CARDEAL BERNARDIN GANTIN / FOTO DE ALBINO CASTRO
Durante 10 anos, entre 1978 e 1988, fui vaticanista – jornalista residente em Roma e credenciado, oficialmente, junto à Sala Stampa da Santa Sé. Cobri, como correspondente de O Globo, a morte e funeral do Papa Paulo VI (1897 – 1978), e a eleição, no Conclave de agosto de 1978, do Cardeal Albino Luciani, Patriarca de Veneza, que adotou o nome de João Paulo I. Morreria um mês depois, aos 72 anos, enquanto dormia nos aposentos papalinos. Estive presente, também, no mesmo ano, na exaustiva cobertura do Conclave que consagraria o primeiro Papa da católica Polônia, o Cardeal Karol Wojtyla (1920 – 2005), Arcebispo de Cracóvia, assumindo o nome de João Paulo II – elevado aos altares de todo o mundo em 2014.
Tive o privilégio de entrevistar, às vésperas do segundo Conclave, um dos mais brilhantes e eruditos prelados da Cúria Roma, o africano Cardeal Bernardin Gantin (1922 – 2008), Presidente do Pontifício Conselho de Justiça e Paz, nascido na ex-colônia francesa do Benin, antigo Daomé português, na capital Cotonou. A grandiosa fortaleza beninense de São João Batista de Ajudá, conhecida também como Feitoria de Ajudá, esteve sob controle de Lisboa até 1965. Gantin era, então, o primeiro sacerdote negro, proveniente das Áfricas, a ocupar tão importante dicastério na Igreja.
Recebeu-me, ao saber que era brasileiro, com entusiasmo e em bom português. “Onde o senhor nasceu no Brasil?” – perguntou-me. Respondi que sou baiano de Salvador. Ele abriu um sorriso ainda maior. “Os meus ancestrais voltaram da Bahia para a África e até hoje, na nossa família, falamos a língua de nossos avós”, disse-me, com alegria. Concedeu-me um esplêndido depoimento, no qual, entre outras revelações, descartou a possibilidade de ser escolhido para suceder a João Paulo I – como especulavam à época os jornais italianos. Foto feita por mim naquela ocasião ilustra a coluna.
A família de Gantin descende de escravos que, libertos no Brasil, após a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, retornaram ao continente do qual haviam sido arrancados e trazidos para as Américas nos malditos navios negreiros. Muitos foram os que se estabeleceram no atual Benin e conservaram, ao longo de todos estes anos, vínculos com as comunidades negras na Bahia, onde existe, inclusive, a Casa do Benin, emblematicamente instalada num solar português, no Pelourinho, no centro histórico de Salvador.
Inúmeros foram, ainda, os que se fixaram no Togo, nação colonizada pela França, e na luso-britânica Gana. Sobretudo, na cidade de Lagos, capital da Nigéria, de colonização inglesa, onde são conhecidos até os nossos dias como “brasileiros”. Há uma região de Lagos com o nome de Bairro dos Brasileiros.
Eram animistas a grande maioria dos negros aprisionados em África por inimigos islamitas e vendidos como escravos, na costa Atlântica, aos mercadores europeus. Foram, aqui, convertidos ao Catolicismo. Mas preservaram, misturadas aos valores cristãos, as velhas crenças e deuses africanos, gerando, assim, o que, com razão, chamamos de sincretismo religioso baiano. Quase todos os antigos escravos do Brasil que regressaram à África já haviam se tornado cristãos.
Alguns levaram economias e montaram negócios em África. Voltaram como mestres de obras – ofício aprendido com os lusitanos. Eram, principalmente, talentosos pedreiros e marceneiros. Ajudaram na construção de vários sobrados à portuguesa existentes em Cotonou e Lagos. Também em Lomé e Acra, respectivamente, capitais do Togo e de Gana.
Dois anos depois de meu encontro com o Cardeal Gantin, ele viria à Bahia, em 1980, causando polêmica, ao visitar um terreiro de candomblé de nome Bogum. Comoveu-se, embora fosse um altíssimo prelado Católico, ao constatar que muitos dos descendentes dos escravos, vindos do Golfo da Guiné, mantinham, nesta margem do Atlântico, as tradições dos ancestrais e o precioso idioma euê, dos fons, um dos principais grupos étnicos da África Ocidental. Gantin foi um homem incrível.
ALBINO CASTRO ” PORTUGAL EM FOCO” ( POETUGAL / BRASIL)
Albino Castro é jornalista e historiador