O conselheiro Acácio, um dos personagens criados por Eça de Queiroz em “O Primo Basílio”, cunhou uma frase lapidar do pensamento acaciano: “as consequências vêm sempre depois”. O conselheiro verbalizava a síntese dos lugares comuns. Mais simples e direto, o jornalista satírico Aparício Torelly, gaúcho nascido no final do século 19 (29 de janeiro de 1895), autointitulado “Barão de Itararé” (a famosa batalha que não houve na marcha de Getúlio Vargas, ex-presidente da Província do Rio Grande do Sul, e ex-ministro da Fazenda de Washington Luiz, rumo ao Rio de Janeiro, capital federal para depor o presidente: esperava-se uma batalha sangrenta em Itararé, primeiro município paulista na divisa com o Paraná, parada obrigatória para o trem que trazia Getúlio e suas tropas; mas Vargas foi recebido com festa na estação e o caminho ficou aberto para os gaúchos chegarem ao Rio, onde os partidários de Vargas amarraram os cavalos no Obelisco, no final da Avenida Rio Branco, depois da Cinelândia – o cenário foi desfeito com a criação do Aterro do Flamengo, mas está registrado na História), dispensou o sempre da frase, por ser acaciano…
Jair Bolsonaro e seus aliados políticos e coordenadores de campanha não parecem ser muito chegados à literatura. Mas, certamente, seus ‘conselheiros Acácios’ de ocasião devem ter lido alguns excertos de “O Príncipe”, a obra mais famosa do florentino Nicoló Machiavelli, que, criado no esplendor da República de Florença de Lourenço de Médici, pôde conhecer os clássicos gregos e romanos, fonte de inspiração para sua obra mais famosa, escrita em 1513 e publicada postumamente em 1532 (Maquiavellli 1527). Uma das máximas que Maquiavel, como ficou conhecido na tradução portuguesa, foi: “o mal deve ser feito de uma vez, já o bem deve ser aos poucos”, para que o povo possa sempre ser relembrado da bondade do príncipe ou do líder em questão.
Atropelado pela pandemia da Covid-19, que menosprezou desde o início, ecoando seu ídolo Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro vem fazendo um governo medíocre, com a inflação na casa de dois dígitos, desemprego altíssimo e a economia com fraco desempenho. As consequências do seu negacionismo vieram depois, diria o Barão de Itararé, editor do satírico jornal “A Manhã”, que, de tanto ser empastelado ou agredido por políticos e acólitos de autoridades descontentes com suas ferinas observações, pôs uma placa na entrada da redação: “Entre, sem bater”. Correndo atrás do prejuízo de ter perdido (como indicam as pesquisas) quase metade do seu cacife eleitoral conquistado em 2018, Bolsonaro virou o ano disposto a abrir o “saco de bondades” para tentar reconquistar eleitores até 2 de outubro de 2022.
Premido pelo calendário eleitoral, que botou na rua quando já se candidatou em 2019, já empossado, à reeleição, que prometeu cancelar, já se considerando em campanha, Bolsonaro não perde a oportunidade de perder uma oportunidade de ficar calado e despeja barbaridades diárias em suas aparições públicas, em “lives” ou em postagens nas redes sociais. Sobretudo as redes que não evitam “fake news”, como o “Telegram”. As redes sujeitas ao controle social e das autoridades judiciais já baniram várias de suas postagens, com conteúdos absurdos ou mentirosos. Mesmo na dúvida de que foi o próprio presidente o autor das postagens, pois seu filho 02, o vereador carioca, Carlos Bolsonaro (Republicanos), que dá expediente no Palácio do Planalto e vai ser o coordenador de marketing da campanha, tem acesso direto aos domínios do pai-presidente nas redes sociais, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral têm distribuídos cartões amarelos e advertências ao presidente da República por fazer de palanque eleitoral qualquer ato administrativo.
Responsável pelo inquérito das “fake news”, o ministro Alexandre Moraes, do STF, advertiu o presidente esta semana pelo uso dos canais oficiais da EBC para fazer propaganda e atacar os futuros adversários nas eleições. É muito importante que Moraes, que já integra o colegiado do TSE, atualmente sob o comando do ministro Luís Roberto Barroso, e que irá assumir o posto a partir de agosto e presidir o processo eleitoral, já demarque o terreno do que pode ou não se pode fazer na campanha. É mais ou menos como o juiz que chama os capitães ao centro do campo, antes do cara ou coroa para ver quem dá a saída ou quem escolhe o campo (no 2º tempo a força da torcida é fator crucial) e estabelece as regras de convivência em campo.
Desde 1º de janeiro, todas as pesquisas eleitorais precisam estar previamente registradas no TSE e cumprir os preceitos mínimos. No momento há pelo menos a realização de meia dúzia a cada mês. Oficialmente, a partir de 2 de abril (seis meses antes da eleição) começam a ser contados os prazos da campanha, no último dia para definição da filiação aos partidos. É também a data limite para eventuais candidatos que ocupam cargos públicos se desincompatibilizem para poderem se lançar em campanha. Neste ano em que o calendário já foi atropelado (o Carnaval que seria em março, passa para o feriado de Tiradentes – 21 de abril), o eleitor deve ficar atento à data de 4 de maio, último dia para atualização ou registro de seu título eleitoral. As convenções partidárias têm de ser realizadas de 20 de julho a 5 de agosto. O registro de todas as candidaturas tem de ser feito até 15 de agosto, pois no dia 16 já começa a campanha eleitoral com comícios, distribuição de material gráfico, propagandas na internet e caminhadas. O horário eleitoral no rádio e Tevê ocorrerá de 26 de agosto a 29 de setembro. É impróprio chamar o horário de gratuito, pois as emissoras são pagas (com o dinheiro do cidadão/ contribuinte/eleitor) pelo tempo em que não há faturamento publicitário.
