Quem assistiu “en passant” como eu, que procurava canais com minha mulher, Márcia, e de repente ela me perguntou quem era o jovem executivo de berrante gravata amarela ao lado do presidente Jair Bolsonaro na transmissão, pela TV Jovem Pan, da “live” semanal desta 5ª feira (que foi ao ar uma hora mais tarde, às 20 horas), deve ter estranhado o tom macambúzio de Bolsonaro. Em plena atividade de campanha, burlando todas as normas da Justiça Eleitoral (como faz a maioria dos demais candidatos), ao lado do presidente do BNDES, Gustavo Montezano (41 anos), Jair Bolsonaro parecia estar retomando a campanha de 2018 (antes da facada). Na falta de assunto, e para fugir das trapalhadas na gestão da pandemia da Covid-19, com novo ataque à vacinação de crianças, quando procurou desacreditar todas as vacinas disponíveis no Brasil, em meio ao preocupante surto da Ômicron que ameaça elevar as mortes diárias para mais de um milhar, Bolsonaro desencavou do colete um assunto velho e batido “a caixa preta do BNDES”.
Durante a campanha de 2018, cansou de dizer que se eleito fosse iria “abrir a caixa preta do BNDES” para descobrir “as falcatruas nas operações de empréstimos a governos estrangeiros, comunistas, que envolviam as obras de serviços das principais empreiteiras do Brasil”. Eleito, pressionou o 1º presidente do BNDES do seu governo, o ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy a abrir “a caixa preta”. Levy aprofundou as investigações do banco que, desde 2015, suspendeu US$ 7,036 bilhões em financiamentos às empreiteiras implicadas na operação Lava-Jato na Petrobras. Um grupo de trabalho descobriu que as operações de financiamento às exportações de serviços (que tinham transformado o BNDES numa espécie de Eximbank dos Estados Unidos ou do Japão, que financiam, de fato a compra financiada de máquinas e bens de capital pelos países envolvidos na obra), estavam sendo desvirtuadas no caso brasileiro. Parte das obras envolvia serviços das nossas empreiteiras. Mas, quando chegava a hora da compra de equipamentos, por falta de atualização tecnológica, economia de escala e por serem produzidos por filiais de matrizes no 1º mundo, os “made in Brazil” perdiam espaço para os “made in China”, “made in USA”, “in Japan”, “in France”, “in Germany” ou “in Korea”. Os países financiados preferiam comprar direto das matrizes.
Mas Bolsonaro queria provar que os financiamentos a Angola (pioneiro nas operações e líder em empréstimos, no total de US$ 3,273 bilhões, rigorosamente em dia) eram comparáveis aos da Venezuela (que recebeu US$ 1,507 bilhão e nos deu calote de US$ 572 milhões em obras do metrô de Caracas, construído pela Odebrecht, e nas obras de construção de um estaleiro e uma siderúrgica a cargo da Andrade Gutierrez), ou a Cuba, que recebeu US$ 656 milhões para obras como o porto de Mariel e ficou inadimplente em US$ 178 milhões. Levy saiu do banco em julho de 2019 e foi substituído pelo jovem Montezano, então com 38 anos. Nem todos os financiados tiveram problemas, como Moçambique, assolado por furacões e tsunamis, em meio a golpe de estado e que deve ao BNDES US$ 122 milhões dos US$ 188 milhões que levantou para a modernização do aeroporto de Nacala e a construção de uma barragem, restando US$ 53 milhões de operações a vencer. Na prática, Moçambique, terra do brilhante escritor e colunista de “O Globo”, José Eduardo Agualusa, quase não quitou nada.
