O dia 22, sábado, marca o centenário de nascimento de Leonel Itagiba de Moura Brizola, um dos homens que mais influíram na vida política nacional, no século passado. Poucos, entre os contemporâneos, poderiam se gabar de uma existência tão intensa, que começou nas suas terras gaúchas, em tempos humildes de engraxate e carregador de malas. Atrelado a uma natural inclinação para o carisma, elegeu-se deputado estadual, em seguida deputado federal, prefeito de Porto Alegre, governador do Rio Grande e, duas vezes, do Rio de Janeiro. Carreira longa, que só começaria a ser atropelada quando foi vice em mal sucedida chapa de Lula. Mas sempre sonhando, como objetivo final, com a Presidência da República, em 1965, meta que, contudo, fugiu caprichosamente de seu destino, na conjunção de fatores diversos. Houvesse chegado lá, gostaria de criar um socialismo latino, extrovertido, sem a brancura dos socialistas europeus, mas com a morenice de um Agnaldo Timóteo ou Mário Juruna, que se elegeram à sombra dele.
Essa ideia do socialismo peculiar era, para muitos, resultante mais de um nacionalismo renitente, do que propriamente por convicções de natureza ideológica. De fato, havia adotado, desde os tempos gaúchos, a convicção de que os grandes males, se não todos, começavam pela influência do capital estrangeiro e evasão das riquezas; e, por isso, combateu duramente as empresas americanas de energia e telecomunicação, sendo que, no Rio Grande, recorreu à desapropriação. Desejava vê-las, todas, encampadas, embora nesse campo obtivesse resultado modesto. Um de seus críticos, Roberto Campos, atribuía ao comportamento brizolista a principal dificuldade que teve de enfrentar como embaixador em Washington.
Ao morrer, em junho 2004, derrotado por edema pulmonar seguido de infarto, ficou devendo maiores reflexões, de conteúdo teórico, sobre como pretendia atingir aquelas transformações com que passou a vida sonhando; como transformar as utopias em realidade. Nem colaboradores próximos, como Darcy Ribeiro, avançaram muito em detalhes sobre o que Brizola imaginou para vencer o poder das poderosas estruturas instaladas; e, derrubando-as, como implantar reformas dos mais diferentes espectros. Hoje, é consensual que foi sua pregação, juntamente com o sindicalismo radical que vigorava, um dos obstáculos para os moderados, que propunham mudanças paulatinas, metodicamente, capazes de não assustar demais os conservadores. Observa-se que nas suas caminhadas tanto tentaram combatê-lo os radicais de direita como os contemporizadores da esquerda. Os extremos igualavam-se para mirar num alvo comum.
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A biografia de Brizola, já traçada e algumas vezes publicada, não impede que seu centenário recomende novos estudos sobre o papel que desempenhou na política, onde não escondia o temperamento populista, muitas vezes agressivo; temperamento que, certamente, não cuidou de se cercar de discrição e cuidados, quando as tensões recomendavam prudência. No célebre comício da Praça da Estação, em 13 de março de 64, espetáculo centrado em João Goulart, seu cunhado, sendo antevéspera do golpe que já esquentava os quartéis, não deixaria por menos, defendendo o imediato fechamento do Congresso e sua substituição por uma Constituinte, formada apenas por operários, lavradores e sargentos. Nada mais provocador para o sistema, hostilizando-o, mais ainda, ao aguçar a resistência armada, com o Grupo dos 11, que não fez a ditadura tremer, mas ajudou a estimular a violenta repressão.
Assim, pode-se dizer que passou a vida desafiando, para só se tornar mais comedido, no final de um exílio de quase 15 anos, grato ao presidente Jimmy Carter, que colaborou para que não se tornasse alvo dos “condores”, comandos direitistas de extermínio que grassavam por toda a América Latina. Hoje, passado o tempo e rendidos os temores, talvez fosse conveniente saber melhor se ele, de fato, andou cogitado para entrar na lista das mortes misteriosas de políticos da oposição, ocorridas no curto espaço de oito meses em 1977, todas com investigações inconclusas. Uma dose de comedimento talvez se possa extrair, em sua memória, das linhas da Carta de Lisboa, dois anos depois. Um documento nele inspirado, vazado em alguma sobriedade, ao pedir a redemocratização do país.
