OS MÉDICOS JUDEUS NA CORTE DE LISBOA

  • Harari é um dos clássicos sobrenomes dos judeus sefarditas, isto é, provenientes da Península Ibérica. A palavra, em árabe, significa algo como povo da montanha, possivelmente, tradução quase literal do original Monteiro. Um dos Harari notáveis de nossos dias é o pensador israelense Yuval Noah Harari, de 46 anos, autor de obras como “Sapiens” e “Homo Deus”. Outro Harari querido, para mim, é o médico cardiologista Luciano Harary, grafado com y, 61 anos, de família de portugueses judeus, que, expulsos da Pátria das Quinas, em 1497, pelo famigerado édito de Dom Manuel I, percorreriam uma prolongada diáspora através do Mediterrâneo Oriental até se estabelecerem na cosmopolita Aleppo, segunda cidade da Síria.
  • Os Harary trocariam Aleppo pelo Cairo, capital do Egito, no século XIX – como fizeram muitos sírios e libaneses, à mesma época, devido às perspectivas de bons negócios com a abertura, em 1869, do Canal de Suez. Deixaram o Cairo em 1956, quando, após conflito do Egito com Israel, os judeus passaram a ser perseguidos pelo regime nacionalista árabe de Gamal Abdel Nasser (1918 – 1970).
  • Foi, assim, ao fugir de novos perigos, que os Harary chegariam a São Paulo – onde, em 1960, nasceria Luciano. Há quatro anos, depois de Portugal e Espanha reconhecerem, finalmente, a cidadania dos judeus originários da Península Ibérica, ele recuperou a nacionalidade lusitana – resgatando, desse modo, cinco séculos nos quais viveram um desterro quando eram, frequentemente, qualificados como ‘apátridas’.   
  • A nacionalidade portuguesa readquirida pelo meu amigo retoma a memória de inúmeros médicos sefarditas que, ao longo da História, cuidaram da saúde dos monarcas lusos. O maior deles foi, sem dúvida, Abraão Zacuto (1452 – 1515), cujo retrato ilustra a coluna, nascido na espanhola Salamanca, médico de Dom João II (1455 – 1495), o Príncipe Perfeito. Era também matemático e astrônomo. Escreveu o célebre “Almanaque Perperuum”, manual das matemáticas, que serviria como base na configuração da carta náutica, feita também por Zacuto, usada por Cristóvão Colombo (1451 – 1506), para alcançar as Américas, e por Vasco da Gama (1469 – 1524), na rota à Índia. 
  • Outro doutor hebreu da Corte portuguesa foi o lisboeta Isaac Abravanel (1437 – 1508), médico do Conde de Bragança, Fernando II (1430 – 1483), que, ao envolver-se com seu paciente num complô contra o Príncipe Perfeito, foi condenado à morte. Conseguiu, porém, escapar para Istambul e se tornou iátrico do Sultão turco-otomano e do Grão-Vizir da Sublime Porta. Um judeu da Covilhã, José Vezinho (1450 – 1550), discípulo de Zacuto, foi galeno dos soberanos João II, Manuel I e João III (1502 – 1557).
  • O mais famoso dos médicos europeus do século XVI, entretanto, foi outro sefardita, o alentejano Garcia de Orta (1501 – 1568), que se notabilizou nos territórios da Índia portuguesa – por relevantes achados na medicina tropical, bem como na botânica e farmacologia asiáticas.    Os doutores judeus, a partir da implantação em Portugal da Inquisição, no final do século XV, começaram a emigrar para países da Europa e do Oriente Médio.
  • A Corte de Lisboa perdeu valiosos médicos e cientistas por centenas de anos. Mas, em 1949, seria premiado com o Nobel de Medicina o celebrado neurocirurgião português, António Egas Moniz (1874 – 1955), ‘cristão novo’, de origem sefardita. Ele desenvolveu a angiografia cerebral, em 1927, descoberta que revolucionaria a medicina com a cirurgia dos tumores na cabeça. Era descendente de um ilustre sefardita lusitano da Idade Média, Egas Moniz, o legendário Aio, principal conselheiro de Dom Afonso Henriques (1106 – 1185), fundador da nação portuguesa. A proeza do descendente de Aio deu início à reconciliação de Portugal com sua própria História.       

ALBINO CASTRO ” PORTUGAL EM FOCO” ( BRASIL / PORTUGAL)

Albino Castro é jornalista e historiador

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