Nem por isso o BNDES levou beiço. As operações são garantidas pelo Fundo de Garantia à Exportação (FGE), uma espécie de seguro às exportações, que têm o prêmio embutido no financiamento (mais ou menos o que o consumidor faz no caixa de uma loja ao aceitar a “garantia estendida” ao eletrodoméstico, além dos três a 12 meses de garantia do fabricante). Nada sai de graça. No caso da carteira do BNDES, Cuba está longe de ser o maior tomador de crédito (é o 6º da lista, atrás dos US$ 685 milhões do Equador e dos US$ 1,215 bilhão da República Dominicana, ilha do Caribe próxima e que divide o espaço insular com o pobre Haiti, não contemplado pelo BNDES). Na República Dominicana o banco estatal brasileiro chegou a cancelar quatro grandes operações, antes de efetuar os desembolsos. Cancelamentos envolveram Cuba, Argentina, Angola, Guatemala, Honduras, Venezuela e Moçambique, ainda no governo Dilma.
Mas Bolsonaro, após ser perguntado pelo jornalista Augusto Nunes, um dos comentaristas e âncoras da TV JP, a nova emissora oficial da rede Bolsonaro, sobre por que voltar ao tema, tantos anos após o próprio banco, na gestão Montezano, ter feito ampla publicação detalhando a situação dos contratos, entrou no terreno em que gosta de trilhar politicamente: o de espalhar versões fantasiosas. Disse que pretende reabrir a “caixa preta” para tentar relacionar os desembolsos a essas obras com “as doações das empreiteiras a partidos políticos”, bom como os “financiamentos a empresas doadoras, como a JBS” – Montezano disse que eles deram retorno favorável ao banco, mas foram mais lucrativos aos grupos. Mais adiante, provocado por Guilherme Fiúza, outro jornalista da JP (sim, assim como Lula faz entrevistas com jornalistas simpáticos ao PT, ou Moro e Ciro cooptam seus simpatizantes, na tropa de choque de Bolsonaro não estão apenas os conhecidos espalhadores de “fake news”) mencionou a posição de liderança do ex-presidente Lula nas pesquisas e se ele não temia que o BNDES voltasse a fazer as “operações de apoio aos “campeões nacionais”, um estranhamente apático Bolsonaro não reagiu como esperavam os seguidores do mito, com afirmações tipo “isso não vai acontecer”, “quem vai ganhar a eleição sou eu”. Em vez disso, um Bolsonaro aparentemente conformado com a derrota desenhada nas pesquisas eleitorais dizia que o eleitor é que teria de arcar com as consequências. Cansados daquela lenga-lenga, trocamos de canal.
A metamorfose no dia seguinte
Por isso merece um estudo mais aprofundado de como se encaixa na estratégia de campanha, que está nas ruas e em todas as propagandas oficiais dos ministérios de Bolsonaro (renovadas desde dezembro, como o Auxílio Brasil ou o escandaloso lançamento do “Novo Ensino Médio” do MEC, lançado no último ano, depois de três anos de completa inação da pasta do ministro Milton Ribeiro, a decisão do presidente da República, Jair Bolsonaro, de se recusar a comparecer à Polícia Federal, às 14 horas de 6ª feira, 18 de janeiro, para prestar depoimento, na condição de investigado, sobre o vazamento, durante transmissão ao vivo do presidente da República, do inquérito da Polícia Federal sobre o ataque de “hackers” ao site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Na “live”, acompanhado do deputado bolsonarista Filipe Barros (PSL-PR), aproveitou para atacar a credibilidade das urnas eleitorais (quando já estava provado que não há sistema ligando o TSE a cada uma das milhares de urnas eleitorais).
Contrariando a orientação dos ministros políticos – como ficou claro em entrevista, na mesma 6ª feira à noite, do chefe da Casa Civil, o senador licenciado Ciro Nogueira (PP-PI) e um dos líderes do Centrão, à CNN. Nogueira disse que “não é o momento de nós estarmos brigando” -, parece ter prevalecido a posição do grupo favorável ao acirramento dos ânimos, com atitudes radicais do presidente para motivar os apoiadores mais fanáticos do presidente, que estava ameaça do perder para Lula já no 1º turno. Os desdobramentos vão acontecer nesta semana e novos pesquisas eleitorais irão dizer se a tática da agressividade – que tinha sido deixada de lado desde que o Supremo Tribunal Federal fez dura manifestação contra o ensaio de golpe militar no 7 de setembro de 2021 – serviu para atiçar os eleitores de Bolsonaro ou ampliar a sua rejeição pelo eleitorado.
