“Desde quando a pena de morte está legalmente em vigência em nosso país?”, questiona Jair de Souza
Na terça-feira passada, 24/05/2022, na favela de Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, foi cometida uma chacina que ceifou (até o presente momento) 26 vidas humanas, em sua imensa maioria de jovens pobres e negros, alegadamente vinculados ao tráfico varejista de drogas.
Uma operação policial previamente planejada que deixou um saldo de tantas mortes deveria estar causando um estarrecimento enorme e generalizado entre toda nossa população. No entanto, não parece ser isto o que esteja ocorrendo. Várias vozes provenientes de distintas fontes vêm sendo externadas em apoio, ou aprovação, à consecução desta matança por atacado, dentre as quais a do próprio presidente Jair Bolsonaro, a de seu amigo e parceiro de longa data, Fabrício Queiroz, assim como as de diversos representantes de igrejas que se dizem cristãs.
Portanto, cabe-nos perguntar: quem poderia ter motivações e razões para concordar com a eliminação pura e simples de 26 (até o momento) vidas de jovens pobres de nossa periferia? Muitos já devem ter a resposta na ponta da língua. Os mortos estavam vinculados ao tráfico de drogas, eram varejistas que viviam do comércio ilícito de entorpecentes naquela zona.
Sem colocar em dúvida essa afirmação, passível de questionamentos, deveríamos nos indagar: Desde quando a pena de morte está legalmente em vigência em nosso país? E, no caso de que a pena capital estivesse incluída em nosso código penal, ela incluiria a participação no comércio varejista de drogas como um dos delitos que justificariam sua aplicação? Além disso, a execução da sentença de morte poderia ser aplicada a critério dos polícias participantes da operação sem necessidade de julgamento e decisão judiciais prévios?
Quanto à possível alegação de que se tratou de um confronto armado no qual os policiais precisariam se defender para que não fossem eles as vítimas em lugar dos jovens abatidos, não há muito a comentar, visto que seria impossível explicar e justificar como um confronto armado de tal proporção viria a produzir todas suas vítimas tão somente de um dos lados dos confrontantes.
Demonstrar indignação com essa matança não deveria de modo algum ser interpretado como um apoio aberto ou velado ao tráfico de drogas. Na verdade, a motivação verdadeira vai justamente no sentido oposto. O uso e o tráfico de drogas não são eliminados, nem reduzidos, por meio da política de extermínio daqueles que servem como mão de obra de nível raso neste negócio. Pelo contrário, a experiência concreta das práticas repressivas desenvolvidas há muitas décadas revelam que a gravidade do problema vem se acentuando dia após dia, chacina após chacina.
O que parece que vai ficando claro é que aqueles que propõem, defendem e aplicam a exclusividade da repressão violenta, com o aniquilamento dos envolvidos no tráfico, podem apresentar como resultado de suas predicações exatamente o oposto do que alegam almejar, ou seja, o fortalecimento das organizações que realmente comandam e lucram com o tráfico de drogas e o consequente estímulo ao crescente consumo de entorpecentes.
É difícil de tragar a recusa a aceitar a ideia de que a produção e o comércio de qualquer mercadoria só pode seguir adiante se houver gente disposta a adquirir o que está sendo produzido e ofertado. E todos sabemos que não são os moradores de favela, nem mesmo aqueles envolvidos nas atividades do tráfico, os consumidores que sustentam as atividades das drogas. Para ser consumidor de entorpecentes é preciso ter dinheiro para tal. Os favelados decididamente não estão em condições de exercer esta função. Portanto, sem a participação de elementos das classes alta ou média alta o comércio de drogas entorpecentes não conseguiria subsistir.
Agora, vamos supor que, numa dessas operações de combate ao tráfico de drogas, uma força combinada de vários órgãos policiais invada um bairro de elite do Rio de Janeiro e abata no ato a uma vintena de jovens suspeitos de serem consumidores de drogas. Dá para imaginar qual seria a reação dos grandes meios de comunicação e de boa parte de nossa elite sócio-econômica diante desse quadro? E aqueles pastores ou padres que se dizem cristãos, aprovariam ou condenariam uma ação deste tipo?
A bem da verdade, jamais o nome de Jesus poderia ser esgrimido para justificar e aceitar a eliminação de seres humanos, menos ainda se os seres humanos em questão fizerem parte daqueles que Jesus sempre se empenhou em defender, os menos favorecidos, os mais pobres.
Por que, em lugar de concordar com o extermínio de jovens desorientados de nossas comunidades periféricas, um representante de Jesus não luta para que os mesmos possam contar com oportunidades de vida que os livrem da opção delitiva? Por que não lutar para que haja escola de tempo integral e de boa qualidade para que as crianças e jovens de nossas favelas possam receber a educação e o amparo que lhes possibilitem alcançar um futuro digno? Por que não se empenhar num combate visando uma melhoria das condições gerais de vida do povo trabalhador e, com isso, evitar que desesperança prevaleça?
Por outro lado, por que não deixar de considerar o consumo de drogas como uma questão criminal e passar a vê-lo como um assunto de saúde pública? Como os fatos e a história nos demonstram, a criminalização do uso de drogas nunca impediu que o consumo das mesmas se expandisse até chegar ao nível em que estamos. Tem servido, sim, para viabilizar a atuação de quadrilhas que lucram muito com a exploração de atividades ilícitas. Em decorrência disto, a corrupção e a chantagem passaram a ser ferramentas de uso constante, com toda a degradação social que disso deriva.
Ah, mas essas são soluções que só poderiam dar seus frutos a longo prazo, e nós precisamos de respostas imediatas. Bem, se o que estamos buscando é resolver o problema com a máxima brevidade, vamos ser obrigados a reconhecer que por meio de medidas repressivas violentas e com a manutenção da atual criminalização do consumo de drogas nenhum passo adiante foi dado. Tudo tem se tornado mais complicado a cada dia.
Em resumo, podemos dizer que nem por motivações morais, nem éticas ou religiosas, a matança indiscriminada de jovens, como aconteceu em Vila Cruzeiro, poderia ser aceita por nenhuma pessoa que nutra alguma preocupação democrática, que esteja imbuída de um espírito humanista ou que se considere seguidora dos ensinamentos de Jesus. Portanto, qualquer um que se disponha a aprovar ou a minimizar os crimes praticados contra as mais de duas dezenas de jovens no citado episódio é merecedor de todo nosso repúdio.
JAIR DE SOUZA ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)
Economista formado pela UFRJ, mestre em linguística também pela UFRJ