A NOVA REPÚBLICA SOB A LEI DO MAIS FORTE

CHARGE DE NANDO MOTTA

“Apenas a urgente união dos mais amplos setores democráticos do país, apoiados por massiva mobilização popular, poderão parar Bolsonaro”, escreve Carla Teixeira

A crise institucional que assola o Brasil ganhou contornos mais definidos quando o presidente Jair Bolsonaro (PL) concedeu, na quinta-feira (21), feriado de Tiradentes, perdão de pena ao deputado federal Daniel Silveira, condenado pelo STF (Supremo Tribunal Federal) a 8 anos e 9 meses de prisão, em regime fechado, por ataques aos ministros da Corte. Neste país não se tem descanso nem no feriado! Morre-se de tudo, menos de tédio. Arvora-se os anúncios de “golpe de Estado” com a imprensa dando os capítulos da novela que se tornou a Nova República, cada dia mais parecida com a Velha.

 O conceito clássico considera “golpe de Estado” movimentos para a tomada de poder que contam com o protagonismo de militares. Tal definição é a que permite muitos intelectuais reconhecidos não considerarem o impeachment contra Dilma Rousseff como um golpe de estado. No século 21, os fatos evidenciam o quanto esta definição é limitada por não interpretar os golpes dados por setores dos poderes Legislativo e Judiciário, e mesmo a combinação desses grupos com outras facções e organizações da sociedade.

 Apesar do forte componente militar, o golpe de 1964, por exemplo, contou com a decisiva participação do Senado, que declarou “vaga a presidência da República”, e do STF, cuja sessão na madrugada do dia 3 de abril empossou Raniere Mazzili na presidência. Enquanto a nação dormia, tenebrosas transações da burocracia estatal subtraíram a pátria mãe e condenaram seus filhos à perseguição política, prisão, tortura, assassinato, desaparecimento ou exílio durante 21 anos de ditadura militar.

 A imprensa corporativa, os partidos de centro/direita, a Igreja Católica, grupos e organizações conservadoras apoiaram a violência para conter um imaginário avanço comunista. Tratou-se de uma ação sinérgica de amplos setores da sociedade brasileira.

 Já no século 21, os golpes em Honduras (2009), contra Manuel Zelaya, e no Paraguai (2012), contra Fernando Lugo, tiveram semelhanças assustadoras com o golpe no Brasil (2016), contra a presidente Dilma Rousseff. Aqui, frações do Legislativo, setores do poder Judiciário, do Ministério Público, das Forças Armadas e a grande Mídia Corporativa apoiaram o impeachment em nome do “combate à corrupção”. Na prática, o que se viu foi a instalação de um governo de corruptos como Michel Temer, Gedel Vieira Lima et caterva.

 Como apontouÁlvaro Bianchi (2016), um golpe de Estado é uma mudança institucional promovida sob a direção de uma fração do aparelho de Estado que utiliza para tal de medidas e recursos excepcionais que não fazem parte das regras usuais do jogo político. O impeachment de Dilma sem crime de responsabilidade abriu a porta do arbítrio que permitiu a entrada do bolsonarismo como força política nacional que devora as instituições da República por dentro, como um verme.

 De focinheira há dias, Daniel Silveira voltou a latir recentemente: recusou-se a usar tornozeleira eletrônica, acampou no Plenário da Câmara e atacou o ministro Alexandre de Moraes às vésperas de ser julgado. Fica clara a intenção de agitar e mobilizar as hordas bolsonaristas contras as instituições (principalmente o STF), mantendo a tensão entre os poderes enquanto o Executivo, apoiado pelo Legislativo (em sua maior parte, cooptado pelo orçamento secreto) e pelo militares (armados com cargos, verbas, viagras, próteses penianas e gel lubrificante íntimo), se sobrepõe às instituições submetendo o povo à fome e à miséria causadas por um governo de facínoras descontrolados.

 A graça concedida por Bolsonaro gerou grita nos mais amplos setores da sociedade. Juristas, especialistas, organizações e editoriais da grande imprensa condenaram a ação do Executivo. Em contrapartida,ministros do governo e militares da alta patente estavam eufóricos. Em particular, os integrantes do que se convencionou chamar Partido Militar, que disputam com o Centrão o controle da máquina governamental. Os milicos não apenas deram aval ao indulto como comemoraram a decisão.

 Vale lembrar que o próprio general Braga Netto, cotado para ser vice de Bolsonaro, ameaçou as eleições de 2022 e muitos Oficiais apoiam as investidas do presidente contra as urnas eletrônicas. Neste domingo (24), o ministro do STF, Luís Roberto Barroso, chegou a afirmar que as forças armadas estão sendo orientadas para atacar o processo eleitoral brasileiro e tentar desacreditá-lo”, argumento prontamente rechaçado em nota divulgada no mesmo dia pelo Ministério da Defesa, chefiado pelo Comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira.

