O rápido e extemporâneo desfile de escolas de samba deste fim de semana mostrou que o brasileiro não perdeu o pé, a cabrocha não perdeu o rebolado e o carioca conserva seu humor irreverente e cáustico de sempre. Teve vacina jacaré. Teve folião fantasiado de pílula azul. E certamente deve ter havido muito namoro inesquecível, sal da terra e acúcar do coração. Para pavor da Damares. Ainda bem. Estava fazendo falta este indulto após tanto insulto. Tanta epidemia, Tanta insanidade. Tanto Putin. Tanto butin.
A realidade renasceu na França, onde Macron, depois de vencer madame num debate sem murros na mesa, deselegâncias verbais, ignorâncias generalizadas, ganhou um segundo quinquênio sem que a França fizesse concessões ao proto-neofascismo-autárquico de sabor à putinesca. “Egalité, Fraternité e toujours Liberté”, inclusive para uso de burcas, imigração de árabes e respeito ao direito humanitário. “Allons enfants”.
No meio do debate, um recado aparentemente descabido ao Brasil, ao agronegócio da boiada e “tutti quanti”. Nada é gratuito numa cabeça arrumada como a de Macron. Ao recordar que a França, por decisão direta dele, se havia oposto ao tão decantado acordo Mercosul-União Européia que o posto Ipiranga – atualmente fechado para remoção de resíduos tóxicos – enaltecera como um resultado da diplomacia revolucionária bolsonariana, por tê-lo firmado em dois meses, após quase vinte anos de impasses. Mas, o presidente francês alertou ter o investimento europeu pré-condições para voltar ao Brasil. E para continuar importando do Brasil. E se a moda pega? Os chineses já plantam soja em terras africanas.
Logo agora que o olho gordo do agronegócio das serras elétricas se redirigia para as terras da Amazônia descabelada, para os enclaves estapafúrdios de índios impertinentes? Que maçada!
Algo me diz que Macron, pela óbvia menor dependência da França do gás e do petróleo russos, quando comparada com a aflitiva situação da Alemanha, será o fiel da balança até há pouco em mãos de Angela Dorothea Merkel. Sua óbvia identificação com o projeto da unificação européia fará dele um articulador importante no novo desenho geopolítico internacional pós-guerra da Ucrânia. Vai exigir uma melhor diplomacia tropical. Não adianta mandar flores para a primeira-dama.
O Brasil, desde os primeiros vagidos da goverlambança atual se esmerou em se associar a Trump, brigar com a China, nosso maior parceiro comercial, afagar Bibi de Israel e atacar como neo-imperialista a política de meio ambiente mundial. Pena. Não fosse tanto primarismo, o Brasil entrava em campo, ao invés de com ele afundar. Mas, como diz Depardieu a cada vírgula: “merde, alors.”
De Trump esperávamos o céu e a terra também. Doença tinhosa da dependência assumida. Irresponsável nas questões climáticas, deixou-nos a derrubar árvores na Amazônia, com “gusto“ até que as próprias autoridades americanas embargaram a madeira contrabandeada do Brasil. Não há como entender esses gringos, definitivamente.
Para ingenuamente acelerar nosso processo de entrada na OCDE – outra miragem de Guedes – ganhamos um tapinha nas costas e entregamos de graça nosso “status” de país em desenvolvimento na OMC, com prejuízos para nossa indústria nacional de pequeno e médio porte. De qualquer modo, em fase de extinção diante do santo milagreiro denominado cadeias de valor global, que nos deixou sem máscaras, filtros e oxigênio na Pandemia. Trump, a bem da verdade, nos enviou toneladas de cloroquina, encalhada nos States. Quanta sensibilidade.
Ainda por cima e apesar de toda a mafiosa conspiração contra as eleições americanas, Trump as perde. E há suspeita de maus feitos eletrônicos na eleição americana anterior com a ajuda da mãozinha santa de quem? Sim, ele, Putin, a quem Trump só falta prestar continência. E quem está no comando desta mixórdia? Ele, o indultado, Bannon – não por ter-se atrevido a insultar a Suprema Corte – nem vem que não tem. Mas por ter embolsado uns caraminguás das velhinhas americanas que contribuíram para a construção do muro na fronteira com o México, de onde viriam os bárbaros imigrantes para as estuprarem.
Este Bannon não é aquele gênio da lâmpada que prestou assistência técnica à campanha presidencial no Brasil? Não é o mesmo sobre o qual pesam acusações de manuseio de plataformas eletrônicas? Não é o mesmo que teve sua empresa proibida de atuar no Brasil agora na campanha de 2022? Pelo Superior Tribunal Eleitoral? Caramba, é tudo tão confuso… Sei apenas se pretender enfiar o Brasil numa entente com Hungria, Turquia, Filipinas e outros gigantes de barro.