O ministro Alexandre de Moraes, que comanda no STF o julgamento dos inquéritos sobre “fake news” e financiamentos indevidos na campanha eleitoral de 2018, parece estar fazendo como os juízes de futebol que fazem advertência prévia aos capitães antes da escolha de quem dá a saída ou fica com os campos. Recusou, por “intempestivo” o recurso da Advocacia Geral da União, protocolado na portaria do STF 11 minutos antes do prazo do depoimento e que chegou às suas mãos após às 14 horas. A partir de setembro, quando começa o horário eleitoral no rádio e da TV, Moraes, que já integra o TSE, atualmente presidido pelo ministro Luís Roberto Barroso, será o árbitro geral das eleições de 2022. Como já tem muitos lances ríspidos sendo jogados antes de a bola rolar oficialmente, ele está dando o recado. Conter jogadas desleais dos contendores pode ser uma boa tática. Mas quem vai barrar as propagandas oficiais que fazem clara campanha política do presidente candidato à reeleição?
Uma disputa com Putin
Se nada de extraordinário acontecer até lá, com o acirramento das tensões entre a Rússia e a OTAN/Estados Unidos, em torno do papel da Ucrânia no xadrez internacional, a visita de Jair Bolsonaro ao presidente Vladimir Putin, em Moscou, na 2ª semana de fevereiro, não será apenas o encontro de dois déspotas que podem escolher qual lugar no pódio mundial das mortes por Covid-19 caberá a seus países. No momento a liderança é dos Estados Unidos, com mais de 881 mil mortos. Oficialmente, a Rússia tem 330 mil mortos. Mas o respeitado IHME, de Seattle (estado de Washington) – que apontou no seu sistema de triagem de causas-mortis que os casos do Peru (hoje com 205 mil óbitos) eram o dobro do que dizia o governo, que teve de reconhecer a realidade – insiste que o número real de mortos na Rússia chega a 680 mil pessoas. Com isso, superariam os 625 mil do Brasil de Bolsonaro, e os 493 mil da Índia, bem como os 423 mil óbitos que atribui ao México.
O diálogo com a Rússia pode render bons negócios ao Brasil, com a ampliação das vendas de alimentos (carnes bovina e suínas, café, açúcar, milho e soja), em troca de fornecimento de fertilizantes e parcerias em lançamentos de satélites de monitoramento do meio ambiente (numa alternativa ao que oferece o bilionário Elon Musk, da SpaceX). Em outras épocas, a diplomacia brasileira faria bonito estendendo a viagem à Ucrânia. Mas o Itamaraty perdeu totalmente a relevância para mediar até conflitos regionais, na desastrosa gestão de Ernesto Araújo no governo Bolsonaro.
Há muitas causas históricas nas escaramuças entre Moscou e Kiev, que vêm desde os tempos do czarismo, no Império Russo. Mas, a questão que aquece os ânimos atuais envolve a passagem de gasodutos e oleodutos russos e dos países aliados produtores de petróleo e gás na região do Mar Cáspio pelo território ucraniano, para servir aos principais países consumidores da Europa do Norte e do Sul, com destaque para a Alemanha, o mais histórico comprador desde os tempos em que Helmut Kohl era o chanceler, anterior a Ângela Merkel.
Mesmo com o mundo envolvido na transição climática que reduzirá o consumo de combustíveis fósseis, aos Estados Unidos, interessa apoiar a ampliação dos mercados de óleo e gás para seus aliados no Oriente Médio, como a Arábia Saudita, o Catar e o Kuwait, não perderem mercado na Europa. A disputa pelo domínio político do arrasado território Sírio, controlado com mão de ferro por Bashar al-Assad, com apoio direto russo, faz parte do mesmo tabuleiro. Se a Síria ficasse pró Ocidente, ela poderia ser via de passagem do gasoduto com o qual Catar, Arábia Saudita e demais países do golfo arábico poderiam suprir, em linha direta, a Itália e a França, por exemplo, tirando mercado da Rússia e seus aliados.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)