 No centro do descontentamento militar com o STF estão as anulações das condenações contra o ex-presidente Lula e de outras decisões da Operação Lava Jato, mas também a recente divulgação dos áudios do Superior Tribunal Militar, com seus ministros reconhecendo as torturas cometidas nos porões da Ditadura. Para os militares, os áudios prejudicam a imagem das forças armadas, cujos Oficiais estão envolvidos pessoalmente com o genocídio promovido pela (in)ação do governo que participaram durante a pandemia.

 Em grupos bolsonaristas nas redes sociais, antes mesmo da condenação de Silveira, já se sugeria a possibilidade do presidente da República conceder a graça institucional. Ou seja, Bolsonaro queria a condenação de Silveira para afrontar o STF contando com o apoio do Legislativo –Pacheco fez o Poncius Pilatos e já avisou que o Congresso não vai se meter nisso– e das Forças Armadas. Assim, domina a pauta, deslocando a discussão do tema da inflação, desemprego, fome e carestia para a hipótese de que haverá golpe contra as eleições. Ao fazer valer a lei do mais forte, o bolsonarismo coloca a Nova República de joelhos.

 Nesta cena, Jair é “o mito que vai libertar o Brasil da ditadura imposta pelo STF”. Daniel Silveira, o violento bombadão, é a própria semiótica do mais forte. Se torna o mártir no dia de Tiradentes: ambos heróis contra o arbítrio. As instituições não reagirão à decisão de Bolsonaro. O Supremo e o Parlamento não irão nos defender. A extrema-direita, antes acossada, sai fortalecida. Este país não é para amadores.

 Mas, por que as instituições não reagem? A resposta é simples. Houve um golpe de Estado, em 2016. Após uma situação de excepcionalidade institucional o que passa a valer é a lei do mais forte, igual era na República Velha coronelista do milênio passado. Hoje, Jair tem as armas, as forças armadas, as milícias e as polícias, por isso faz o que quer e nada acontece. É ingenuidade – para não dizer má-fé – julgar que vivemos qualquer normalidade institucional após 2016.

 A eleição de 2018 foi um acidente de percurso para os grupos que apoiaram o impeachment de Dilma. Sem chances de vitória eleitoral, lançaram-se nos braços do capitão incensados pelo antipetismo (a nova roupa daquele anticomunismo dos anos 1960). Quatro anos depois, esses mesmos grupos, comprimidos na inexpressiva candidatura de terceira via, tentam tirar os bolsonaristas do poder com ameaças de prisão e humilhações públicas. A radicalização se torna a saída elementar da extrema-direita na cruzada antissistema.

 Aviolência aumentou e tornou-se parte da vida política institucional– agressões e perseguições contra pesquisadores, professores, jornalistas e mesmo o covarde assassinato de Marielle Franco. Ao tentar justificar o injustificável (o golpe contra Dilma), passamos a tolerar o intolerável (o bolsonarismo, seus discursos e práticas).

 O STF, que em 2016 permitiu a abertura de um processo de impeachment sem crime de responsabilidade, em 2022 paga o preço de sua omissão. À época, cooptados pelos interesses das poderosas forças econômicas, os ministros se acovardaram para garantir seus privilégios num país de famintos e miseráveis. Mantiveram-se impassíveis diante do golpe e se regozijaram quando puderam usufruir do aumento de seus salários após a saída de Dilma (vale lembrar que ela havia vetado a proposta de aumento). Fato é que o STF está colhendo o que plantou. Todavia, quem paga o preço mais alto é o povo que hoje sofre com a inflação, o combustível dolarizado, o encarecimento dos alimentos, o aumento da pobreza e da fome.

 As instituições que deveriam proteger a sociedade da “lei do mais forte”, se renderam ao poder do capital. Como resultado, temos o Brasil governado pelo crime organizado que, armado e fardado, flagela os brasileiros enquanto desafia a burguesia branca que quer tirá-lo do poder. A graça institucional concedida por Bolsonaro é clara ao dizer para as instituições da República: “o bolsonarismo é mais forte do que vocês. Querem o poder de volta? Venham tirar”. Apenas a urgente união dos mais amplos setores democráticos do país, apoiados por massiva mobilização popular, poderão parar Bolsonaro. A vitória da democracia em 2022 será definida nas urnas, mas principalmente nas ruas.

CARLA TEIXEIRA ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Membro do Conselho Editorial da Revista Temporalidades – Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

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