O que aconteceu nos Estados Unidos da América deveria ser objeto de estudo desapaixonado no Brasil. Como um óbvio desajustado mental chega à presidência da maior potência nuclear do mundo? Não foi por falta de aviso, porque a Associação de Psiquiatria dos Estados Unidos publicou livros dissecando os riscos passíveis de ocorrer com uma personalidade narcísica como Trump. Bem fez Obama. Discretamente, após a eleição de Trump criou mecanismos acautelatórios para evitar um tresloucado início de guerra nuclear disparado pelo presidente da República. Com isso, Obama reduziu seus próprios poderes, mas colocou Trump sob um sistema de controle mais rígido que permitisse a humanidade dormir mais tranquila.
É sinal de tempos tempestuosos que se exija exame psicotécnico para um motorista de ônibus e não se faça o mesmo para um candidato à Presidência da República. Brincamos demais com a paciência e a inteligência de nossos anjos da guarda. Como não desconfiar da sanidade de quem em sua folha corrida apresenta histórico de tentativa de atos afins ao terrorismo político? Convenhamos: as defesas de nosso sistema democrático ficam muito aquém dos possíveis malfeitos de inteligências doentias ou pervertidas e de solidariedade corporativa. O problema maior do Napoleão de hospício é o de que para ele “Waterloo” é uma alucinação de seus inimigos.
E às vezes, a questão é de simples lógica elementar. Como achar normal que se queira meter o bedelho no voto eletrônico, em nome da transparência, e ao mesmo tempo se queira selar por cem anos uma agenda de visitantes ao presidente da República? “Ça me dépasse”, diria Le Pen, pére.
E o novo presidente eleito dos Estados Unidos da América todo dia perguntava a seu chefe do Cerimonial: “E ele, já telefonou”? A turma ficava constrangida e diz ser culpada a rede de telecomunicações prometida aos chineses. As relações de Estado perderam sua coluna vertebral e passaram a ser pessoais, familiares, no estilo Soprano. Uma descortesia cara, convenhamos. Infantil, ou talvez demencial. De qualquer forma, cuidadosamente anotada pelos embaixadores a enviar relatórios salpicados de ironia e desprezo.
Em meio à corrida para a reeleição, à guerra da Ucrânia, a situação econômica internacional tende a piorar. A inflação é geral, mas aqui, de dois dígitos. A classe média come sem metáfora o pão que o diabo amassou com luvas onerosas. O trigo, alternativo, vem da Argentina. Quem sabe, “los hermanos”? Mas, o Fernandes também já conheceu o desprezo presidencial, contrapartida do enlevo com o primo de sangue Macri. Às vezes tenho a sensação que o Instituto Rio-Branco tem que riscar a “realpolitik” do currículo e incluir como matéria eliminatória para graduação dos novos diplomatas a “hepatopolitik”, novo nome da interdependência caipira.
Fora isso, o resto vai bem. Os helicópteros derramam a derrama. O ministro da Saúde decretou que a gente pode esquecer a Covid-19. Não há corrupção em todo o território nacional. Tudo azul debaixo do Cruzeiro do Sul.
No ano do bicentenário da Independência, o Brasil deixou finalmente de ser o país do futuro. Em nome da desigualdade endêmica, adentramos sobranceiros a volta ao passado colonial. O progresso, o desenvolvimento social, a pesquisa científica o inominável bem-estar do povo são perigosamente subversivos. A divisão hierárquica dos poderes da República é estorvo daninho a aspirações autárquicas. Estão flertando com “a noite dos longos punhais”.
Depois se entrega a Petrobras, teimosa em dar lucro para o Estado. Fá-lo-emos, em nome do teto de gastos, filho espúrio do gerente da mesóclise. E nossas cidades serão o paraíso dos sem-tetos. Sem lenço. Sem documento. Num país tropical, abençoado por um deus longe de todos.
Só nos resta votar, em outubro e resolver no primeiro turno. Podes crer, brother. E viva a Anitta.
ADHEMAR BARADIN ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)
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Em Tempo: “Nous avons tant à faire. La guerre en Ukraine est là pour nous rappeler que nous traversons des temps tragiques où la France doit montrer la clarté de sa voix et bâtir sa force dans tous les domaines, et nous le ferons”. (Emmanuel Macron 24/04/2022) *
Embaixador aposentado
* [tradução: “Temos muito o que fazer. A guerra na Ucrânia está aí para nos lembrar que estamos passando por tempos trágicos em que a França deve mostrar a clareza de sua voz e fortalecer sua força em todas as áreas, e assim o faremos”.]