização presidencial” Como o IBGE divulga, no próximo dia 2 de junho, o PIB do 1º trimestre e a concentração da safra agrícola no começo do ano e a retomada do setor de serviços com o avanço da vacinação (tão desdenhada por Bolsonaro) apontam para um crescimento de 1,5% a 1,7% no começo do ano, o presidente pode aproveitar a “live” da 5ª feira para fazer proselitismo. Particularmente, vejo muitas pressões inflacionárias diretas e indiretas (na indústria e nos alimentos, sob ameaça de impactos da onda de fria e das geadas que chegaram antes, em pleno outono, quando o inverno começar para valer).
Sonho e realidade
Até o começo para valer da campanha eleitoral (16 de agosto), não haveria tempo de a população sentir e acreditar que a inflação tenha saído do “inferno”, como disse o ministro da Economia, Paulo Guedes. Uma coisa são os preços subirem em menor velocidade. Outra, fervorosamente ansiada pela equipe de Bolsonaro, é a queda de preços. Está aí mesmo o megarreajuste de 15,5% nos reajustes anuais dos planos de saúde para mostrar que há mais coisas entre a boa intenção e a realidade do que sonham os bem-intencionados que foram parar no inferno. Em matéria de inflação, vale lembrar Garrincha, ao ser escalado por Vicente Feola, cheio de instruções, contra a seleção soviética, em 1958: “já combinou com os russos”. Intuitivo, Mané fez o que sabia fazer ao enfrentar qualquer “João”. Em menos de um minuto estraçalhou a defesa adversária e desferiu um balaço na trave do atordoado Yashin. Final, Brasil 2 X 0, dois gols de Vavá.
Muita gente anda fazendo contas para provar que o risco de a delicada situação fiscal se agravará quando estados (que estão com superávits elevados, mas insuficientes para cobrir os grandes rombos da União, que se avolumam com a distribuição de “bondades” e reajustes salariais eleitorais) perderem sustentação de receitas do ICMS. Concordo apenas em parte.
O outro lado da moeda é que se a inflação for menor todos podem sair ganhando. Um nível menor na escalada dos preços alivia o bolso das famílias e os custos das empresas. De quebra, se a inflação for menor, o Banco Central pode parar antes do previsto a escalada dos juros. A taxa Selic está atualmente em 12,75% ao ano (batendo com a inflação). Em princípio, o Banco Central aumentaria a Selic em meio ponto dia 15 de junho e, eventualmente, mais 0,50/0,25 ponto percentual em agosto. Cada um ponto percentual de aumento dos juros gera, ao longo de 12 meses, um aumento de R$ 33/35 bilhões na gigantesca dívida pública.
Um ponto e meio a menos poderia representar uma conta fiscal de quase zero a zero nas finanças públicas (a diferença é que os estados abririam mão de receitas em benefício de economia de despesas com juros por parte da União). Em termos macroeconômicos, reduziria a renda dos mais ricos (que fazem aplicação financeiras) e os ganhos extraordinários dos bancos. Numa economia virtuosa, isso se traduziria em ganhos para os consumidores e os mais pobres. Nas velhas distorções brasileiras, pode só aumentar as margens de lucro dos empresários, sem repasse de ganhos aos consumidores. No extremo, quem acreditar na artimanha e acordar depois com a inflação e o déficit público batendo novamente à porta, vai perceber que tudo era apenas o velho “estelionato eleitoral”.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)