Talvez poucos se lembrem, mas o fotógrafo Orlando Brito, que nos deixou na semana passada, aos 72 anos, em Brasília, não apenas clicou fatos históricos. Ele também fez história. Graças ao seu feeling de repórter fotográfico (fez jus a esse título como ninguém), a anistia foi concedida “na marra”, sem mais delongas, a despeito dos protestos vindos dos militares, em 27 de agosto do ano de 1979.
Um gesto de ousadia de Brito – era como nós, os amigos, e colegas o chamávamos -, precipitou o anúncio da Anistia. Em uma reunião na casa do então ministro da Justiça, Petrônio Portela, que esqueceu sobre o sofá o projeto com anotações e alterações do ditador Ernesto Geisel, rascunhadas à mão, Brito o pegou e o colocou dentro da camisa. O Globo estampou a proposta no dia seguinte e a anistia virou “fato consumado”, como define no relato detalhado que fez para mim, por telefone, em agosto de 2021. Num encontro posterior, com Portela, já certo de ter sido ele, o “ladrão” do projeto, o ministro lhe confidenciou, entre risos: “você é o primeiro anistiado”.
O ministro da Justiça, Petrônio Portela, acabara de visitar no Rio de Janeiro, em 22 de julho daquele ano, um grupo de presos políticos. Faziam uma greve de fome, reivindicando a anistia, com o reforço das ruas, repletas em todas as capitais, onde ecoavam os gritos: “Anistia ampla, geral e irrestrita!”
O momento evidenciava a necessidade de se tomar uma providência a respeito do tema, que estava sendo discutido entre a presidência de Ernesto Geisel, o ministério da Justiça e a cúpula militar. Cabo-de-guerra talvez seja a melhor definição para a batalha travada ali. Portela, no entanto, depois do que viu e ouviu, rascunhou o projeto e o mandou a Geisel, que lhe fez algumas emendas, mas aguardava o sinal da caserna, que não queria a concessão de modo algum.
A Lei – que ao ser promulgada tornou-se a 6683 -, concedia anistia aos presos políticos, aos banidos do país pela ditadura e aos atingidos de alguma forma por seus atos, (como funcionários públicos que perderam suas funções). Para os “milicos”, era um pesadelo ter de volta os que passaram pelas torturas mais odiosas, contando o sofrimento nos porões. (O que acabou acontecendo).
Durante 55 anos Brito percorreu os corredores do poder, clicando momentos decisivos da política nacional e captando momentos de intimidade e reflexão dos mais importantes políticos, como a fotos de Ulysses Guimarães descendo a rampa do Planalto, pela última vez e o ocaso do ex-presidente Itamar Franco, quase em agonia, em contraluz que acentuava um momento de solidão, ou despedida. Itamar morreria dali a três dias. Brito morreu depois de uma complicação na cirurgia que fez, lutando contra um câncer, distante do luxo dos palácios que tanto frequentou. Na conversa, ele contou que estava preparando um livro sobre os seus 55 anos de carreira, ao qual daria o título: “Do general ao Capitão”.
Desde que recebi a notícia da partida de sua partida, eu comecei a catar esta gravação, que sabia ter em algum lugar. Levei uns dias até encontrá-la. Finalmente, revirando os arquivos, eis o amigo Orlando Brito, conversando comigo dias antes do aniversário de 42 anos da Anistia, no ano passado. Eu iria participar de uma live sobre o tema e quis resgatar o episódio em que ele narra a sua maior e mais importante “travessura”.
Eram tempos difíceis, sem celular, com o SNI no cangote dos jornalistas e grampeando redações. A transmissão, para a matriz de O Globo, no Rio, é uma verdadeira epopeia, que ele descreve com gosto, consciente de que, em tempos de exceção, atitudes transgressoras são necessárias. Obrigada, Orlando Brito. (Ouçam o áudio em que ele conta como “roubou” o projeto da anistia, tornando-se, ele, o primeiro anistiado).
DENISE REIS ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)