Há, contudo, outros aspectos importantes dessa vida agitada, que ainda reclamam análises mais profundas. Por exemplo, a real experiência de Brizola e sua contribuição na história do Partido Trabalhista Brasileiro em seu modelo original, chamado personalista ou caudilhesco. Foi uma das três expressões da legenda, juntamente com Getúlio e João Goulart. Depois, o PTB derivou para outro campo, sob influência ideológica, com Alberto Pascoalini e Fernando Ferrari. Hoje, das antigas cinzas, o partido se compraz com a marca do fisiologismo. Até que ponto Brizola teria acreditado na capacidade daquele partido ou o sucedâneo PDT para dar sustentação ao seu socialismo colorido e democrático?, se é que realmente, no íntimo, admitisse a possibilidade de alcançá-lo. Não deixou isso bem explicado.
Não cessam aí as curiosidades sobre a figura polêmica de Leonel Brizola. É o caso da extensão e das reais consequências da acidentada relação com o cunhado João Goulart; e, na convivência familiar, até que ponto teriam prosperado ou abafado a ideia de uma reação armada ao golpe de 64, quaisquer que fossem as consequências. O presidente titubeava, por fim a repudiou, sob o pretexto de evitar derramamento de sangue; mas Brizola não apenas mostrou que a desejava, como a demonstrou e a pôs em prática, organizando em Porto Alegre a Rede da Legalidade, ao mesmo tempo em que abençoou o surgimento de falanges armadas.
Inamistosos, separados algumas vezes, reconciliados depois, à crônica política ficaram os dois devendo depoimento mais esclarecedor sobre o que os separava, como também o que os aproximava, além dos ventos dos pampas. Quais os fatos que essas relações teriam gerado para a História? Persistem dados confusos ou incompletos, ou mesmo misteriosos.
Simpatizantes e adversários coincidem, contudo, em que esse homem foi suficientemente importante para que dele se saiba muito mais, além do que já sabemos.
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Antes, houve quem dissesse que Brizola foi o mais carioca dos gaúchos, o que, até certo ponto, as urnas confirmariam, a partir de sua eleição para a Câmara dos Deputados com quase 270 mil votos, o que, à época, significava 1/4 do colégio eleitoral do Rio. Duas vezes governador do Estado, em 1982 ele agitou a vida política brasileira ao denunciar e provar que se tramava sua derrota com base num esquema de falsa computação elaborada pela Proconsult. Foi o primeiro escândalo eletrônico abortado na política do Brasil.
No curso dos mandatos, dois destaques. O primeiro, no campo administrativo, deu ao Rio a primazia de implantar o Sistema Integrado de Educação Popular, CIEP. Milhares de crianças foram estudar e comer na Sapucaí, o que, muitas vezes, não tinham em casa.
O segundo destaque foi na política, quando surpreendeu ao tentar se aproximar do último presidente da era militar, João Figueiredo, para quem desejou mandato de cinco anos, em troca de ser sucedido por eleição direta, na qual pretendia candidatar-se.
Veio o segundo mandato de governador. Elegera-se em turno único com 61% dos votos, desincompatibilizando-se em seguida para ser vice de Lula na chapa presidencial. E com ele fracassou. Depois, ficou em 6º lugar quando quis ser senador. Chegasse a Brasília, esse mandato certamente o ajudaria a ampliar sua atuação no cenário nacional, sempre com a ideia fixa na Presidência da República. Mas já caminhava no momento outonal da vida.
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Morto há 18 anos, é impossível prever qual seria o protagonismo de Leonel Brizola na política nacional, como hoje ela se apresenta. Mas, se se considerar que não arredaria pé de suas convicções, talvez sentisse desconforto, pouco à vontade com os companheiros e camaradas de esquerda para condenar a bilionária ajuda com que os governos do PT contemplaram países do socialismo moreno dos latinos e negro dos africanos. Não teria como apoiar isso. Adversário intransigente dos ralos por onde escapam os dinheiros do povo, seria forçado a aceitar, a contragosto, o discurso de Bolsonaro e da direita, porque batem e insistem na mesma tecla.
Mas constrangimentos são coisa para quem está vivo. E Brizola já descansa.
WILSON CID ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)