Gil chega à Academia Brasileira de Letras como figura referencial, não apenas na música, mas na cultura, na vida.
Gilberto Gil entrou em minha vida lá por 1965, quando troquei o bandolim pelo violão. Interrompi o curso de científico em São João da Boa Vista e fiquei seis meses em casa sem fazer nada. Ou melhor, tirando músicas no violão e praticando o pebolim e o tênis de mesa.
Sua primeira música que tirei foi “Procissão”.
Inspirado nela, tentei meus primeiros passos como compositor e compus uma, no mesmo estilo, que começava assim: “a minha mãe me falou / conselho de mãe sempre é sábio / trabalha, trabalha, filho / desde o amanhã até o anoitecer / que o padre disse que há um céu”. Obviamente, no final não havia céu.
Era bem fraquinha. Apresentei em um almoço de família, na presença de meu avô Issa, que viera de São Paulo. No final, ele me abraçou, comovido:
Mas, dali para frente, era um Gil por dia. A segunda música que tirei, apanhando no autodidatismo do violão, foi a mais bela: “Água de Menino”. E apanhando da harmonia, porque sempre havia uma volta a mais na melodia.
Varava dias tocando aquele beleza de música e me comovendo com a história.
No ano seguinte retomei os estudos do clássico em São João da Boa Vista, mas ai já armado de muitas composições e paródias, sobre o bispo que proibia bailes, sobre a professora de Francês, a de Inglês. Nos fins de semana, com meu amigo Luiz Antonio “Explosivo” Ricci,Emílio, Joaquim Papagaio, ocupávamos uma mesa do bar do Clube Recreativo para mostrar as músicas.
São João tinha uma Faculdade de Direito de fim de semana. Em uma das rodadas apareceu um aluno, funcionário público de São Paulo, que disse que conhecia os baianos. Gil, aliás, se não me engano era funcionário da Gessy Lever em Valinhos.
Convidou-nos a ir a São Paulo porque ele providenciaria um sarau com todos os baianos.
Lá fomos eu e o Explosivo. Chegamos, ele nos levou à sua casa para um café, onde fomos muito bem cuidados por sua esposa. O sarau seria à noite em uma garçoniére. Uai, mas como assim?
À noite, fomos para lá com nossos violões e era uma festinha barra com uns tipos bem estranhos. Havia colegas de repartição, uma moça que fazia dublagem de voz de criança em comercial, e um clima geral de decadência que assustou os dois jovens candidatos a compositores.
Lá pras tantas, achei um quarto com uma cama vazia e resolvi tirar um cochilo até perto da hora do primeiro ônibus do Cometa. De repente, a dubladora caiu por cima de mim. Levantei, chamei o Explosivo, e fomos a pé para a Rodoviária – o apartamento ficava nas imediações. Enquanto esperávamos a hora do guichê abrir ficamos andando pela rua, molhada pela chuva recente, como se a água lavasse o bolor emanado do apartamento, e pensando nas nossas namoradinhas de São João.
Gil e os baianos continuaram presentes em nossa vida musical. No Festival da Record seguinte, fomos todos para a casa do Celso Sanseverino, um jovem advogado casado com uma fazendeira local. Enchi a cara torcendo por “Domingo no Parque”, de longe a música mais completa, uma ópera rústica.
Depois, as estradas abertas por eles e pelos maestros paulistas – Rogério Duprat, Damiano Cozzela, Júlio Medaglia – continuaram nos inspirando a romper com a tradição na música.
Depois, o jornalismo engoliu minhas pretensões de compositor e voltei a encontrar Gil apenas quando se tornou MInistro, cercando-se de um grupo fanático de visionários, que produziu a mais audaciosa política cultural que este país já testemunhou.
Fui convocado por Juca Ferreira para ajudá-los na longa missào. O Ministério criou conselhos de músicos por todo o país e, agora, haveria uma reunião em Brasilia para definir a política para o setor. E me convidava para falar no evento, já que há anos escrevia sobre o potencial econômico e cultural da música brasileira com os novos meios de comunicação.
Ao mesmo tempo, pediram que montasse uma estrutura de pesquisa para levantar o PIB musical brasileiro. Conversei com um pessoal da Poli, mas a burocracia do Ministério impediu que o trabalho avançasse.
No Seminário, os músicos – especialmente a bancada carioca – insistia que a parte mais relevante da cadeia produtiva da música é o músico. Fui obrigado a rebater. No Brasil, músico de qualidade é matéria prima abundante. O que falta são especialistas no negócio da música.
Sugeri a criação de uma plataforma com todo tipo de produção musical brasileira. Apple e outras ainda não tinham montado suas plataformas. Mostrei que havia uma juventude mundial que se integraria pela Internet. O Brasil possui todos os valores capazes de encantar a moçada: o despojamento, a sensualidade, a Amazonia, os festejos. E as novas tecnologias privilegiavam duas características essenciais da cultura brasileira: o colorido e a música.
O desafio seria montar brigadas de jovens dominando o inglês, entrando nas novas redes sociais – na época, a rede por excelência era uma do Google, que desapareceu logo depois – e espalhando os valores brasileiros.
Era muita coisa para pouco tempo de mandato. Gil e seus amigos distribuíram material audiovisual por todo o país, para quilombos, tribos indígenas e montaram encontros inesquecíveis com esses grupos. Mas, depois saíram, e não
houve continuidade.
Gil chega à Academia Brasileira de Letras como figura referencial, não apenas na música, mas na cultura, na vida.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)