O afã do governo em abrir o saco de bondades – que é o mais deslavado “marketing” eleitoral – ultrapassa todos os limites da ética e da prudência econômica, ante a subserviência do ministro da Economia, o ortodoxo Paulo Guedes. O outrora eterno defensor de ajustes fiscais, se curva a cada vontade de Jair Bolsonaro de usar a Bolsa da Viúva para agradar o eleitor. As limitações da Lei de Responsabilidade Fiscal e do calendário eleitoral, que proíbem a realização de despesas sem a devida provisão de receitas, foram malandramente contornadas no caso do “Vale Gás”, desviado para o colo da Petrobras, que vai bancar a maior parte do subsídio bimensal de R$ 52 para ajudar na compra de um botijão de gás liquefeito de petróleo (GLP) de 13 kg. Como o botijão está custando o dobro (ou até mais na mão dos milicianos e traficantes que dominam as periferias dos grandes centros, os candidatos do governo terão de fazer aliança com essa gente – não é de se estranhar que representantes deste extrato social se alinhem ao lado de pastores e influentes líderes evangélicos na atual composição da Câmara e do Senado Federal.
Há muitas bondades a serem tiradas da cartola ou das jaquetas presidenciais (o traje predileto de Jair Bolsonaro). Mas a história nos ensina que não é preciso viajar muito no tempo para verificar que, como dizia Torelly, “as consequências vieram depois”. No primeiro governo Dilma Roussef, o “poste” que o presidente Lula conseguiu eleger em 2010, em resposta às manifestações populares contra o aumento das passagens de transportes públicos, em 2013, a presidente, que já tinha feito uma desastrosa intervenção no setor elétrico em fins de 2012 (as tarifas de energia residencial foram reduzidas em 18% em 2013, mas começaram a subir logo após a reeleição, em novembro de 2014 e se elevaram 51% em 2015), congelou os combustíveis (GLP, gasolina, diesel e, desestimulou, com isso a produção de etano). O resultado do populismo eleitoral (que se estendeu ao câmbio e aos juros em 2013 e 2014) veio depois. O 2º turno se realizou em 25 de outubro de 2014. Logo em 29 de outubro, o Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom) elevou os juros e no mês seguinte subiram a tarifa de energia e o câmbio. Em 2015, o câmbio disparou, com alta de 48,49% do dólar ante o real. Houve grande pressão sobre os preços públicos, além dos 51% da energia elétrica, o GLP subiu 22,65%, a gasolina 20,10% e o etanol, disparou 29,63%. E o custo da Alimentação e Bebidas subiu 12,03%. Foi a 2ª maior taxa do século (só perdeu para os 19,47% de 2002, ano eleitoral em que a estiagem prejudicou a safra plantada no ano anterior e o dólar dobrou de valor, após e eleição de Lula).
Tudo isso precisa ser lembrado quando o presidente Jair Bolsonaro, na ânsia de recuperar a popularidade junto aos caminhoneiros, a classe média, motoristas de aplicativos que vêm perdendo receitas e donas de casa, programa fazer bondades para reduzir os preços dos combustíveis com o chapéu alheio. No caso, propondo a redução do ICMS (arrecadado pelos estados) sobre os combustíveis. A medida pode, supostamente, conter a escalada dos preços, que sazonalmente, devido à necessidade de aquecimento térmico nas residências do Hemisfério Norte no 2º semestre, atropelaria a campanha eleitoral com altas no barril de petróleo e no preço do gás. Mas, além de tudo depender de não haver escaramuças entre Rússia e Estados Unidos em torno da Ucrânia ou em outras nações produtoras de petróleo no Oriente Médio ou no Cáucaso, a medida pode aumentar o abismo fiscal cavado pelo governo.
O departamento de Estudos Econômicos do Banco Itaú BBA, em sua publicação “A semana em revista”, fez exercícios para simular o impacto da Proposta de Emenda Constitucional que o governo prepara para reduzir preços de combustíveis e energia elétrica no país. A proposta se daria através da diminuição de tributos sobre estes itens, sem a necessidade de compensação fiscal (como estabelece a Lei de Responsabilidade Fiscal). Segundo as estimativas do Depec Itaú, “uma redução para zero nos tributos federais (PIS/Cofins) incidentes sobre combustíveis e energia pode gerar uma redução nas receitas anuais do governo central da ordem de R$ 50 bilhões a R$ 63 bilhões de reais, além de reduzir em cerca de 0,75 p.p. o IPCA do ano”. Ou seja, o ganho na inflação seria pequeno e transitório. Já o custo fiscal seria duradouro.
Para que os preços não voltem a subir, o governo teria de encontrar meios de arrecadar mais ou elevar as taxas de juros por mais tempo. Com o aumento do rombo fiscal, pois o governo está contratando despesas e bondades confiando no que viu no retrovisor de 2021, mas a economia está se desacelerando e no limiar da recessão em 2022, vai ficar muito mais caro o pagamento de juros para rolagem da crescente dívida pública, próxima de 90% do PIB. Quase num processo circular, o efeito colateral (que tanto o presidente procura em remédios ou vacinas, mas finge ignorar em economia) virá depois, sob a forma de mais concentração de renda na mão dos rentistas.
Tinha razão o querido Barão: “As consequências vêm depois”. Apertem os cintos: 2022 será duro, mas 2023 não será fácil, mesmo que Bolsonaro não continue no poder.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)