Trabalhei com muitos fotojornalistas notáveis. Nenhum outro tinha a predisposição do Brito, ao juntar premonição e técnica, para a construção da notícia
Como explicar que Orlando Brito tivesse alcançado o nível próximo a Henri Cartier-Bresson ou Robert Capa sem ter estudado Fotografia ou Jornalismo, sem ter o manto protetor da Europa sobre seus ombros, sendo um menino pobre da Represa Bico da Pedra, aprendendo sozinho a sua arte, rigorosamente autodidata?
A resposta é que Brito foi essencialmente intuição, e a intuição é a companheira inseparável e determinante dos grandes fotojornalistas. Ela se comparte em premonição e técnica; a premonição belisca para avisar que vai acontecer; a técnica prepara instantaneamente a abordagem de cobertura.
A disciplina permanente, em três momentos, vira método. Lição 1: estar sempre atento a seu entorno, de olho no personagem ou no ambiente que pode virar notícia; lição 2: educar o sexto sentido para a disciplina não afrouxar; lição 3: debulhar diariamente o método empírico que contorna hoje o erro de ontem.
Intuição, disciplina e método, portanto, são as respostas mais imediatas e também as mais precisas. Mas no caso de Orlando Brito não era só isso. Ele tinha também a qualidade inata para um artista do Fotojornalismo – o olho santo. Aquele olho que enxerga o que os outros ainda não viram. Muitas vezes, o olho que antevê. Sabe James Bond sacando a PPK para matar Goldfinger? Era assim que ele emppunhava a Leica ou a Canon, já com abertura e velocidade afinadas, enquadramento perfeitamente delineado, direção bem ajustada e sabedor da hora milimétrica de apertar o obturador.
Depois vem o perfeito domínio da luz e seus efeitos, suas (dela, a luz) graças e desgraças, a percepção contemporânea do chiaro-oscuro sistematizado por Caravaggio (ou terá sido por Josep de Ribera?). Dominar a luz é um subproduto da intuição, um pouco no ramo “técnica”, um pouco na caixa “sentimento”. Brito dobrava a natureza para, mudando o enquadramento, a abertura ou a velocidade alterar a luz e ter, sim, a luz que ele queria, não a que a natureza lhe concedia.
Trabalhei com muitos fotojornalistas notáveis. Nenhum outro tinha a predisposição de Brito para a construção da notícia. Ele sempre teve movimentos contidos e serenos, mas o olho não parava; girava nas órbitas, vasculhava o ambiente, cravado nos personagens e seus mínimos desvãos, milímetro a milímetro, segundo a segundo. Trocava informações com o repórter com quem fazia parceria.
Muitas vezes, em nossas parcerias, ele me apontava o lead que eu ainda não percebera. Era como se pensasse: a notícia tem inteireza, não tem partes; não existe isso de o repórter fazer uma parte, o fotógrafo fazer outra; os trabalhos dos dois não são estanques, são complementares, são continuados, são produto da mesma forja. Durante a ditadura, muitas vezes acontecia de só os fotógrafos entrarem no gabinete; ele ia e invariavelmente me trazia informações importantes.
Por último, há que falar na noção estética (ou talvez devesse escrever “olhar estético”), aquilo que nas pessoas comuns, a gente rotula genericamente de “bom gosto”. Para o fotojornalista, a “noção estética” é aquilo que, no teatro, é feito pelo cenógrafo – a ambiência em que a foto vai vingar. Brito tinha uma noção estética extraordinária; e mais uma vez, ela não era fruto de estudo, de leitura, mas da singular intuição. Um exemplo disso foi o pano vermelho com que ele envolveu os personagens do seu livro Senhoras e Senhores.
Depois de todas essas condicionantes, o leitor ficará pensando que é muito difícil ser fotojornalista, tantas são as possibilidades, preparos, cuidados e retoques que o fotojornalista tem de ajeitar para a foto sair supimpa. É difícil para nós, comuns mortais. No gênio, isso tudo vem pronto e se resolve num pipocar de obturador, num átimo de segundo.
CARLOS MARCHI ” OS DIVERGENTES” ( BRASIL)